Luiz Marques, A terra é redonda / Cosmos & Contexto, 5 de julho de 2020
O que singulariza a atual pandemia é o fato de se somar a diversas crises sistêmicas que ameaçam a humanidade, e isso justamente no momento em que não é mais possível postergar decisões que afetarão crucialmente, e muito em breve, a habitabilidade do planeta
O ano de 2020 será lembrado como o ano em que a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 precipitou uma ruptura maior no funcionamento das sociedades contemporâneas. Será provavelmente lembrado também como o momento de uma ruptura da qual nossas sociedades não mais se recuperaram completamente. Isso porque a atual pandemia intervém num momento em que três crises estruturais na relação entre as sociedades hegemônicas contemporâneas e o sistema Terra se reforçam reciprocamente, convergindo em direção a uma regressão econômica global, ainda que com eventuais surtos conjunturais de recuperação.
Essas três crises são, como reiterado pela ciência, a emergência climática, a aniquilação em curso da biodiversidade e o adoecimento coletivo dos organismos, intoxicados pela indústria química [1]. Os impactos cada vez mais avassaladores decorrentes da sinergia entre essas três crises sistêmicas deixarão doravante as sociedades, mesmo as mais ricas, ainda mais desiguais e mais vulneráveis, menos aptas, portanto, a recuperar seu desempenho anterior. São justamente tais perdas parciais, cada vez mais frequentes, de funcionalidade na relação das sociedades com o meio ambiente que caracterizam essencialmente o processo de colapso socioambiental em curso (Homer-Dixon et al. 2015; Steffen et al. 2018; Marques 2015/2018 e 2020).
Inflexão da história humana
Por sua extensão global e pelo rastro de mortes deixadas em sua passagem, superior a 250 mil vítimas (oficialmente notificadas) em pouco mais de quatro meses, a atual pandemia é um fato cuja gravidade seria difícil exagerar, tanto mais porque novos surtos podem ainda ocorrer nos próximos dois anos, segundo um relatório do Center for Infectious Disease Research and Policy (CIDRAP), da Universidade de Minnesota (Moore, Lipsitch, Barry & Osterholm 2020).
Mas ainda mais grave que o saldo imenso de mortes, é o momento da incidência da pandemia na história humana. Outras pandemias, algumas muito mais letais, ocorreram no século XX, sem afetar profundamente a capacidade de recuperação das sociedades. O que singulariza a atual pandemia é o fato de se somar a diversas crises sistêmicas que ameaçam a humanidade, e isso justamente no momento em que não é mais possível postergar decisões que afetarão crucialmente, e muito em breve, a habitabilidade do planeta. A ciência condiciona a possibilidade de estabilizar o aquecimento médio global dentro, ou não muito além, dos limites almejados pelo Acordo de Paris a um fato incontornável: as emissões de CO2 devem atingir seu pico em 2020 e começar a declinar fortemente em seguida. O IPCC traçou 196 cenários através dos quais podemos limitar o aquecimento médio global a cerca de 0,5oC acima do aquecimento médio atual em relação ao período pré-industrial (1,2oC em 2019). Nenhum deles, lembram Tom Rivett-Carnac e Christiana Figueres, admite que o pico de emissões de gases de efeito estufa (GEE) seja protelado para além de 2020 (Hooper 2020). Ninguém exprime o significado dessa data-limite de modo mais peremptório que Thomas Stocker, co-diretor do IPCC entre 2008 e 2015:[2]
“Mitigação retardada ou insuficiente impossibilita limitar o aquecimento global permanentemente. O ano de 2020 é crucial para a definição das ambições globais sobre a redução das emissões. Se as emissões de CO2 continuarem a aumentar além dessa data, as metas mais ambiciosas de mitigação tornar-se-ão inatingíveis”.
Já em 2017, Jean Jouzel, ex-vice-presidente do IPCC, advertia que “para manter alguma chance de permanecer abaixo dos 2oC é necessário que o pico das emissões seja atingido no mais tardar em 2020” (Le Hir 2017). Em outubro do ano seguinte, comentando o lançamento do relatório especial do IPCC, intitulado Global Warming 1.5oC, Debra Roberts, co-diretora do Grupo de Trabalho 2 desse relatório, reforçava essa percepção: “Os próximos poucos anos serão provavelmente os mais importantes de nossa história”. E Amjad Abdulla, representante dos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (SIDS) nas negociações climáticas, acrescentava: “Não tenho dúvidas de que os historiadores olharão retrospectivamente para esses resultados [do relatório especial do IPCC de 2018] como um dos momentos definidores no curso da história humana” (Mathiesen & Sauer 2018). Em The Second Warning: A Documentary Film (2018), divulgação do manifesto The Scientist’s Warning to Humanity: A Second Notice, lançado por William Ripple e colegas em 2017 e endossado por cerca de 20 mil cientistas, a filósofa Kathleen Dean Moore faz suas as declarações acima mencionadas: “Estamos vivendo um ponto de inflexão. Os próximos poucos anos serão os mais importantes da história da humanidade”.
Em abril de 2017, um grupo de cientistas, coordenados por Stephan Rahmstorf, lançava The Climate Turning Point, em cujo Prefácio se reafirma a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris (“manter o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2oC em relação ao período pré-industrial”), esclarecendo que: “essa meta é considerada necessária para evitar riscos incalculáveis à humanidade, e é factível – mas, realisticamente, apenas se as emissões globais atingirem um pico até o ano de 2020, no mais tardar”. Esse documento norteou então a criação, por diversas lideranças científicas e diplomáticas, da Missão 2020 (https://mission2020.global/). Ela definia metas básicas em energia, transporte, uso da terra, indústria, infraestrutura e finanças, de modo a tornar declinante, a partir de 2020, a curva das emissões de gases de efeito estufa e colocar o planeta numa trajetória consistente com o Acordo de Paris. “Com radical colaboração e teimoso otimismo”, escreve Christiana Figueres e colegas da Missão 2020, “dobraremos a curva das emissões de gases de efeito estufa até 2020, possibilitando à humanidade florescer.” De seu lado, António Guterres, cumprindo sua missão de incentivar e coordenar os esforços de governança global, alertava em setembro de 2018: “Se não mudarmos nossa rota até 2020, corremos o risco de deixar passar o momento em que é ainda possível evitar uma mudança climática desenfreada (a runaway climate change), com consequências desastrosas para a humanidade e para os sistemas naturais que nos sustentam”.
Pois bem, 2020, enfim, chegou. Fazendo em 2019 um balanço dos progressos realizados em direção às metas da Missão 2020, o World Resources Institute (Ge et al., 2019) escreve que “na maioria dos casos, a ação foi insuficiente ou o progresso foi nulo” (in most cases action is insufficient or progress is off track). Nenhuma das metas, em suma, foi alcançada e, em dezembro passado, a COP25 em Madri varreu definitivamente, em grande parte por culpa dos governos dos EUA, Japão, Austrália e Brasil (Irfan 2019), as últimas esperanças de uma diminuição iminente das emissões globais de GEE.
A pandemia entra em cena
Mas eis que a Covid-19 irrompe, deslocando, paralisando e adiando tudo, inclusive a COP26. E em pouco mais de três meses resolveu pelo caos e pelo sofrimento o que mais de três décadas de fatos, de ciência, de campanhas e de esforços diplomáticos para diminuir as emissões de GEE mostraram-se incapazes de realizar (já a Conferência de Toronto, de 1988, recomendava “ações específicas” nesse sentido). Ao invés de um decrescimento econômico racional, gradual e democraticamente planejado, o decrescimento econômico abrupto imposto pela pandemia afigura-se já, segundo Kenneth S. Rogoff, como “a mais profunda queda da economia global em 100 anos” (Goodman 2020). Em 15 de abril, o Carbon Brief estimou que a crise econômica deve provocar uma diminuição estimada em cerca de 5,5% nas emissões globais de CO2 em 2020. Em 30 de abril, a Global Energy Review 2020 – The impacts of the Covid-19 crisis on global energy demand and CO2 emissions, da Agência Internacional de Energia (AIE), vai mais longe e estima que “as emissões globais de CO2 devem cair ainda mais rapidamente ao longo dos nove meses restantes do ano, atingindo 30,6 Gt [bilhões de toneladas] em 2020, quase 8% mais baixas que em 2019. Este seria o nível mais baixo desde 2010. Tal redução seria a maior de todos os tempos, seis vezes maior que a redução precedente de 0,4 Gt em 2009, devido à crise financeira e duas vezes maior que todas as reduções anteriores desde o fim da Segunda Guerra Mundial”.
A redução das emissões globais de CO2 projetada pela AIE para 2020 equivale ou é até pouco maior que os 7,6% de redução anual até 2030 que o IPCC considera imprescindível para conter o aquecimento aquém de níveis catastróficos (Evans 2020). O relatório da AIE apressa-se, contudo, em advertir que, “tal como nas crises precedentes, (…) o repique das emissões pode ser maior que o declínio, a menos que a onda de investimentos para retomar a economia seja dirigido a uma infraestrutura energética mais limpa e resiliente”. Salvo raras exceções, os fatos até agora não autorizam a expectativa de uma ruptura com os paradigmas energéticos e socioeconômicos anteriores. Malgrado o colapso do preço do petróleo, ou justamente por isso, as petroleiras estão se movendo com vertiginosa velocidade para tirar partido desse momento, obtendo, por exemplo, investimentos de USD 1,1 bilhão para financiar a conclusão do famigerado oleoduto Keystone XL, que ligará o petróleo canadense ao Golfo do México (McKibben 2020). Os exemplos desse tipo de oportunismo são inúmeros, inclusive no Brasil, onde os ruralistas se aproveitam da situação para fazer aprovar da Medida Provisória 910, que anistia a grilagem e eleva ainda mais as ameaças aos indígenas. Como bem afirma Laurent Joffrin, em sua Lettre politique de 30 de abril para o jornal Libération (Le monde d’avant, en pire?), o mundo pós-pandemia “corre o risco de parecer furiosamente, a curto prazo ao menos, com o mundo de antes, mas em versão piorada”. E Joffrin emenda: “o ‘mundo de após’ não mudará sozinho. Como para o ‘mundo de antes’, seu futuro dependerá de um combate político, paciente e árduo”. Político e árduo, sem dúvida, mas definitivamente não há mais tempo para paciência.
De qualquer modo, uma redução de quase 8% nas emissões globais de CO2 num ano apenas não abriu sequer um dente na curva cumulativa das concentrações atmosféricas desse gás, medidas em Mauna Loa (Havaí). Elas bateram mais um recorde em abril de 2020, atingindo 416,76 partes por milhão (ppm), 3,13 ppm acima de 2019, um dos maiores saltos desde o início de suas mensurações em 1958. Não se trata apenas de um número a mais na selva de indicadores climáticos convergentes. É o número decisivo. Como lembra Petteri Taalas, Secretário-Geral da Organização Meteorológica Mundial: “A última vez que a Terra apresentou concentrações atmosféricas de CO2 comparáveis às atuais foi há 3 a 5 milhões de anos. Nessa época, a temperatura estava 2oC a 3oC [acima do período pré-industrial] e o nível do mar estava 10 a 20 metros mais alto que hoje” (McGrath 2019). Faltam agora menos de 35 ppm para atingir 450 ppm, um nível de concentração atmosférica de CO2 largamente associado a um aquecimento médio global de 2oC acima do período pré-industrial, nível que pode ser atingido, mantida a trajetória atual, em pouco mais de 10 anos. O que nos aguarda por volta de 2030, mantida a engrenagem do sistema econômico capitalista globalizado e existencialmente dependente de sua própria reprodução ampliada, é nada menos que um desastre para a humanidade como um todo, bem como para inúmeras outras espécies. A palavra desastre não é uma hipérbole. O já mencionado Relatório do IPCC de 2018 (Global Warming 1.5oC) projeta que o mundo a 2oC em média acima do período pré-industrial terá quase 6 bilhões de pessoas expostas a ondas de calor extremo e mais de 3,5 bilhões de pessoas sujeitas à escassez hídrica, entre outras muitas adversidades. Desastre é a palavra que melhor define o mundo para o qual rumamos no horizonte dos próximos 10 anos (ou 20, pouco importa), e é exatamente o vocábulo empregado por Sir Brian Hoskins, diretor do Grantham Institute for Climate Change, do Imperial College em Londres: “Não temos evidência de que um aquecimento de 1,9oC é algo com que se possa lidar facilmente, e 2,1oC é um desastre” (Simms 2017).
Em consequência dessas altíssimas concentrações atmosféricas de CO2, o ano passado já foi o mais quente dos registros históricos na Europa (1,2oC acima do período 1981 – 2010!) e, mesmo sem El Niño, há agora, segundo o NOAA, 74,67% de chances de que 2020 venha a ser o ano mais quente em um século e meio de registros históricos na média global,[3] batendo o recorde precedente de 2016 (1,24oC acima do período pré-industrial, segundo a NASA). Não é no espaço deste artigo que se podem elencar os muitos indícios de que 2020 será o primeiro ou segundo (após 2016) ano mais quente entre os sete mais quentes (2014-2020) da história da civilização humana desde a última deglaciação, cerca de 11.700 anos antes do presente. Baste aqui ter em mente que, se março de 2020 for representativo do ano, já perdemos a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris, pois a temperatura média desse mês cravou globalmente 1,51oC acima do período 1880-1920.
O aquecimento global é uma arma apontada contra a saúde global. Como mostra Sara Goudarzi (2020), temperaturas mais elevadas favorecem a adaptação de micro-organismos a um mundo mais quente, diminuindo a eficácia de duas defesas básicas dos mamíferos contra os patógenos: (1) muitos micro-organismos não sobrevivem ainda a temperaturas superiores a 37oC, mas podem vir a se adaptar rapidamente a elas; (2) o sistema imune dos mamíferos perde eficiência em temperaturas mais elevadas. Além disso, o aquecimento global amplia o raio de ação de vetores de epidemias, como a dengue, zika e chikungunya, e altera a distribuição geográfica das plantas e animais, levando espécies animais terrestres a se deslocarem em direção a latitudes mais altas a uma taxa média de 17 km por década (Pecl et al. 2017). Aaron Bernstein, diretor do Harvard University’s Center of Climate, Health and the Global Environment, sintetiza bem a interação entre aquecimento global e desmatamento em suas múltiplas relações com novos surtos epidêmicos:[4]
“À medida que o planeta se aquece (…) os animais deslocam-se para os polos fugindo do calor. Animais estão entrando em contato com animais com os quais eles normalmente não interagiriam, e isso cria uma oportunidade para patógenos encontrar outros hospedeiros. Muitas das causas primárias das mudanças climáticas também aumentam o risco de pandemias. O desmatamento, causado em geral pela agropecuária é a causa maior da perda de habitat no mundo todo. E essa perda força os animais a migrarem e potencialmente a entrar em contato com outros animais ou pessoas e compartilhar seus germes. Grandes fazendas de gado também servem como uma fonte para a passagem de infecções de animais para pessoas”.
Sem perder de vista as relações entre a emergência climática e essas novas ameaças sanitárias, foquemos em duas questões bem circunscritas e diretamente ligadas à pandemia atual.
A pandemia doravante frequente
A primeira questão refere-se ao caráter, por assim dizer, antropogênico da pandemia. Bem longe de ser adventícia, ela é uma consequência, reiteradamente prevista, de um sistema socioeconômico crescentemente disfuncional e destrutivo. Josef Settele, Sandra Díaz, Eduardo Brondizio e Peter Daszak escreveram um artigo, a convite do IPBES, de leitura obrigatória e que me permito citar longamente:
“Há uma única espécie responsável pela pandemia Covid-19: nós. Assim como com as crises climáticas e o declínio da biodiversidade, as pandemias recentes são uma consequência direta da atividade humana – particularmente de nosso sistema financeiro e econômico global baseado num paradigma limitado, que preza o crescimento econômico a qualquer custo. (…) Desmatamento crescente, expansão descontrolada da agropecuária, cultivo e criação intensivos, mineração e aumento da infraestrutura, assim como a exploração de espécies silvestres criaram uma ‘tempestade perfeita’ para o salto de doenças da vida selvagem para as pessoas. (…) E, contudo, isso pode ser apenas o começo. Embora se estime que doenças transmitidas de outros animais para humanos já causem 700 mil mortes por ano, é vasto o potencial para pandemias futuras. Acredita-se que 1,7 milhão de vírus não identificados, dentre os que sabidamente infectam pessoas, ainda existem em mamíferos e pássaros aquáticos. Qualquer um deles pode ser a ‘Doença X’ – potencialmente ainda mais perturbadora e letal que a Covid-19. É provável que pandemias futuras ocorram mais frequentemente, propaguem-se mais rapidamente, tenham maior impacto econômico e matem mais pessoas, se não formos extremamente cuidadosos acerca dos impactos das escolhas que fazemos hoje”.
Cada frase dessa citação encerra uma lição de ciência e de lucidez política. A maior frequência recente de epidemias e pandemias tem por causas centrais o desmatamento e a agropecuária, algo bem estabelecido também por Christian Drosten, atual coordenador do combate à Covid-19 na Alemanha, além de diretor do Instituto de Virologia do Hospital Charité de Berlim e um dos cientistas que identificou a pandemia SARS em 2003 (Spinney 2020).
“Desde que tenha oportunidade, o coronavírus está pronto para mudar de hospedeiro e nós criamos essa oportunidade através de nosso uso não natural de animais – a pecuária (livestock). Essa expõe os animais de criação à vida silvestre, mantém esses animais em grandes grupos que podem amplificar o vírus, e os humanos têm intenso contato com eles – por exemplo, através do consumo de carne –, de modo que tais animais certamente representam uma possível trajetória de emergência para o coronavírus. Camelos são animais de criação no Oriente Médio e são os hospedeiros do vírus MERS, assim como do coronavírus 229E – que é uma causa da gripe comum em humanos –, já o gado bovino foi o hospedeiro original do coronavírus OC43, outra causa de gripe”.
Nada disso é novidade para a ciência. Sabemos que a maioria das pandemias emergentes são zoonoses, isto é, doenças infecciosas causadas por bactérias, vírus, parasitas ou príons, que saltaram de hospedeiros não humanos, usualmente vertebrados, para os humanos. Como afirma Ana Lúcia Tourinho, pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), o desmatamento é uma causa central e uma bomba-relógio em termos de zoonoses: “quando um vírus que não fez parte da nossa história evolutiva sai do seu hospedeiro natural e entra no nosso corpo, é o caos” (Pontes 2020). Esse risco, repita-se, é crescente. Basta ter em mente que “mamíferos domesticados hospedam 50% dos vírus zoonóticos, mas representam apenas 12 espécies” (Johnson et al. 2020). Esse grupo inclui porcos, vacas e carneiros. Em resumo, o aquecimento global, o desmatamento, a destruição dos habitats selvagens, a domesticação e a criação de aves e mamíferos em escala industrial destroem o equilíbrio evolutivo entre as espécies, facilitando as condições para saltos desses vírus de uma espécie a outra, inclusive a nossa.
As próximas zoonoses serão gestadas no Brasil?
O segundo ponto, com o qual concluo este artigo, são as consequências especificamente sanitárias da destruição em curso da Amazônia e do Cerrado. Entre as mais funestas está a crescente probabilidade de que o país se torne o foco das próximas pandemias zoonóticas. Na última década, as megacidades da Ásia do leste, principalmente na China, têm sido o principal “hotspot” de infecções zoonóticas (Zhang et al. 2019). Não por acaso. Esses países estão entre os que mais perderam cobertura florestal no mundo em benefício do sistema alimentar carnívoro e globalizado. O caso da China é exemplar. De 2001 a 2018, o país perdeu 94,2 mil km2 de cobertura arbórea, equivalente a uma diminuição de 5,8% em sua cobertura arbórea no período. “Extração de madeira e agropecuária consomem até 5 mil km2 de florestas virgens todo ano. Na China setentrional e central a cobertura florestal foi reduzida pela metade nas últimas duas décadas”.[5] Em paralelo com a destruição dos habitats selvagens, o crescimento econômico chinês desencadeou uma demanda por proteínas animais, incluindo as provenientes de animais exóticos (Cheng et al. 2007). Entre 1980 e 2015, o consumo de carne na China cresceu sete vezes e 4,7 vezes per capita (de 15 kg para 70 kg per capita por ano ao longo deste período). Com cerca de 18% da população mundial, a China era em 2018 responsável por 28% do consumo de carne no planeta (Rossi 2018). Segundo um relatório de 2017 do Rabobank, intitulado China’s Animal Protein Outlook to 2020: Growth in Demand, Supply and Trade, a demanda adicional por carne a cada ano na China será de cerca de um milhão de toneladas. “A produção local de carne bovina não consegue acompanhar o crescimento da demanda. Na realidade, a China tem uma escassez estrutural de oferta de carne bovina, que necessita ser satisfeita por importações crescentes”.
A cobertura vegetal dos trópicos tem sido destruída para sustentar essa dieta crescentemente carnívora, não apenas na China, mas em vários países do mundo e particularmente entre nós. No Brasil, a remoção de mais de 1,8 milhão de km2 da cobertura vegetal da Amazônia e do Cerrado nos últimos cinquenta anos, para converter suas magníficas paisagens naturais em zonas fornecedoras de carne e ração animal, em escala nacional e global, representa o mais fulminante ecocídio jamais perpetrado pela espécie humana. Nunca, de fato, em nenhuma latitude e em nenhum momento da história humana, destruiu-se tanta vida animal e vegetal em tão pouco tempo, para a degradação de tantos e para o benefício econômico de tão poucos. E nunca, mesmo para os pouquíssimos que enriqueceram com a devastação, esse enriquecimento terá sido tão efêmero, pois a destruição da cobertura vegetal já começa a gerar erosão dos solos e secas recorrentes, solapando as bases de qualquer agricultura nessa região (na realidade, no Brasil, como um todo).
Em decorrência dessa guerra de extermínio contra a natureza deflagrada pela insanidade dos ditadores militares e continuada pelos civis, atualmente o rebanho bovino brasileiro é de aproximadamente 215 milhões de cabeças, sendo que 80% de seu consumo é absorvido pelo mercado interno, que cresceu 14% nos últimos dez anos (Macedo 2019). Além disso, o Brasil tornou-se líder das exportações mundiais de carne bovina (20% dessas exportações) e de soja (56%), basicamente destinada à alimentação animal. A maior parte do rebanho bovino brasileiro concentra-se hoje nas regiões Norte e Centro-Oeste, com crescente participação da Amazônia. Em 2010, 14% do rebanho brasileiro já se encontrava na região norte do país. Em 2016, essa participação saltou para 22%. Juntas, a região norte e centro-oeste abrigam 56% do rebanho bovino brasileiro (Zaia 2018). Em 2017, apenas 19,8% da cobertura vegetal remanescente do Cerrado permanecia ainda intocada. A continuar a devastação, a pecuária e a agricultura de soja levarão em breve à extinção quase 500 espécies de plantas endêmicas – três vezes mais que todas as extinções documentadas desde 1500 (Strassburg et al. 2017). A Amazônia, que perdeu cerca de 800 mil km2 de cobertura florestal em 50 anos e perderá outras muitas dezenas de milhares sob a sanha ecocida de Bolsonaro, tornou-se, em sua porção sul e leste, uma paisagem desolada de pastos em vias de degradação.
O caos ecológico produzido pelo desmatamento por corte raso de cerca de 20% da área original da floresta, pela degradação do tecido florestal de pelo menos outros 20% e pela grande concentração de bovinos na região cria as condições para tornar o Brasil um “hotspot” das próximas zoonoses. Em primeiro lugar porque os morcegos são um grande reservatório de vírus e, entre os morcegos brasileiros, cujo habitat são sobretudo as florestas (ou o que resta delas), circulam pelo menos 3.204 tipos de coronavírus (Maxman 2017). Em segundo lugar porque, como mostraram Nardus Mollentze e Daniel Streicker (2020), o grupo taxonômico dos Artiodactyla (de casco fendido), ao qual pertencem os bois, hospedam, juntamente com os primatas, mais vírus, potencialmente zoonóticos, do que seria de se esperar entre os grupos de mamíferos, incluindo os morcegos. Na realidade, a Amazônia já é um “hotspot” de epidemias não virais, como a leishmaniose e a malária, doenças tropicais negligenciadas, mas com alto índice de letalidade. Como afirma a OMS, “a leishmaniose está associada a mudanças ambientais, tais como o desmatamento, o represamento de rios, a esquemas de irrigação e à urbanização”,[6] todos eles fatores que concorrem para a destruição da Amazônia e para o aumento do risco de pandemias. A relação entre desmatamento amazônico e a malária foi bem estabelecida em 2015 por uma equipe do IPEA: para cada 1% de floresta derrubada por ano, os casos de malária aumentam 23% (Pontes 2020).
A curva novamente ascendente desde 2013 da destruição da Amazônia e do Cerrado resultou da execrável aliança de Dilma Rousseff com o que há de mais retrógrado na economia brasileira. Já para a necropolítica de Bolsonaro, a destruição da vida, do que resta do patrimônio natural brasileiro, tornou-se um programa de governo e uma verdadeira obsessão. Bolsonaro está levando o país a dar um salto sem retorno no caos ecológico, de onde a necessidade inadiável de neutralizá-lo por impeachment ou qualquer outro mecanismo constitucional. Não há mais tempo a perder. Entre agosto de 2018 e julho de 2019, o desmatamento amazônico atingiu 9.762 km2, quase 30% acima dos 12 meses anteriores e o pior resultado dos últimos dez anos, segundo o INPE. No primeiro trimestre de 2020, que apresenta tipicamente os níveis mais baixos de desmatamento em cada ano, o sistema Deter, do INPE, detectou um aumento de 51% em relação ao mesmo período de 2019, o nível mais alto para esse período desde o início da série, em 2016. Segundo Tasso Azevedo, coordenador-geral do Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo no Brasil (MapBiomas), “o mais preocupante é que no acumulado de agosto de 2019 até março de 2020, o nível do desmatamento mais do que dobrou” (Menegassi 2020). Ao monopolizar todas as atenções, a pandemia oferece a Bolsonaro uma oportunidade inesperada para acelerar sua obra de destruição da floresta e de seus povos (Barifouse 2020).
Recapitulemos. O que importa aqui, sobretudo, é entender que a pandemia intervém no momento em que o aquecimento global e todos os demais processos de degradação ambiental estão em aceleração. A pandemia pode acelerá-los ainda mais, na ausência de uma reação política vigorosa da sociedade. Ela acrescenta, em todo o caso, mais uma dimensão a esse feixe convergente de crises socioambientais que impõe à humanidade uma situação radicalmente nova. Pode-se assim formular essa novidade: não é mais plausível esperar, passada a pandemia, um novo ciclo de crescimento econômico global e ainda menos nacional. Se algum crescimento voltar a ocorrer, ele será conjuntural e logo truncado pelo caos climático, ecológico e sanitário. O próximo decênio evoluirá sob o signo de regressões socioeconômicas, pois mesmo a se admitir que a economia globalizada tenha trazido benefícios sociais, eles foram parcos e vêm sendo de há muito superados por seus malefícios. A pandemia é apenas um entre esses malefícios, mas certamente não o pior.
Não são mais atuais, portanto, em 2020, as variadas agendas desenvolvimentistas, típicas dos embates ideológicos do século XX. É claro que a exigência de justiça social, bandeira histórica da esquerda, permanece mais que nunca atual. Além de ser um valor perene e irrenunciável, a luta pela diminuição da desigualdade social significa, antes de mais nada, retirar das corporações o poder decisório sobre os investimentos estratégicos (energia, alimentação, mobilidade etc.), assumir o controle democrático e sustentável desses investimentos e, assim, atenuar os impactos do colapso socioambiental em curso.
É do aprofundamento da democracia que depende crucialmente, hoje, a sobrevivência de qualquer sociedade organizada num mundo que está se tornando sempre mais quente, mais empobrecido biologicamente, mais poluído e, por todas essas razões, mais enfermo. Sobreviver, no contexto de um processo de colapso socioambiental, não é um programa mínimo. Sobreviver requer, hoje, lutar por algo muito mais ambicioso que os programas socialdemocratas ou revolucionários do século XX. Supõe redefinir o próprio sentido e finalidade da atividade econômica, vale dizer, em última instância, redefinir nossa posição como sociedade e como espécie no âmbito da biosfera.
*Luiz Marques é professor de história no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
Publicado originalmente na revista Cosmos & Contexto
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Notas
[1] Segundo a Chemical Data Reporting (CDR) da EPA, nos EUA, em 2016 havia 8.707 substâncias ou compostos químicos largamente comercializados, aos quais somos cotidianamente expostos, ignorando na maior parte dos casos seus efeitos e os de suas interações sobre a saúde humana e demais espécies.
<https://www.chemicalsafetyfacts.org/chemistry-context/debunking-myth-chemicals-testing-safety/>.
[2] <https://mission2020.global/testimonial/stocker/>.
[3] Cf. NOAA, Global Annual Temperature Rankings Outlook. Março, 2020
<https://www.ncdc.noaa.gov/sotc/global/202003/supplemental/page-2>.
[4] Cf. “Coronavirus, climate change, and the environment”. Environmental Health News, 20/III/2020.
<https://www.ehn.org/coronavirus-environment-2645553060.html>.
[5] Cf. “Deforestation and Desertification in China”.
<http://factsanddetails.com/china/cat10/sub66/item389.html>.
[6] Leishmaniosis, OMS, 2/III/2020 https://www.who.int/en/news-room/fact-sheets/detail/leishmaniasis.