Protestos foram ainda maiores e capilarizados que os de maio. Em boa medida, por sua organização plural: centenas de movimentos encontraram-se nas ruas; nenhum se sobrepôs aos demais. Esta configuração, rara no Brasil, precisa ser mantida
José Antonio Moroni e Ana Cláudia Teixeira, Outras palavras, 21 de junho de 2021
Um mosaico ocupou novamente as ruas no último sábado (19) para gritar “Fora Bolsonaro“, por vacina e por comida. Com criatividade e dor, foram feitas intervenções artísticas em várias partes do país.
De manhã, no Rio de Janeiro, a manifestação se iniciou com um instante comovente, um único saxofonista tocava enquanto participantes erguiam silenciosos seus punhos esquerdos cerrados. Ao final da manifestação em Porto Alegre velas foram acesas. No fim da tarde, um caminhão pipa lembrando a marca de 500 mil mortos pela covid derramou, pela extensão da Avenida Paulista, em São Paulo, uma água vermelha cor de sangue
Em Brasília a presença do levante indígena entoou em suas próprias línguas o genocídio permanente que vivem e nos lembrando que somos vários povos. Nas simbologias dos atos, houve a expressão criativa da dor, o luto se transmutando em indignação, mesmo que a tristeza permaneça.
Os cartazes à mão com nomes dos parentes e amigos mortos também estiveram lá. Muitos apenas com o nome e a data, outros responsabilizando o governo Bolsonaro e a falta da vacina. No mosaico que foram as manifestações de maio e de ontem há espaço de se viver o luto. Um luto coletivo por quem foi, mas também por quem ficou e não consegue sorrir.
Um luto de quem busca forças não se sabe de onde para viver. Um luto coletivo pela fome com a qual nosso país voltou a conviver. Sim, muitas das 500 mil mortes eram evitáveis. Os responsáveis precisam ser julgados, não só pela Justiça brasileira, mas nos tribunais internacionais. Genocídio é crime contra a humanidade. A síntese política perfeita deste momento que vivemos foi o “slogan” novamente repetido: vacina no braço, comida no prato e Fora Bolsonaro.
Cada um traduziu o slogan da forma que pode ou o complementou com suas próprias dores. Sempre de máscara e sem registros de violência policial. Ocupantes de terras urbanas trouxeram um tecido escrito à mão, reivindicando o fim dos despejos. Evangélicos contra Bolsonaro expressaram sua indignação contra um projeto de morte.
As religiões de matriz africana, junto com o povo negro, trouxeram a denúncia de que eles vivem permanentemente em processo de genocídio. A comunidade LGBTI+ trouxe com alegria e exuberância de cores a sua luta cotidiana pelo direito a viver e existir da forma que deseja. As mulheres feministas abriram, com seus batuques, muitas manifestações pelo país. A presença marcante de mulheres em todos os atos denunciava aqueles que querem confiná-las aos 15% na representação parlamentar.
Rostos jovens misturados a alguns não tão jovens. Encontro de gerações, de medos e de sonhos. As juventudes formaram a maioria do público presente nas manifestações. Um mosaico de juventudes diversas, plural e fazendo do seu corpo um ato político.
Eram jovens que se organizam em movimento nacionais ou por direitos como o da educação, bem como pequenos grupos de amigos com uma estética parecida e cartazes especialmente produzidos. Juventudes que espelham uma síntese política: jovens, muitos periféricos, mulheres, feministas, LGBTI+ e negros e negras. Uma presença que chega sem pedir licença e diz “este espaço também é nosso”.
As bandeiras, batuques e palavras de ordem já bem conhecidas de quem participa de atos ocuparam novamente as ruas. Mas não só. Pessoas aparentemente não ativistas, pequenos grupos de amigos ou pessoas totalmente sozinhas com cartazes impressos, muitas com seus cachorros, também se fizeram presentes. Todas de máscara, buscando no vai e vem estar juntas e distantes.
Neste mosaico, onde cada peça é diferente mas tem um conjunto que o torna mais belo, a manifestação foi um lugar de busca pelo outro por meio do olhar. As pessoas procuram se reconhecer. A máscara esconde boa parte do rosto e, para proteger do sol, usa-se o boné. Restam os olhos para reencontrar um conhecido, e dizer uma meia dúzia de palavras. Neste reencontro, há o misto de alegria, alívio e dor, pois não parece caber o direito de esquecer as 500 mil vítimas que eram amor de alguém.
Os organizadores registraram, até sábado à noite, 750 mil pessoas em 427 cidades em atos realizados no Brasil e em 17 países. Como no dia 29 de maio, a mobilização foi feita pela Campanha Fora Bolsonaro, que é formada por movimentos sociais, coletivos, articulações, coalizões, sindicatos e partidos de esquerda, e que em sua diversidade tentaram garantir uma organização local bastante plural. Este mosaico tem garantido a unidade das manifestações. Uma diversidade de sujeitos que dialogam e constroem um campo comum de ação e de luta.
Essa é a forma pela qual ambas as manifestações do Fora Bolsonaro foram construídas. Não há uma coordenação central e com isso não se tem um espaço político que receba e processe todas as informações. Mas é certo que ontem os protestos foram bem maiores que os atos de maio, tanto em número de participantes, quanto cidades atingidas e amplitude geográfica. As manifestações se ” interiorizaram” pelo país. Há relatos de atos em cidades pequenas. O mosaico aumentou nas suas bordas.
Como em maio houve uma pluralidade de formas de dizer “Fora Bolsonaro”. Quem não se sentiu seguro para ir às ruas se manifestou nas carreatas, colocando panos pretos nas janelas, buzinando, colocando cartazes em suas janelas. Nas redes, o slogan do dia foi #19JForaBolsonaro. No Twitter, segundo o pesquisador Fabio Malini, houve uma queda de postagens, foram 1 milhão a menos do que no #29M.
Mesmo assim, cerca de 700 mil tweets foram postados. A participação no Instagram foi significativa, com cerca de 20 milhões de interações. Talvez porque a imagem das manifestações represente mais que muitos textos, talvez pela juventude muito presente nos atos.
No contra-ataque, bolsonaristas tentaram emplacar a narrativa de que se tratavam de “manifestações meramente partidárias”. Não foram. E, se fosse, qual seria o problema? Parece que esta narrativa perdeu apelo após a triste marca de 500 mil óbitos ter sido atingida. O anúncio fez com que uma série de influenciadores que até então não haviam se posicionado o fizessem.
Aparentemente o poder de contra-ataque bolsonarista no Twitter diminuiu. Será por conta da “limpeza” feita pela rede na última semana, varrendo contas falsas, ou a estratégia dos bolsonaristas foi justamente não falar absolutamente nada para não gerar mais engajamento?
Sim, ontem foi maior, mais diverso e mais bem coberto pela mídia tradicional. Haverá novos atos? E para onde irão? É possível lograr que esses protestos empurrem a CPI e façam chegar o impeachment de Bolsonaro? Ou as manifestações servirão para gerar um caldo propício para a derrota do presidente nas eleições de 2022?
Difícil dizer. O cenário político não parece nada propenso a saídas institucionais. E, olhando para “os vizinhos”, é preciso lembrar que mudanças eleitorais nos Estados Unidos, no Chile e na Bolívia foram precedidas de grandes protestos de rua. As conexões entre ruas, redes sociais e mudanças eleitorais são uma dinâmica importante dos últimos anos em todas as partes. Elas se retroalimentam.
Por outro lado, a urgência de defender a vida não parece permitir a espera das próximas eleições. Aguardar pacificamente um ano e meio por uma eleição ainda muito incerta no seu resultado, por ora, não é uma escolha razoável.
Um cenário em que o governo Bolsonaro passe a priorizar saúde e vida digna para todos não passa de uma miragem. E, se o fizer, será puramente de forma eleitoreira. Diante da emergência humanitária em que nos encontramos, as ruas sinalizam que o “Fora Bolsonaro” visa 2021, e não há calendário eleitoral que acomode essa urgência. A defesa da vida é para ontem.