Rumo de atos dos viventes para fora da bolha da esquerda depende da procissão dos mortos
Igor Gielow, Folha de S.Paulo, 19 de junho de 2021
A rua, ente esotérico que tanto assusta o mundo político, dá sinais de que veio para ficar no panorama brasileiro com a renovada jornada de protestos contra Jair Bolsonaro.
O fato de os atos terem coincidido com a macabra efeméride dos 500 mil mortos da Covid-19 no Brasil, dez vezes mais pessoas que o país perdeu no seu maior conflito, a Guerra do Paraguai (1864-70), apenas ampliou o simbolismo deste sábado (19).
A comparação entre o que ocorreu de forma espraiada por todo o país com a "motociata promovida pelo presidente no sábado passado, que juntou cabalísticos 6.661 motociclistas num ato de força pontual, é francamente desfavorável a Bolsonaro.
Se no evento em São Paulo a imagem de uma horda mecanizada avançando e atrapalhando o trânsito servia aos propósitos propagandísticos do bolsonarismo, a presença em diversas capitais e o termômetro da avenida Paulista indicam um outro fenômeno.
Por ora, assim como no grande, mas menor, protesto anterior de 29 de maio, estamos falando de um protesto majoritariamente de esquerda. O caráter eleitoral, contudo, foi diluído justamente pela dimensão humana da tragédia contra a qual ao fim os manifestantes protestam.
Não foi casual o cálculo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de não aparecer na Paulista e fazer um comício de campanha, assim como Bolsonaro faz dia sim, dia sim. Há uma linha tênue da exploração política da tragédia, ainda que seja um truísmo o DNA do que se viu neste sábado.
De todo modo, é possível argumentar que uma parte considerável dos presentes, ainda que não se incomodem com a profusão de bandeiras vermelhas e poderão votar em Lula em 2022, não queria se ver associada à disputa eleitoral imediata.
São pessoas que se opõem à anomia que caracteriza a era Bolsonaro no Brasil, seja nos aspectos sanitários ou nos democráticos.
Também é preciso dar descontos pontuais da dinâmica normal desse tipo de ato. Uma das faixas mais chamativas na frente do Masp era do algo folclórico Partido da Causa Operária. Tirando quem a segurava, se tanto, é duvidoso que alguém lá fosse eleitor da sigla.
Havia também, como ocorreu em Brasília, políticos de legendas de oposição não lulistas, como a Rede e o Cidadania. Mas daí a negar o caráter esquerdista do ato, como tentaram os organizadores Brasil afora, há uma distância razoável.
Ainda assim, o principal lugar-tenente de Lula, o ex-prefeito paulistano Fernando Haddad, que concorreu contra Bolsonaro no nome do então condenado ex-presidente em 2018, deu as caras para espezinhar o rival.
Sobrou também, claro, para João Doria (PSDB), governador paulista que assumiu sua conhecida pretensão presidencial na terça passada (15).
Haddad é pré-candidato ao governo estadual no ano que vem, afinal, e irá enfrentar o grupo de Doria. Mas há também aí um recibo cautelar do petismo acerca do desprezo com que aliados potenciais tratam as chances do tucano na tentativa de encarnar a tal terceira via em 2022.
O campo dos antibolsonaristas e antipetistas passa por uma mudança. Doria entrou oficialmente em campo, o apresentador Luciano Huck desistiu de concorrer, conversas ora infrutíferas abundam. Ciro Gomes (PDT), identificável à esquerda, sofre para escolher se ataca Lula ou Bolsonaro.
Seja como for, esse grupo não foi às ruas de forma objetiva. Por sorte, reacionarismos como a temerária ação bolsonarista da PM de Pernambuco contra os atos também não apareceram.
Se os manifestantes gritam contra o risco de um golpe militar, o contexto em alguns estados, em especial do Nordeste, sugere que que eles devem ficar de olho é no proverbial guarda da esquina
Enquanto o aspecto político-partidário das manifestações se desenvolve, e o peso do caráter sem controle dos atos de 2013 sempre será lembrado, um fato é incontornável: as ruas voltaram ao xadrez eleitoral.
Se elas tomarão corpo além do formato à esquerda e emularão a pressão que cresceu ao longo de 2015 contra Dilma Rousseff (PT), é incerto. Isso dependerá da influência que a procissão de mortos da pandemia terá sobre a dos viventes.