Carolinha Botelho, El País Brasil, 19 de junho de 2021
“As condições não definem resultados; as ações das pessoas nessas condições é que definem” (Adam Przeworski, Crises da Democracia).
A segunda manifestação contra o Governo Bolsonaro em meio à pandemia do coronavírus pareceu tão grande, senão maior, do que a primeira de maio deste ano. Com exceção de alguns atos ocorridos no país contra as políticas educacionais no início do Governo, estas últimas que eclodiram neste ano nas capitais brasileiras vieram após um período sufocante de dor e de esgotamentos psíquico e físico. Chegaram no momento em que o Brasil começa a se perceber, novamente, às vésperas de uma terceira e letal onda de covid-19 e justo na hora em que a sociedade contabiliza 15 milhões de desempregados, milhões de desalentados, novos famintos e miseráveis, marcas produzidas sob a frequente agressão que as instituições de nossa democracia têm sofrido desde o início do atual Governo.
É verdade que as últimas pesquisas anteciparam esse descontentamento popular com o Governo. Nos últimos meses, diversos institutos de pesquisa mostraram que ao menos dois movimentos importantes estão ocorrendo: o primeiro deles é que os apoiadores do Governo deixaram de representar um terço do eleitorado. Este grupo diminuiu para aproximadamente um quarto, com tendência a minguar um pouco mais. A segunda, e que merece destaque, é que os demais eleitores, que antes pareciam se dividir entre diferentes preferências, começam pouco a pouco a se unir em torno de uma ideia comum: quem nos governa não está apto para essa responsabilidade.
Isso quer dizer que o jogo está ganho? Não, longe disso. Há elementos importantes que merecem atenção. O Governo possui ativos preciosos que podem ser usados para se manter no poder. O primeiro deles se refere à condição de maior autoridade do executivo brasileiro. A literatura política já mostrou inúmeras vezes que uma caneta presidencial, mesmo uma Bic, aumenta a chance desse Governo permanecer no poder. A principal razão é que ele pode de forma discricionária escolher onde alocar recursos e orçamento público. Isto é, pode beneficiar grupos políticos e partidários que compõem a sua base, assim como focalizar políticas de transferência para segmentos da sociedade. O apoio de parte do centrão exemplifica a primeira ideia e a prova de que isso está ocorrendo é a resistência do atual presidente da câmara, Arthur Lira, à abertura de um processo de impeachment mesmo diante de crimes de responsabilidade do presidente da República.
A segunda ideia pode ser comprovada com declarações públicas do ministro da economia, Paulo Guedes, como a dita há poucas semanas, “agora vem a eleição? Nós vamos para o ataque. Vai ter Bolsa Família melhorado”. Além das questões orçamentárias e de transferências de recursos, o Governo tem à disposição toda a máquina federal, seja para propagandear diariamente o que quer, seja para contratar e dispor de instrumentos que podem auxiliar na reeleição. Finalmente, o Governo tem demonstrado excelente capacidade de se comunicar com uma base eleitoral relativamente consolidada, coesa e munida de setores radicalizados e dispostos a apoiar o presidente além de ignorar toda e qualquer barbaridade exibida ao longo dessa administração. Como dito acima, a base de apoio do presidente representa 25% do eleitorado, número suficiente para levá-lo ao segundo turno das eleições. Por fim, o que quero dizer é: sejamos cautelosos.
Voltemos às pesquisas e às ruas para que o desânimo não tome conta da racionalidade. É para evitar isso que também retorno à frase de Przeworski que inaugura este artigo: “As condições não definem resultados; as ações das pessoas nessas condições é que definem”. É bem verdade que pesquisas de opinião pública geram dúvidas e desconfianças. Mas há menos emoção por trás de tabelas e gráficos do que ver, sentir e ouvir o povo na rua. As manifestações parecem estar tomando cada vez mais corpo e produzindo um efeito que andava raro por aqui: união de diferentes grupos.
Partidos de esquerda voltam a ocupar com mais desenvoltura as ruas, mas não só eles, dividem o espaço político com diferentes grupos da sociedade, todos eles massacrados e cansados por dois anos e meio de governo Bolsonaro. Idosos, jovens, negros, índios, mulheres. No meio deles, eleitores arrependidos do governo posam para fotos com os rostos cansados. Algo mudou. E um lembrete às forças que trabalham pela democracia: o Brasil deste ano não é o mesmo Brasil de 2018. É um Brasil mais triste, mais sofrido e com meio milhão a menos de brasileiros. Mas a grande maioria dos que sobreviveram não vai permitir que varram a memória dos mortos para debaixo do tapete.
Carolina Botelho é doutora em Ciência Política, pesquisadora no Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social Mackenzie (SCNLab/Mackenzie) e Doxa/Iesp/UERJ.