Trotsky analisou o estalinismo como uma contra-revolução que não conseguiu pôr fim a todas as conquistas da revolução de Outubro de 1917.
Gustavo Buster e Daniel Raventós, Esquerda.net, 20 de agosto de 2020
O conde Czernin foi um reacionário convicto. Da sua folha de serviços, vale a pena sublinhar que foi o representante austríaco nas negociações de Brest-Litovsk, em 1918. O outro lado era a delegação da recente revolução russa. Este conde ficou tão farto da inteligência e inflexibilidade de Trotsky como Comissário do Povo para os Negócios Estrangeiros e chefe da delegação soviética que expressou mais de uma vez o seu ardente desejo que aparecesse uma Charlotte Corday para eliminar o líder revolucionário.
20 de Agosto marca o 80º aniversário do assassinato do fundador do Exército Vermelho e a "sua" Charlotte Corday foi o militante do PSUC Ramon Mercader, cumprindo o plano para o assassinar que Estaline começou a conceber apenas 13 anos após as negociações de Brest-Litovsk e que tinha sido cuidadosamente preparado desde 1934. O assassino de Trotsky, Ramon Mercader, morreu em Havana a 18 de Outubro de 1978, depois de receber, em 1961, em Moscovo, a medalha que representava a maior distinção na URSS entre 1934 e 1991: a estrela de Herói da União Soviética.
Tem-se escrito tanto sobre a vida e obra do revolucionário russo que qualquer pretensão de dizer algo novo é precisamente uma pretensão. Um bom resumo dos aspectos diferentes da sua obra pode ser lido no livro de Ernest Mandel (El pensamiento de Leon Trotsky), publicado há cinco anos e que pode ser baixado aqui. Contém as principais contribuições teóricas e os momentos mais importantes da vida do revolucionário. Há muitas contribuições teóricas diferentes de Trotsky que foram devidamente reconhecidas e não apenas pelos trotskistas.
Para citar duas que são especialmente notáveis: a teoria da revolução permanente, que forneceu os melhores instrumentos de análise e que mais precisamente previu a Revolução de Outubro, foi formulada em 1905-06, quando Trotsky tinha apenas 26 anos, e a análise subsequente da ascensão da burocracia soviética, que surgiu de diferentes fatores, mas nomeadamente a grande perda de quadros bolcheviques durante a guerra civil após a revolução, a derrota das revoluções europeias e a consolidação no poder dos representantes diretos dessa burocracia, cuja cabeça visível era Estaline.
O que aconteceu na URSS, entre 1918, quando o conde Czernin ansiava por um assassino para Trotsky, e 1940, quando Mercader conseguiu assassinar o veterano revolucionário?
Diretamente relacionado com o que nos interessa:
- a derrota das revoluções europeias, especialmente a alemã,
- o aumento da referida burocracia na URSS sobre os ombros de uma classe trabalhadora dizimada pela Guerra Civil,
- a aniquilação da velha guarda bolchevique,
- a vitória do fascismo em Itália, em 1922, do nazismo na Alemanha, em 1933 e da ditadura de Franco, em 1939,
- o início da Segunda Guerra Mundial em Setembro de 1939.
Sobre a ascensão da burocracia na URSS, apenas dois factos. O primeiro: em 1923, o partido bolchevique tem 370.000 membros, dos quais apenas 35.000 são trabalhadores, dois terços deles são empregados do partido, do exército (apesar de Trotsky ainda ser chefe formal do partido, em 1923, e de gozar de grande prestígio entre os veteranos da guerra civil, Estaline já tinha colocado os seus fiéis em posições-chave para minar a sua autoridade), dos sindicatos e dos órgãos do Estado. O segundo: já no final de 1926, um membro do partido, do nível mais baixo, ganha cinco a seis vezes mais do que o salário médio do trabalhador.
Sobre a aniquilação da velha guarda bolchevique, apenas um facto: no final dos anos trinta, 90 por cento dos membros que faziam parte do Comité Central Bolchevique, que liderou a revolução de 1917 foram exterminados por Estaline. Mas o principal responsável por todos os crimes que tinham ocorrido ainda não tinha sido liquidado, e de acordo com o regime estalinista, este não era outro senão Trotsky.
Pouco antes do início da grande guerra mundial, a 25 de Agosto de 1939, o embaixador francês em Berlim, Robert Coulondre, tentou dissuadir Hitler de invadir a Polónia. A guerra, como foi o caso em 1914, pode ser o preâmbulo da revolução e isto desencoraja alguns espíritos. A forma de o expressar do embaixador francês ante Hitler é: "receio que no final de uma guerra só haja um vencedor: o Sr. Trotsky".
Como era possível que o velho revolucionário russo, refugiado num bairro da Cidade do México, caluniado pelo maior aparelho de propaganda de um Estado que alguma vez existiu e odiado por quase todos os governantes do mundo, despertasse estes medos entre os poderosos da altura? Recordava-se que a Primeira Guerra Mundial trouxe o triunfo da Revolução Russa e que um punhado de internacionalistas revolucionários, todos no exílio, a lideraram. E Trotsky foi, ante o mundo, a cabeça visível, juntamente com Lenine, dessa revolução. Lenine tinha morrido, em 1924, mas Trotsky ainda estava vivo, em 1939. Daí as apreensões de Coulondre.
A fim de analisar o contributo de Trotsky na sua avaliação teórica do estalinismo, pode ser útil distinguir entre entre ditadura soberana e ditadura comissária. E, de passagem, vai ajudar-nos a apreciar uma das contribuições de Marx que foi mais mal compreendida: a ditadura do proletariado. Incompreensão tanto da parte dos críticos convictos de Marx como dos seus seguidores dogmáticos. Anos de análises críticas filológicas aos seus escritos políticos tornam hoje inquestionável que Marx e Engels identificaram o conceito de ditadura do proletariado não com uma forma de governo, mas com a hegemonia social e política da classe trabalhadora. E recordam que as classes não governam, mas sim os partidos e os aparelhos do Estado. Para os seus herdeiros teóricos, como Kautsky e Lenine, a forma mais propícia para exercer esta ditadura de classe era a república democrática, parlamentar ou soviética, dependendo, como qualquer governo, da correlação de forças políticas e dos mecanismos de representação historicamente existentes.
Como Antoni Domènech nos lembrava, a noção de ditadura comissária vem da República Romana. Quando se chegava a uma situação muito extrema de guerra civil, o Senado podia nomear um ditador por seis meses. Este tomaria conta da situação crítica. O ditador comissário era um mero agente daqueles que lhe deram o cargo. Após seis meses, o ditador comissário devia responder e prestar contas ao Senado de todos os atos políticos que tinha levado a cabo. A diferença entre a ditadura comissária e a ditadura soberana é decisiva. O ditador soberano "tem soberania e governa pro arbítrio seu", como Antoni Domènech escreveu em "El eclipse da fraternidad". O ditador comissário clássico é um "mero comissário do povo".
O estalinismo é um exemplo de ditadura soberana, como foi o caso do nazismo na Alemanha, desde 1933 até à sua queda, e também o de Franco (este último não caiu e parte dos males do atual regime de 1978 são o resultado deste facto, diga-se aqui apenas de passagem). Marx e Engels, como bons conhecedores dos clássicos, compreenderam a ditadura do proletariado dentro da tradição republicana da ditadura comissária e da ditadura democrática.
Trotsky analisou o estalinismo com outros instrumentos de análise mas acreditamos que a sua análise pode ser adaptada ao que foi aqui apontado: tratou-se de uma contra-revolução que foi impondo uma ditadura soberana. Daí ter usado o termo Thermidor para se referir a esta contra-revolução. Efetivamente, o Thermidor significou uma contra-revolução mas que manteve em grande parte as conquistas socio-económicas da Revolução Francesa. O estalinismo foi a contra-revolução da revolução soviética, mas não restaurou a propriedade pré-revolucionária e as relações de produção. Tal como Thermidor, a ditadura soberana estalinista não conseguiu pôr fim a todas as conquistas da revolução de Outubro de 1917.
A 20 de Agosto de 1940, Trotsky foi mortalmente ferido por Ramon Mercader. Morreu um dia mais tarde. Já se passaram 80 anos.
Gustavo Buster e Daniel Raventós são editores do sinpermiso.info. Texto publicado originalmente em sinpermiso.info. Traduzido por António José André para Esquerda.net.