António Louçã, Esquerda.net, 22 de janeiro de 2021
A Revolução Russa de 1905 durou mais de um ano. O seu ponto culminante foi a greve geral de Outubro. Muitas vezes se lhe tem chamado o “ensaio geral” para a Revolução de Outubro de 1917. Na verdade, foi muito mais do que isso: foi a primeira revolução proletária do século e a prefiguração de muitas outras que estavam para vir. E estão.
Aprender a falar russo
A Rússia do século XIX era considerada o grande baluarte da reacção. Um inspector da polícia, por sinal irmão do dirigente social-democrata Plekhanov, dizia achar mais provável a erupção de um vulcão no centro de Moscovo do que a abertura de uma crise revolucionária.
País imenso e imensamente atrasado, a Rússia tinha empreendido uma reforma da propriedade feudal que ainda agravara a situação dos camponeses: constrangidos a comprarem as terras onde viviam, tinham-se afogado em dívidas. Só em Agosto de 1904 um pacote legislativo tentara antecipar-se à revolução abolindo as dívidas resultantes dessa reforma. E, já agora, abolira também os castigos corporais que a nobreza até aí pudera infligir aos camponeses.
A greve alastrou às centrais eléctricas, aos transportes públicos, às tipografias. Em 8 de Janeiro, havia 200.000 trabalhadores paralisados. No dia seguinte, aproveitou-se o domingo para organizar uma manifestação e apresentar ao czar as queixas que estavam a alvoroçar a sociedade.
O regime político permanecera impermeável à vaga de revoluções desencadeada em 1848 na Europa: o czar mandava no governo e na igreja, sem eleições, sem parlamento e sem nenhuma constituição que lhe limitasse o poder. O desenho institucional da monarquia era, segundo o historiador François-Xavier Coquin, uma mistura de absolutismo oitocentista com cesaro-papismo bizantino. Confiado na sua autoridade absoluta, o regime arrastara o país para uma guerra com o Japão.
Dispostos a morrerem cegamente pelo czar, os camponeses fardados rapidamente tiveram de constatar que ele estava disposto a sacrificá-los com a maior leviandade. O movimento operário parecia reflectir igualmente este ambiente de atraso geral. Acabados de sair do campo, os operários de primeira geração tinham começado nos últimos anos antes da revolução a formular algumas tímidas reivindicações. Mas, como não sabiam o que era um sindicato nem alguma vez tinham feito uma greve, canalizavam essas reivindicações pela via das organizações de Zubatov, um sujeito controlado pela polícia, e depois por intermédio de um demagogo com alguma audácia, o padre Gapone. Assim como o proletariado era uma minoria, rodeada por um oceano camponês, também o partido marxista russo era uma pequena vanguarda dentro de um proletariado sem experiência de luta.
Os partidos europeus da Segunda Internacional olhavam para esta realidade com sobranceria. O maior de todos, a social-democracia alemã, julgava-se apta a dar lições aos restantes e, ocasionalmente, admitia que as suas rotinas conservadoras podiam ser contrabalançadas com experiências vindas da Inglaterra, o “laboratório da Revolução Industrial”, ou da França, o país da “Grande Revolução” de 1789-1793. August Bebel, o líder social-democrata alemão, incitava mesmo os seus camaradas a aprenderem francês – uma metáfora para incitá-los a aprenderem, num país de obediência e disciplina, o valor da revolução.
Mas, para surpresa de todos, o verdadeiro sinónimo da aprendizagem revolucionária ia tornar-se, nos anos seguintes, a linguagem balbuciada pelos operários russos acabados de sair do campo.
Das súplicas à revolta
O ano de 1904 concluiu-se com um desastre militar russo, a queda de Port Arthur em mãos dos japoneses, e com um facto a que poucos atribuíram importância na altura: o despedimento de 4 operários na grande fábrica de armas de Putilov. Em 3 de Janeiro, este facto aparentemente anódino deu origem a uma greve total da grande fábrica com 13.000 trabalhadores. Nos dias seguintes, a greve alastrou às centrais eléctricas, aos transportes públicos, às tipografias. Em 8 de Janeiro, havia 200.000 trabalhadores paralisados. No dia seguinte, aproveitou-se o domingo para organizar uma manifestação e apresentar ao czar as queixas que estavam a alvoroçar a sociedade.
EXCERTOS DA PETIÇÃO AO CZAR EM 9 DE JANEIRO DE 1905
“Soberano, nós, os operários, as nossas mulheres e os nossos velhos, os nossos pais, viemos à tua presença, soberano, para pedir justiça e protecção. Estamos reduzidos à miséria, somos oprimidos, esmagados por um trabalho superior às nossas forças, somos injuriados, não se nos quer reconhecer como homens, somos tratados como escravos condenados a sofrerem o seu destino e a calarem-se. Esperámos com paciência, mas cada vez mais se nos empurra para o abismo da indigência, da servidão e da ignorância. O despotismo e a arbitrariedade esmagam-nos, afogamo-nos. Faltam-nos as forças, soberano! Chegou-se ao limite da paciência; para nós, este é o momento terrível em que a morte vale mais do que o prolongamento de tormentos insuportáveis (…)”
“Ordena e jura satisfazê-las [as nossas reivindicações] e tornarás a Rússia forte gloriosa, gravarás para sempre o teu nome nos nossos corações, nos corações dos nossos filhos e netos. Se recusares ouvir a nossa súplica, vamos morrer aqui, nesta praça, em frente do teu palácio. Não há outra saída para nós, não temos motivo para procurá-la noutro lugar. Só restam dois caminhos à nossa frente: para a liberdade e a felicidade, ou para o túmulo. Mostra-nos, soberano, qual devemos escolher. Vamos segui-lo sem replicar, mesmo que seja o caminho da morte. Sacrifique-se a nossa vida pela Rússia esgotada em tormentos. Não lamentaremos este sacrifício; oferecemo-lo de boa vontade.”
Entre as massas, a estupefacção deu lugar à cólera. Gapone fez distribuir um manifesto, amaldiçoando os soldados que disparavam sobre o povo e libertando todos os outros do dever de obediência aos seus oficiais. Mas a vanguarda operária não quis ficar-se pelos perdões e maldições: assaltou os armeiros da cidade e deu os primeiros sinais de resistência. A greve alastrou a outras cidades do império russo e a autocracia só conseguiu fazer-lhe face com novos massacres de centenas de pessoas, nomeadamente em Riga e em Varsóvia.
Em 13 de Janeiro os operários começaram a voltar ao trabalho.
No dia 17 voltaram também os de São Petersburgo. Mas os meses seguintes continuaram a ser de grande agitação: em 18 de Abril (o 1º de Maio no calendário russo de então) realizaram-se grandes manifestações nas principais cidades da Polónia e da Ucrânia. Delas resultou em Lodz uma greve geral com características insurreccionais.
No ambiente geral, qualquer faúlha dava lugar a incêndios inesperados. O menor passo em falso por parte das autoridades produzia consequências imprevistas. Em Maio, em Ivanovo-Vosnesensk, o maior centro têxtil da região moscovita, o inspector de trabalho fez eleger 100 delegados operários como “comissões de porta-vozes” para dialogarem com o patronato. Estes, reunidos entre si, criaram o primeiro soviete da revolução.
Em Odessa iniciou-se em 13 de Junho uma greve geral que coincidiu com o motim a bordo do couraçado Potemkine. A faúlha foi, neste caso, uma refeição de carne estragada que os oficiais destinavam aos marinheiros. O navio foi tomado e o reforço que trouxe à greve de Odessa, durante um breve momento, chegou a criar expectativas de vitória. Enfim, em Setembro, uma outra faúlha foi o primeiro passo para a greve geral: os tipógrafos de Moscovo reivindicaram que lhes pagassem as vírgulas e os pontos finais como lhes pagavam os restantes caracteres. Mas à greve geral de Outubro voltaremos mais adiante.
Da sobranceria à demagogia
Dois dias depois do “Domingo Sangrento”, o conselho de ministros do czar tinha uma reunião agendada. Realizou-a na data prevista, sem qualquer antecipação devida ao banho de sangue. O então ministro das Finanças, Witte, propôs que se discutisse a forma de evitar no futuro desgraças semelhantes. A proposta foi recusada, porque não estava na ordem de trabalhos do conselho debruçar-se sobre os acontecimentos de domingo... A mesma arrogância autocrática transparecia na atitude do czar, uma semana depois, ao anunciar que estava disposto a “perdoar” aos seus súbditos pelo transtorno que tinham trazido à tranquilidade pública.
Mas a mobilização revolucionária que persistiu nos meses seguintes obrigou o governo a renunciar a esta atitude autista. Já não bastava derramar copiosamente o sangue da população nas principais cidades do império: era necessário juntar, ao chicote da repressão, a cenoura da demagogia. Em 6 de Agosto, o czar promulgou um manifesto anunciando a criação da que ficou conhecida como a “Duma Bulyguine”. Tentava-se criar desse modo um arremedo de instituição parlamentar, que confundisse o movimento revolucionário, mas sem pagar qualquer preço. O poder do czar, nomeadamente, não deveria sofrer limitações e a Duma poderia ser dissolvida por ele em qualquer momento. Além disso, o modo de eleição da Duma não tinha nada a ver com o sufrágio universal; havia uma combinação do voto por ordens (típico dos regimes aristocráticos) com o voto censitário (típico dos regimes plutocráticos). Os operários não podiam votar. Tentar pôr de pé um organismo tão aberrante, e ainda por cima durante um período revolucionário, era naturalmente irrealista.
Os partidos operários e também o principal partido camponês (“socialista-revolucionário”) boicotaram abertamente a “Duma Bulyguine”. O sucesso do boicote anunciava o segundo assalto da revolução. E foi já com este segundo assalto em plena evolução que o manifesto de 17 de Outubro veio substituir o de 6 de Agosto. Agora reconhecia-se a necessidade de pagar um preço e de fazer promessas com alguma substância: atribuía-se à Duma o poder de aprovar ou rejeitar as leis, iniciava-se a separação entre a Igreja e o Estado, anunciavam-se eleições em que todas as classes poderiam votar (embora com votos de valores diversos) e insinuava-se que proximamente passaria a vigorar o sufrágio universal. Para pôr em prática esta política de concessões, o conde de Witte era nomeado primeiro-ministro. Mas o movimento revolucionário tinha ainda uma palavra a dizer.
Da greve geral à insurreição
Em 19 de Setembro, a greve dos tipógrafos, pela redução do horário de trabalho e pelo pagamento dos sinais de pontuação, paralisou por duas semanas a publicação de jornais em Moscovo. No dia 25, ela deu origem a confrontos sangrentos e, no dia 27, a uma paralisação quase geral. A partir de 7 de Outubro, a greve passou a contar com a decisiva participação dos ferroviários. No dia seguinte, começou a correr um boato sem fundamento: os delegados ferroviários teriam sido presos. O boato veio lançar lenha na fogueira e em breve havia um milhão e meio de grevistas em todo o país. De cabeça perdida, o general Trepov, à frente das operações repressivas, ordenava que não se disparasse para o ar nem se poupassem munições.
No calor da luta, surgia entretanto mais um soviete – o de São Petersburgo, que iria ter um papel decisivo na revolução. Era composto por 562 delegados, entre os quais se contavam figuras notáveis como o presidente Jorge Nosar (Jrustalev), o jovem Trotsky e, um pouco mais tarde, o talentoso mas pouco fiável Alexander Helphand (Parvus). Eleito como direcção da greve geral, o soviete de São Petersburgo em momento algum fez da greve um fim em si e sempre evitou desgastá-la em meras acções de protesto, que não podiam conduzir à luta pelo poder. Assim, em 26 de Outubro suspendeu a greve geral, para passar a outras formas de luta mais prometedoras. Uma das tarefas prioritárias era, nesse momento, a organização de uma milícia operária: a ocorrência de 150 pogroms em três semanas, com milhares de vítimas mortais, mostrava como a contra-revolução punha as garras de fora assim que o inimigo lhe parecia enfraquecido.
O prestígio do soviete de São Petersburgo criou um efeito de imitação. Durante o Outono, conhecem-se cerca de 40 que foram eleitos nos principais centros urbanos do país, incluindo o de Moscovo – o mais radical. Nem sempre as lutas redundaram na criação de organizações conselhistas como esta: em 26 de Outubro, uma revolta na base naval de Kronstadt criou uma situação caótica e deu azo a novos pogroms, que o governo aproveitou para justificar a repressão dois dias depois. Noutros casos, uma combinação entre circunstâncias mais favoráveis e antecedentes de experiência política mais rica permitiram novos saltos organizativos: em meados de Novembro, criou-se em Sebastopol o primeiro soviete de marinheiros, na sequência de uma revolta a bordo do cruzador Otchakov - aquilo que Trotsky considera “um dos maiores acontecimentos do grande ano”.
Entretanto o soviete de São Petersburgo voltara a convocar a greve geral para impedir que os insurrectos de Kronstadt fossem enviados a tribunal marcial, com uma condenação à morte em perspectiva. E voltara a brandir a ameaça da greve, desta vez da greve ferroviária, para impedir a execução de uma sentença capital contra o comandante da fortaleza de Kuchka, acusado de fazer propaganda revolucionária. Em ambos os casos teve sucesso. A estes sucessos acresciam os do dia-a-dia, em que o soviete passara de mero comité de greve a um verdadeiro governo paralelo. Por muitas piscadelas de olho que quisesse lançar à oposição liberal, o governo de Witte não ia tolerar o crescimento de um contrapoder operário: em 3 de Dezembro, mandou as tropas prenderem os delegados operários, em plena sessão. Quase metade do soviete (267 delegados) foi detida. Um soviete substituto iria ficar em funções até ser preso, por sua vez, em 2 de Janeiro.
No momento em que estava a ser preso o soviete de S. Petersburgo, estava um regimento da guarnição de Moscovo a amotinar-se. Em 16 de Dezembro, o soviete de Moscovo, influenciado pelos bolcheviques, lançava a palavra de ordem de greve geral insurreccional e distribuía instruções para a criação de pequenos grupos de combate. Dois dias depois, com um saldo de cerca de um milhar de mortos, mandava suspender a insurreição. O novo soviete de São Petersburgo tentara apoiá-lo com uma nova greve geral, mas apenas conseguira uma fraca adesão.
Onde vai emergir a toupeira
Ao longo do ano de 1906, as lutas de massas foram esmorecendo nas cidades, as revoltas camponesas continuaram a ocorrer aqui e ali, o terrorismo individual grassou durante algum tempo. Das duzentas vítimas do “Domingo Sangrento”, e dos milhares de vítimas dos meses seguintes, passou-se a uma repressão mais sistemática e continuada. Em Abril de 1906 o número de presos e deportados rondava os 50.000. No lapso de 8 meses, registaram-se cerca de mil condenações à morte. O responsável pela vaga repressiva, Stolypin, viu serem baptizados com a alcunha sarcástica de “gravatas de Stolypin” os enforcamentos realizados por sua ordem.
Mas o brutal esmagamento da revolução não logrou apagar uma realidade incontornável: a revolução tinha começado onde menos se esperava, o proletariado tinha tomado a direcção dos acontecimentos num país onde parecia paralisado pela sua relativa exiguidade e pelo seu atraso, as aspirações socialistas tinham-se imposto subitamente nas ruas de um país onde nem existia ainda um capitalismo moderno.
Recordar esta revolução inesperada, surpreendente, vivaz, rebelde a todos os esquemas doutrinários, apresenta uma especial actualidade neste começo de século em que tudo se faz depender do menor espirro das grandes potências. O férreo domínio do imperialismo sobre o planeta produz um cepticismo sobre o futuro da revolução mundial pelo menos tão arreigado como era, no início do século passado, o cepticismo sobre a possibilidade de uma revolução na Rússia. Os acontecimentos de 1905 provaram que não havia na Europa nenhum país demasiado atrasado para a revolução e que a retaguarda de ontem podia tornar-se a vanguarda de amanhã. Diversos doutrinários marxistas tiveram nesse momento de dobrar a língua e ver os seus discípulos mais jovens “a aprenderem russo”.
Do mesmo modo, constantemente deparamos hoje com sintomas de mal-estar social e de potencialidade revolucionária nos países mais improváveis. Assim como, há poucos anos, o mero incidente da agressão policial a Rodney King conduziu à revolta e ao estado de sítio em Los Angeles, também hoje assistimos à justificada ira dos pobres e deserdados de Nova Orleães e vemos crescer no coração do império mais forte do mundo a ameaça aos poderes estabelecidos. Não havia no início do século XX nenhum país na Europa demasiado atrasado para a revolução. Não há, no início do século XXI nenhum país no mundo demasiado avançado para a revolução.
António Louçã é jornalista. Artigo publicado na revista Combate, edição Outono de 2005.