Patricia Fachin e João Vitor Santos entrevistam Sergio Amadeu da Silveira, IHU-Unisinos, 11 de dezembro de 2020
Se neste ano os brasileiros viram os índices de desemprego e de pobreza urbana aumentarem, em 2021 "a crise social irá se acentuar", diz Sérgio Amadeu da Silveira à IHU On-Line. No campo da política, especula, "o maior combate será pela narrativa do que poderá tirar o Brasil da lama". Até lá, assim como fizeram nas eleições deste ano, os partidos vão girar em torno da disputa de três articulações que tentam se rearranjar tendo em vista o pleito de 2022. "As eleições foram o primeiro teste para três grandes tentativas de rearticulação: a primeira, foi a da extrema direita abalada pela incompetência de Bolsonaro e pelas disputas com os lavajatistas; a segunda, trata-se da tentativa de os neoliberais reconstruírem uma direita com cara de centro; a terceira, abriu a disputa pela liderança e pela pauta das esquerdas".
Nesta entrevista, Silveira também reflete sobre o protagonismo das campanhas coletivas nesta e nas próximas eleições, como uma alternativa aos partidos tradicionais, e os desafios políticos de construir projetos comuns. "O mandato coletivo é um importante resgate da política como algo de todas e todos e não dos profissionais. As campanhas coletivas trouxeram novas energias e possibilidades deliberativas para os partidos democráticos".
Sérgio Amadeu da Silveira é sociólogo e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo - USP. Atualmente é professor da Universidade Federal do ABC - UFABC, no estado de São Paulo. Foi um dos pioneiros no debate da inclusão digital no Brasil e pesquisou as práticas colaborativas e o software livre. Foi, ainda, presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Entre suas publicações, destacamos o livro Exclusão Digital: A Miséria na Era da Informação (São Paulo: Perseu Abramo, 1996).
IHU On-Line - Que balanço o senhor faz das eleições municipais deste ano?
Sérgio Amadeu da Silveira - As eleições ocorreram em meio a uma pandemia que fustiga mais os pobres e negros do que as camadas médias e os ricos. Ela ocorreu dois anos após a maioria dos eleitores ter escolhido Jair Bolsonaro, figura grotesca e obscura, para assumir a Presidência da República. As eleições se deram em um cenário de gravíssima crise econômica e desemprego que já era enorme antes de a pandemia se alastrar pelo país. Foram realizadas logo após o Supremo Tribunal Federal - STF buscar identificar e iniciar um processo criminal contra o núcleo duro de produtores de desinformação nas redes digitais, levando alguns membros do chamado ‘gabinete do ódio’ a fugirem do país.
As eleições foram o primeiro teste para três grandes tentativas de rearticulação: a primeira, foi a da extrema direita abalada pela incompetência de Bolsonaro e pelas disputas com os lavajatistas; a segunda, trata-se da tentativa de os neoliberais reconstruírem uma direita com cara de centro; a terceira, abriu a disputa pela liderança e pela pauta das esquerdas. Bolsonaro está estagnado politicamente. Eleitoralmente foi o grande derrotado. Quanto mais perde apoio político, mais se apega aos militares e aos fundamentalistas religiosos, principalmente da teologia monetária. A tentativa de construir uma saída neoliberal mais robusta e menos incapaz do que Bolsonaro, teve e tem no DEM e no PSD uma grande aposta. Esses partidos receberam a benção de banqueiros e da Globo. Ganharam ou mantiveram prefeituras importantes. Buscam articular Doria e o outsider querido de FHC, Luciano Huck.
Já a esquerda, começou a recuperar a votação das primeiras décadas do século XXI. O PT teve uma recuperação e conseguiu mais prefeituras e mais votos do que em 2016. O PSOL, que era muito pequeno, deu um grande salto em números absolutos e relativos, adquirindo mais influência do que efetivamente força parlamentar e número de prefeituras. A candidatura de Boulos em São Paulo projetou uma liderança nacional que adquiriu bastante prestígio. Já Lula continua forte entre os eleitores de esquerda, mas os ataques da mídia, da Globo visam anular a sua força, pois é o maior inimigo eleitoral da direita brasileira.
O PSB perdeu eleitorado e Ciro Gomes continua com sua estratégia errática de tentar se tornar o líder de uma centro-esquerda. Na realidade, Ciro vive a esquizofrenia de querer construir um neoliberalismo desenvolvimentista. O fato é que as disputas pela rearticulação dos três campos continuaram e se acentuaram.
A Globo e grupos jornalísticos ligados aos interesses do Capital Financeiro testam suas análises que no fundo são proposituras visando 2022. A primeira é dizer que se Bolsonaro é extrema direita, Lula seria a extrema esquerda, sendo ambos derrotados nas eleições. Insustentável. Lula nunca foi extrema esquerda, e a extrema esquerda brasileira nunca foi negacionista, nem articulou milícias criminosas, muito menos cultua a ignorância. Além disso, apesar da vontade, o PT e o PSOL cresceram nessas eleições em relação à anterior. A segunda, é propor que o eleitorado superou “a aventura”, com base no segundo turno das eleições da capital paulista. Olhando o mapa e comparando os números, é evidente que Covas venceu nas mesmas áreas em que Bolsonaro venceu em 2018. Boulos conseguiu vencer em grandes áreas da periferia. Em São Paulo, a maioria dos eleitores de Bolsonaro votaram em Covas. Mas o grande segredo dessas eleições é o crescimento das abstenções que, somadas com os votos em branco, superam 30% do eleitorado. Um deslocamento expressivo desse eleitorado para um dos campos de rearticulação pode dar a vitória em 2022.
IHU On-Line - Alguns analistas chamam a atenção para a vitória da centro-direita no Executivo e para a eleição de candidatos ligados a pautas sociais e movimentos, como o negro, no Legislativo. Como o senhor interpreta esses dois aspectos das eleições?
Sérgio Amadeu da Silveira - A chamada centro-direita ou a direita conservadora sempre foi bem-sucedida em eleições municipais. As máquinas locais e a força política dos ruralistas são decisivas no interior. As forças do clientelismo, do compadrio, se mantiveram, mudando de legendas partidárias, mas mantendo o seu curso conservador. Nessas eleições, dois partidos neoliberais pragmáticos, o DEM e o PSD se saíram muito bem. Grupos de direita como Movimento Brasil Livre - MBL também tiveram boa performance. Esses grupos praticam o novo clientelismo. Já em 2018, notamos uma gradual substituição de velhos cabos eleitorais pelo pagamento de youtubers e pelo impulsionamento de micropersonalidades de direita. Mas o fenômeno mais importante se deu nas esquerdas. Depois de ter sido destroçada municipalmente, em 2016, as esquerdas iniciaram sua recuperação eleitoral, começaram a ocupar as redes digitais e a disputar a atenção do público jovem. Além disso, o movimento antirracista, os grupos feministas, os defensores da causa LGBTI+ passaram a disputar a política institucional e isso fortalece as esquerdas.
A ideia de justiça e de equidade não está com as forças de direita. A direita defende a liberdade de exploração e essa ideia de iniciativa livre passava inclusive pela escravidão, pela posse de seres humanos. A luta antirracista e pela reparação de danos causados pelo racismo tem limites óbvios entre as forças da direita. O DEM tolera as cotas por interesses eleitorais. Luciano Huck distribui presentes aos pobres em seu programa na Globo, mas é contra o imposto sobre grandes fortunas. Em minha universidade, os conservadores tentaram impedir cotas para transgêneros. Obviamente, a direita irá montar os seus grupos antirracistas e seus grupos de feministas liberais. Isso é bom, por legitimar a luta específica. Mas a luta antirracista, antipatriarcal e pela diversidade é uma luta que só pode avançar na oposição ao neoliberalismo, face concreta e atual do capitalismo.
Luciano Huck distribui presentes aos pobres em seu programa na Globo, mas é contra o imposto sobre grandes fortunas - Sérgio Amadeu da Silveira
IHU On-Line - O que marcou, de outro lado, o segundo turno das eleições?
Sérgio Amadeu da Silveira - O eleitorado de classe média das grandes cidades votou na tentativa de garantir a volta à normalidade. Esqueceu que o Brasil é governado por Bolsonaro. Que existe pandemia. Que ela mata e que não há saída nos marcos do neoliberalismo. Esse foi o problema. Essas eleições deveriam ter sido transformadas na luta contra a gestão neoliberal e neofascista que está inviabilizando o país para as maiorias. Os ricos estão felizes porque estão mais ricos. O problema é que a pobreza urbana aumentou, as possibilidades de os jovens terem uma vida melhor, piorou. A pauta distributiva não teve tempo de ser maturada. Mais de um terço do eleitorado não votou em ninguém no segundo turno. Isso mostra um cansaço do processo democrático que colabora com o conservadorismo. A marca do segundo turno foi o cansaço cívico. Uma parte da sociedade ainda está sob os efeitos de 2018. Os seus resultados estão sendo disputados pelas três articulações que se rearranjam em direção às eleições de 2022.
A marca do segundo turno foi o cansaço cívico - Sérgio Amadeu da Silveira
IHU On-Line - O que diferencia os coletivos, como o coletivo Mulheres por Direitos, do PSOL, da chamada esquerda tradicional, mais centrada nos partidos tradicionais?
Sérgio Amadeu da Silveira – A primeira diferença está na pauta que coloca o feminismo no centro da política. É preciso lutar contra a exploração econômica, mas a exploração da mulher pelo patriarcado não deve ser aceita. A luta pelo espaço e pelos direitos das mulheres reforça e não diminui a luta contra as injustiças do capital. A segunda diferença é a tentativa de privilegiar a causa e não a personalidade ou o personalismo. Por isso, o mandato coletivo é um importante resgate da política como algo de todas e todos e não dos profissionais. Terceiro, a ideia de que é possível fazer política envolvendo as pessoas e com causas que mobilizem a sociedade, mesmo que isso seja muito difícil. As campanhas coletivas trouxeram novas energias e possibilidades deliberativas para os partidos democráticos.
O mandato coletivo é um importante resgate da política como algo de todas e todos e não dos profissionais - Sérgio Amadeu da Silveira
IHU On-Line – Quais são as diferenças entre os coletivos e os partidos de esquerda mais tradicionais especialmente no que diz respeito à abordagem de suas pautas?
Sérgio Amadeu da Silveira - Para se organizar um coletivo que funcione, é preciso ter um tema mobilizador e envolvente. É fundamental que sejam interagentes em torno de um processo e um conjunto de finalidades, além de projetos de poder pessoais. Em geral, a causa feminista, a luta antirracista e a luta socioambiental têm um fluxo de energia que gera um elo gravitacional importante e pode atrair muitos jovens e pessoas que queiram de fato mudar uma realidade, como ocorreu na campanha de vários coletivos nessas eleições municipais. Os partidos tradicionais estão com estruturas ossificadas, muito duras, muito comprometidas com aquilo que Lênin chamava de cretinismo parlamentar. Os coletivos não estão colocados em contraposição aos partidos. Eles estão colocados em confronto com o controle dos partidos pelos gabinetes dos parlamentares. Os coletivos necessariamente devem discutir e deliberar sobre a política, superando a ideia de que o importante é somente manter o espaço de poder. Uma cadeira no parlamento não pode apenas servir à construção de uma liderança. Deve servir também à organização social e à defesa de causas.
IHU On-Line - Quem são os protagonistas dos coletivos, quais são suas principais bandeiras e que novidades há no modo deles de fazer e compreender a política?
Sérgio Amadeu da Silveira - Existem diversas protagonistas e lideranças envolvidas na construção de coletivos de campanha e mandatos coletivos. Todavia, a maioria deles, nestas eleições, veio do movimento negro, da luta das mulheres negras, da luta feminista, do ambientalismo, do movimento popular e da luta pelo direito à educação. Existiram muitas outras pautas. Nas eleições de 2020 tivemos coletivos até em partidos de direita como o PSL. A maioria dos coletivos se lançou em partidos de esquerda: 99 eram do PSOL, 51 do PT, 23 do PCdoB, 11 do PDT, 9 do PSB, 8 da Rede, conforme o levantamento realizado pelo cientista político Guilherme Russo na base do Tribunal Superior Eleitoral - TSE.
Assim, nota-se que 67,3%, das candidaturas coletivas estavam concentradas em três partidos de esquerda, o PSOL, o PT e o PCdoB. Em geral, as pessoas que compõem esses coletivos têm uma visão de que a política é sinônimo de participação, uma contraposição à velha perspectiva liberal de Benjamin Constant que via na política um estorvo e que a escolha do político era tal como a escolha de um síndico. O coletivo quer que as pessoas se envolvam nas decisões políticas. Sem dúvida, também há o lado pragmático. Fazer uma campanha com mais pessoas pedindo votos e divulgando ideias tem mais chances de vitória.
IHU On-Line - Em quais pautas os coletivos precisam avançar?
Sérgio Amadeu da Silveira - As pautas que possuem potencial mobilizador nesta conjuntura já motivaram a construção de candidaturas coletivas, tais como a questão de raça, gênero e classe. Algumas já foram bem-sucedidas, foram eleitas. Considero que o espaço está aberto e ele será ocupado por diversos temas que possuem grandes possibilidades de distribuir argumentos e gerar engajamento, como a defesa da agricultura ecológica, a defesa das tecnologias livres e da soberania de software, a luta contra a uberização e precarização do trabalho, a defesa de regiões que estão sob ataque das corporações, entre outras possibilidades de formação de coletivos.
IHU On-Line - Por que, na sua avaliação, as candidaturas coletivas podem consolidar uma maior prática deliberativa e um fortalecimento da política? Seria essa a ‘política do século XXI’?
Sérgio Amadeu da Silveira - Imagine envolver duas centenas de pessoas dos quilombos de um Estado em um mandato coletivo com o objetivo de lutar no parlamento pelas comunidades. Uma vez eleitos, o representante escolhido para ocupar a cadeira parlamentar deverá discutir no mínimo com essas duas centenas como irão votar e se posicionar em torno de questões que estarão colocadas no parlamento. Isso gerará um aprendizado político, um debate político permanente, um fluxo entre as decisões e os seus membros. Em muitos momentos, haverá tensão, dissensão, crises, mas a deliberação não poderá ser suprimida, o debate não poderá ser escanteado, pois isso destruiria o coletivo.
Por isso, coletivos que só se juntam pragmaticamente para se eleger tendem a ter vida curta. O fundamental de um mandato coletivo é o debate e a disposição para realizar a sua finalidade. Um mandato tradicional é baseado no culto à personalidade do político ou da liderança. Esse político não precisa ter nenhum empenho, nem causa que não seja a dele. Por isso, temos o Centrão. Adere a quem lhe der os cargos e diretores de licitação dos órgãos públicos. Querem o melhor para cada um deles. São projetos de poder pessoal que alimentam a política de poder no capitalismo.
A esquerda precisa recarregar suas energias. É preciso aprender com os movimentos populares, com as comunidades tradicionais, com os povos da floresta - Sérgio Amadeu da Silveira
IHU On-Line - Em que aspectos as candidaturas coletivas podem significar uma renovação da esquerda na política? Como a própria esquerda mais hegemônica apreende esses movimentos coletivos?
Sérgio Amadeu da Silveira - A esquerda precisa recarregar suas energias. É preciso aprender com os movimentos populares, com as comunidades tradicionais, com os povos da floresta, com as torcidas organizadas, com os gamers, com os makers e com os hackers. A disputa pela hegemonia se dá pela cultura e pela força do exemplo. Veja o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST: ele se tornou o maior produtor de alimentos orgânicos na América do Sul. Se lutassem apenas no parlamento, se apenas elegessem deputados para lutar pela Reforma Agrária, certamente seriam um movimento sem força. O MST ocupa terras improdutivas e organiza os trabalhadores para plantar. Eles se organizam coletivamente, eles constroem laços de solidariedade e enfrentam o modo capitalista de produzir. Imagine o movimento de software livre. De que adiantaria ficar cobrando leis de apoio ao software livre se não tivéssemos comunidades criando e desenvolvendo suas soluções?
Precisamos reinventar as práticas da esquerda anticapitalista. É preciso lutar politicamente nas instituições e os mandatos coletivos são uma boa forma de fazer isso. Contudo, precisamos criar modos de produzir e fazer distintos do modo capitalista de operar. Precisamos construir coletivos de produção comum. Precisamos agir também com a força do exemplo.
Precisamos reinventar as práticas da esquerda anticapitalista. É preciso lutar politicamente nas instituições e os mandatos coletivos são uma boa forma de fazer isso - Sérgio Amadeu da Silveira
IHU On-Line - Os coletivos também se organizam em torno de pautas segmentadas, segundo sua identidade. De que modo essa forma de fazer política pode ser ampliada para uma perspectiva universal que se proponha a pensar um projeto para o país em torno do "comum"?
Sérgio Amadeu da Silveira - Pensar o comum é pensar projetos de construção coletiva que superem as grandes injustiças, as grandes degradações da vida e do nosso ambiente. É pensar que nem todas as trocas precisam ser simétricas. O universal esconde uma arrogância da civilização europeia que colonizou o planeta. Talvez seja necessário pensar a dignidade e a diversidade como valores fundamentais. O comum como política de Estado é algo a ser construído no enfrentamento do neoliberalismo. Mas temos visto políticas neoliberais serem substituídas por outras políticas neoliberais. Políticas do comum devem fortalecer soluções coletivas, solidárias e que possam ser replicadas amplamente.
O Estado tem agido para beneficiar os grandes grupos econômicos. Os Tribunais de Justiça, os Tribunais de Contas, os consultores e os auditores estão lá no Estado para garantir que cada centavo seja aplicado na reprodução do capitalismo de corporações. Imagine um financiamento direto para uma tribo indígena poder utilizá-lo para se comunicar melhor, para preservar mais o seu território? Que ideia louca, muitos diriam. Vocês repararam que causa estranheza agir pelo comum? Por que não construímos soluções tecnológicas cooperativadas que gerem recursos para comunidades em vez de concentrar rendas nos gigantes do capital?
Pensar o comum é pensar projetos de construção coletiva que superem as grandes injustiças, as grandes degradações da vida e do nosso ambiente - Sérgio Amadeu da Silveira
IHU On-Line - Que mudanças na legislação eleitoral são necessárias para garantir, na prática, a atuação política dos coletivos eleitos e não somente de um dos seus representantes?
Sérgio Amadeu da Silveira - Para garantir que os coletivos possam competir eleitoralmente com os nomes que queiram e para garantir que possam decidir o seu modo de debater e deliberar, é preciso apenas um projeto de lei que altere a Lei Eleitoral (que muda a cada eleição) e a Lei dos Partidos. A Constituição permite candidaturas coletivas desde que suas integrantes e seus membros sejam brasileiros e brasileiras maiores de 18 anos e sejam filiados ou filiadas a um partido político. Em nenhuma passagem da Constituição está escrito que os mandatos obrigatoriamente devam ser individuais. A lei que regulamenta as candidaturas coletivas pode ainda facultar aos mandatos a realização de um rodízio entre seus membros para a ocupação da cadeira no parlamento, segundo as regras definidas na lei. Nas próximas eleições poderíamos ter uma lei dos mandatos coletivos.
IHU On-Line - Defender a atuação efetiva dos coletivos na política, inclusive com previsão legal, significaria o fim dos partidos políticos? Por quê?
Sérgio Amadeu da Silveira – Não. Os coletivos podem revigorar os partidos. Partidos deveriam ter um programa geral, ser mais ideológicos, ser mais compromissados com seus princípios. Entretanto, os partidos de direita se tornaram alianças de coronéis pelo poder de seus grupos econômicos. Os partidos de esquerda se distanciaram dos processos deliberativos, da luta social concreta. Os coletivos podem alterar essa oligarquização. Podem ajudar a construir processos mais arejados e democráticos nos partidos. Contudo, os mandatos coletivos não podem resolver todas as mazelas da política. Isso é impossível.
IHU On-Line - A partir do resultado das eleições municipais, o que vislumbra para as eleições de 2022?
Sérgio Amadeu da Silveira - Conforme havia dito, acredito que está em curso uma disputa acirrada entre três articulações, a da extrema direita, a da direita neoliberal demotucana e a esquerda. Na extrema direita, os lavajatistas estão vendo corroer rapidamente a imagem de Sérgio Moro. Bolsonaro é cada vez mais refém dos generais de extrema direita descompromissados com o país e dos pastores neopentecostais. O capital financeiro e os ruralistas bancam Bolsonaro, mas podem se bandear caso a articulação demotucana se mostre consistente. Nesse campo, DEM e PSD estão com grande força, mas sem nomes do porte de Doria e Huck. Haverá um jogo de empurra-empurra neste campo da direita e da extrema direita. Já na esquerda, Lula tem o maior peso, mas não parece ser capaz de superar o entrave jurídico do golpismo que o impede de se candidatar. O PSOL, com Boulos, tem pouca força eleitoral se comparado com o PT. Ciro Gomes atua sem um foco estratégico e está se desgastando na esquerda. Talvez seu objetivo seja ser o centro sonhado pelo demotucanato, mas para isso terá que avançar seu neoliberalismo, o que o distanciará do eleitorado da esquerda.
A disputa pela motivação daqueles que votaram branco, nulo ou se abstiveram não pode ser esquecida, mas o maior combate será pela narrativa do que poderá tirar o Brasil da lama. A crise social em 2021 irá se acentuar. As eleições de 2022 chegarão em um país destroçado pelos militares neoliberais entreguistas e incompetentes que querem destruir os serviços públicos desde que poupem seus salários e benefícios.
O capitalismo não será derrubado, será corroído - Sérgio Amadeu da Silveira
IHU On-Line - Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos?
Sérgio Amadeu da Silveira - A saída para as mazelas do país é superar o sistema social que a reproduz. Isso implica em ir avançando para além do capitalismo. Primeiro, precisamos romper com o neofascismo que se encontra estacionado em Brasília. Segundo, precisamos organizar experimentos práticos do comum. Precisamos de cooperativas de produção que derrotem o trabalho precário com o trabalho coletivo e com práticas solidárias. Precisamos enfrentar as plataformas do capital com outras plataformas e soluções que disputem as visões de mundo. Quando a Revolução Francesa ocorreu, a Europa já era capitalista. A Revolução serviu para remover o entulho das velhas forças produtivas. Os burgos, o comércio e os burgueses foram desconstruindo o feudalismo enquanto o ocupavam. Precisamos construir modos de produção anti e pós capitalistas ainda no seu interior. O capitalismo não será derrubado, será corroído.
A banda larga precisa ser convertida em um serviço público essencial
As tecnologias precisam ser utilizadas para reduzir as iniquidades sociais
Patricia Fachin entrevista Sergio Amadeu, IHU-Unisinos, 6 de agosto de 2020
Apesar de o home office e o estudo on-line estarem em evidência neste período de quarentena e de várias empresas cogitarem a expansão desta modalidade de trabalho daqui para frente, o acesso assimétrico ao mundo virtual é outra faceta das desigualdades sociais e econômicas abissais que marcam a sociedade brasileira. A disparidade no acesso à internet é marcada pela qualidade da banda larga, que varia entre as periferias e as zonas nobres das cidades, e pela disponibilidade a dispositivos de acesso. De acordo com Sérgio Amadeu, que há anos participa de debates sobre a inclusão digital no Brasil, mais da metade dos brasileiros conectados, 58% deles, acessam a internet somente pelo celular. “Nas camadas mais pobres, 79% dos que ganham até um salário mínimo chegam à internet utilizando exclusivamente o telefone celular. Destes, mais da metade possui planos pré-pagos. Mesmo nos segmentos da classe média baixa que ganham entre dois e três salários mínimos, 60% acessam só pelo celular, e, daqueles que estão na faixa de três a cinco salários, 45% chegam à rede do mesmo modo”, informa. Esses dados, analisa, indicam que “é uma ilusão considerar que as pessoas têm condições adequadas de estudo em todas as residências”.
Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Amadeu reflete sobre o desenvolvimento da internet no Brasil nos últimos anos, as crenças que animavam os entusiastas das redes colaborativas, os desafios para superar inequidades sociais geradas pela digitalização, e os problemas relacionados ao acesso dos dados dos usuários, especialmente em decorrência da ampliação da educação a distância. Todas essas questões estão diretamente conectadas com as três crises da internet hoje: a da rede distribuída, a da participação e a do livre fluxo de dados. “Consideramos que uma rede distribuída era necessariamente uma rede democrática. Percebemos que isso não é verdadeiro. A arquitetura distribuída da internet pode distribuir a vigilância de todos os pontos da rede. Pode ser excludente na sua infraestrutura. Enfim, o acesso distribuído pode não ser universal, justo e democrático”, avalia.
IHU On-Line - A pandemia de covid-19 demonstrou, entre outras, a carência do Brasil em relação às tecnologias digitais. Quais são as principais limitações e desafios do país nesta área?
Sérgio Amadeu - O Brasil é um país com grandes assimetrias e carências. A internet não tem a mesma infraestrutura de acesso em todas as regiões. Pessoas negras e pobres não têm o mesmo acesso à internet que brancos e ricos. O mundo virtual pode ser tão assimétrico e segregador como nossos espaços urbanos. A banda larga nas periferias das grandes cidades não é a mesma que nas regiões nobres. Cidades-dormitórios ao redor das grandes cidades, com a pandemia e com o isolamento social, viram crescer os acessos à internet levando à queda na qualidade da banda larga. A infraestrutura instalada e vendida nessas regiões não conseguiu atender a demanda, pois já era ruim e ficou pior.
Enquanto mais de 90% de quem ganha acima de dez salários mínimos está conectado, somente 61% dos que ganham até um salário mínimo acessaram a rede - Sérgio Amadeu
Muitos governos iniciaram processos de educação a distância ignorando essa realidade. A pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil, realizada em 2019, apontava que 74% dos brasileiros acima de 10 anos haviam acessado a internet nos últimos de três meses. Todavia, enquanto mais de 90% de quem ganha acima de dez salários mínimos está conectado, somente 61% dos que ganham até um salário mínimo acessaram a rede. Uma das principais diferenças além da infraestrutura de banda larga diz respeito ao dispositivo de acesso. No país das assimetrias, 58% dos brasileiros conectados acessam a internet apenas pelo celular e somente 41% acessam pelo celular e pelo computador. Nas camadas mais pobres, 79% dos que ganham até um salário mínimo chegam à internet utilizando exclusivamente o telefone celular. Destes, mais da metade possui planos pré-pagos. Mesmo nos segmentos da classe média baixa que ganham entre dois e três salários mínimos, 60% acessam só pelo celular, e, daqueles que estão na faixa de três a cinco salários, 45% chegam à rede do mesmo modo. O celular é limitador para uma série de tarefas e de ações. A banda larga, infraestrutura básica das redes digitais, precisa ser convertida em um serviço público essencial, com metas de qualidade e universalização, tal como os serviços de luz e água. Por fim, afirmo que é uma ilusão considerar que as pessoas têm condições adequadas de estudo em todas as residências.
Nas camadas mais pobres, 79% dos que ganham até um salário mínimo chegam à internet utilizando exclusivamente o telefone celular - Sérgio Amadeu
IHU On-Line - Em uma entrevista que nos concedeu em 2007, o senhor chamou a atenção para o fato de que as novas tecnologias também geram exclusões. De lá para cá, quais são as exclusões mais recorrentes por conta do avanço tecnológico e como superá-las ou enfrentá-las, considerando a revolução tecnológica?
Sérgio Amadeu - O avanço do acesso às tecnologias no capitalismo gera inserções desiguais e baseadas no poder aquisitivo dos diversos segmentos sociais. Mas também estamos assistindo aos processos de transformação digital dos governos servindo apenas para a unificação de bancos de dados que visam eliminar pessoas dos programas sociais. A pesquisadora Virginia Eubanks analisou o processo de digitalização em alguns estados norte-americanos e mostrou como o argumento de combate às fraudes era utilizado para reduzir o número de atendimentos sociais. Isso está ocorrendo no Brasil. O governo Bolsonaro e sua doutrina neoliberal quer utilizar as tecnologias e sistemas algorítmicos para reduzir o gasto público e não para melhorar a qualidade do atendimento, nunca para aumentar a base de atendimento. Basta ver que o número-chave para o governo é o CPF. Querem ligar tudo à ideia de contribuinte e não à lógica do direito e da cidadania.
O neoliberalismo está utilizando as tecnologias para restringir o acesso aos direitos sociais e não para assegurá-los - Sérgio Amadeu
Se uma pessoa está em dívida com algum órgão do governo, ela logo terá bloqueado um direito ou recebimento de um benefício. O neoliberalismo está utilizando as tecnologias para restringir o acesso aos direitos sociais e não para assegurá-los. As tecnologias precisam e podem ser utilizadas para melhorar a vida dos segmentos mais pauperizados e para reduzir as iniquidades sociais. O problema é que em governos com a orientação neofascista e neoliberal, teremos o uso de tecnologias para beneficiar “os grandes”, as elites econômicas, o capital financeiro. Veja o que está ocorrendo com as câmeras de vigilância e seus sistemas de identificação automatizados em tempo real. Elas são utilizadas contra as classes perigosas, para a detecção de jovens negros. Elas possuem algoritmos de machine learning e estrutura de dados que reproduzem o racismo, ao considerar a cor da pele um elemento importante para se detectar um criminoso. As tecnologias de informação sob o ordenamento neoliberal estão ampliando o vigilantismo e a coleta de dados para fins comerciais. Elas precisam ser assumidas pelos movimentos sociais, pelas comunidades tradicionais, pelas universidades, que podem reconfigurá-las e reformatá-las para outros propósitos. Mas isso exigirá que boa parte da sociedade supere sua alienação tecnológica. Isso exigirá uma tecnopolítica que nos retire da ilusão de que tecnologias e corporações possuem uma neutralidade social.
IHU On-Line - Desde o surgimento da internet, havia uma expectativa de que a rede pudesse ser um ambiente colaborativo, que possibilitasse o desenvolvimento de novas atividades, inclusive, em relação ao trabalho. Apesar das inúmeras vantagens e facilidades que a internet possibilitou aos usuários, alguns teóricos chamam a atenção para o fato de que grandes corporações lucram muito com suas empresas, e inúmeros trabalhos que dependem de aplicativos continuam precarizados. Como o senhor vê esse quadro, considerando as expectativas iniciais e a atual realidade?
Sérgio Amadeu - De fato a internet trouxe uma grande inversão dos fluxos informacionais. Falar não é mais o problema. O difícil é ser ouvido. A economia da difusão foi superada pela economia da atenção. A internet permitiu emergir uma explosão de criatividade. Além disso, diversos movimentos passaram a se articular pelas redes digitais. Mas a internet, hoje, vive três crises principais, não exclusivas: a crise da rede distribuída, a crise da participação e a crise do livre fluxo de dados.
A internet, hoje, vive três crises principais, não exclusivas: a crise da rede distribuída, a crise da participação e a crise do livre fluxo de dados - Sérgio Amadeu
A primeira delas se dá com a crença que muitos de nós tivemos com a arquitetura das redes distribuídas. Consideramos que uma rede distribuída era necessariamente uma rede democrática. Percebemos que isso não é verdadeiro. A arquitetura distribuída da internet pode distribuir a vigilância de todos os pontos da rede. Pode ser excludente na sua infraestrutura. Enfim, o acesso distribuído pode não ser universal, justo e democrático.
A segunda crise é a do ideal de participação. Alguns acreditavam que a interatividade e as articulações que a internet assegurava seriam utilizadas para fomentar as forças que defendem uma sociedade participativa e autônoma. Logo ficou nítido que muitos grupos que atuam na rede são neofascistas, racistas e misóginos. Eles buscam suprimir a diversidade e a participação dos outros. Pense nas redes bolsonaristas que defendem a tal liberdade de explorar e massacrar o diferente, o pobre, o homossexual, que defendem um fundamentalismo religioso interessado e cínico. Isso levou muitas pessoas a desconfiarem da participação. Tal sentimento pode ser legítimo, mas é desastroso. A participação e a autonomia das trabalhadoras, dos precarizados, das mulheres, dos negros, das comunidades indígenas é o caminho para superarmos as pulsões de morte do neoliberalismo e de sua vertente fascista.
A terceira crise que destaco é denominada de conflito do livre fluxo de dados. Sem dúvida, para a internet existir, ela deve continuar transnacional. Alguns dados e metadados são indispensáveis à sua existência. Entretanto, nem todos os dados são necessários, essenciais e pertinentes ao funcionamento de uma internet livre e planetária. Por isso, o livre fluxo de dados é a política das grandes plataformas que querem extrair os dados de todas as populações do mundo e concentrá-los em seus data centers que irão processá-los e analisá-los com o objetivo de gerar lucros descomunais para as corporações do mundo rico e do seu novo concorrente chinês. Não tem sentido defender que os dados das crianças brasileiras sejam entregues ao Google e à Microsoft. Não é nada seguro para a nossa sociedade que as corporações de biotecnologia e de inteligência artificial coletem dados de DNA da população brasileira. Enfim, a internet está sendo utilizada pelas grandes corporações para obterem um excedente de dados que permitam extrair padrões de segmentos, microssegmentos e de todos os indivíduos conectados.
A internet está sendo utilizada pelas corporações para obterem um excedente de dados que permitam extrair padrões de segmentos, microssegmentos e de todos conectados - Sérgio Amadeu
Essas crises precisam ser enfrentadas. Acredito que chegou a hora de regular as plataformas digitais. Precisamos mais do que nunca exigir a abertura do conhecimento e dos códigos que estruturam as redes digitais. Também precisamos fomentar que associações e movimentos criem data centers comunitários e que organizem o valor dos dados para o enriquecimento das localidades e das comunidades. Teremos que enfrentar a nova fase do capitalismo neoliberal, a fase do neocolonialismo digital.
IHU On-Line - Como o senhor interpreta o crescimento e a expansão de empresas de tecnologia neste momento de pandemia e por que, na sua avaliação, elas atuam como “novos colonizadores”?
Sérgio Amadeu - Na pandemia, as grandes plataformas digitais cresceram muito. Os dados são assustadores. Nos três primeiros meses de 2020, o Google cresceu 13%, a Microsoft 15%, o Facebook 18% e a Amazon 26% em relação ao mesmo período do ano anterior. Muitas escolas aderiram acriticamente a essas plataformas cujo principal modelo de negócios é a venda de dados e amostras dos seus usuários para o marketing. Dados das relações e do desempenho didático-pedagógico das nossas crianças e adolescentes foram entregues sem que isso fosse considerado um problema. Imagine se o Congresso dos Estados Unidos permitiria que uma empresa brasileira coletasse dados dos estudantes norte-americanos e que os hospedasse no Brasil, tendo qualquer controvérsia jurídica decidida na Vara de Pinheiros do Poder Judiciário paulista. Pense se a Rússia ou a China permitiria que os dados da vida escolar de seus adolescentes fossem hospedados em outro país. Lamentavelmente, a mente colonizada enaltece o colonizador. Os pesquisadores do site Educação Vigiada observaram que aproximadamente 60% das universidades brasileiras entregaram para Google e Amazon a gestão das caixas postais de seus professores, técnicos e estudantes. Durante a pandemia, o Google Meet obteve três milhões de novos usuários por dia. Antes de fugir para os Estados Unidos, o ex-ministro da Educação, Weintraub, mandou publicar no site do MEC um release da Microsoft louvando a entrega dos dados do Sisu para a nuvem da empresa norte-americana. Na colônia digital, o MEC diz que é mais barato e mais seguro entregar os dados do desempenho escolar de nossos jovens para a empresa estadunidense. A colônia dataficada não consegue nem mesmo processar os seus dados, ela deve enviá-los ao colonizador.
Nos segmentos da classe média baixa que ganham entre dois e três salários mínimos, 60% acessam só pelo celular - Sérgio Amadeu
IHU On-Line - Que diferenças e semelhanças há na atuação e expansão das empresas de tecnologia americanas GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) e chinesas BATX (Baidu, Alibaba, Tencent e Xiaomi)? O que a disputa internacional entre esses grupos representa?
Sérgio Amadeu - A China é um país autoritário e de economia neoliberal. Os Estados Unidos são um país neoliberal que ainda consegue manter eleições restritas em que somente dois partidos conseguem disputar efetivamente o poder de Estado, uma duarquia se alterna no poder. Os EUA são uma democracia fragilizada e carcomida pelo dinheiro que se baseia em uma guerra permanente contra a estruturação de um poder mais equitativo e democrático em escala global. As empresas de ponta dos dois países disputam os dados do mundo para alimentar suas vendas de amostras ao marketing.
Na geopolítica tecnológica, a China está na frente na disputa pelo 5G e emparelhou com os EUA na chamada inteligência artificial e na computação quântica. Os EUA não têm o menor prurido de abandonar os princípios liberais da competição econômica e substituí-los pelo argumento de segurança e de combate à espionagem para proibir a venda de produtos da Huawei. Estamos caminhando para a queda do império norte-americano. Essa guerra está apenas no seu início. Temo que ela não fique restrita apenas às batalhas comerciais. A supremacia tecnológica dos EUA foi quebrada. Viveremos tensões, escaramuças e inúmeras batalhas de guerras híbridas. A militarização da internet como área vigiada por forças de segurança e agências estatais se ampliará.
A China está na frente na disputa pelo 5G e emparelhou com os EUA na chamada inteligência artificial e na computação quântica - Sérgio Amadeu
IHU On-Line - Como fazer frente a essa situação, se o mundo está se tornando cada vez mais dependente das tecnologias?
Sérgio Amadeu -O problema não é a tecnologia móvel, nem a computação. A grande questão é o ordenamento neoliberal que conduz as invenções tecnológicas para seus modelos de negócios baseados na busca de vencer a qualquer custo a concorrência, mesmo onde ela nunca existiu. O modelo de negócios baseado na extração, armazenamento, processamento e análise de dados de todas e todos fez com que o principal mercado da economia informacional seja o mercado de dados pessoais. Os dados são necessários à extração do padrão de comportamento de cada uma ou um de nós. Esses padrões de comportamento, sentimento e percepção, visam atingir as possibilidades preditivas para os sistemas algorítmicos controlados pelas grandes corporações. Assim, o atual capitalismo vive permanentemente do futuro.
Nada nos obriga a aceitar esse modelo. Podemos conviver com ele, mas deveríamos articular nossos movimentos e nossa criatividade para montar outros caminhos que incorporem outras cosmologias. Podemos atuar com dados que não sejam comercializados, nem busquem modular comportamentos de modo a ampliar a dependência das pessoas ao capital. Por exemplo, nenhum grande problema tecnológico impede o desenvolvimento e lançamento de aplicações que sejam de propriedade dos trabalhadores que querem prestar serviços de entrega urbana. A ideologia da neutralidade técnica e a alienação tecnológica é nosso maior adversário. Obviamente não tenho nenhuma ilusão na elite econômica brasileira que vê em nosso país um território de exploração, uma colônia. Acredito que está chegando a hora de os movimentos sociais e as comunidades tradicionais perceberem que as tecnologias são elementos fundamentais dessa guerra contra o neoliberalismo e contra o neofascismo.
A ideologia da neutralidade técnica e a alienação tecnológica é nosso maior adversário - Sérgio Amadeu
IHU On-Line - A internet e as redes sociais estão cada vez mais presentes na vida das pessoas, tanto nos momentos de trabalho, quanto nos de lazer. A que razões o senhor atribui esse fenômeno para além do momento atual?
Sérgio Amadeu - As redes sociais permitiram às pessoas obterem inúmeras vantagens das interações online. O problema é que as grandes corporações utilizam técnicas de fidelização e de atração que são voltadas ao consumo em escala jamais vista. Os perfis de cada pessoa são alimentados com novos dados que são tratados por sistemas algorítmicos de aprendizagem de máquina com o objetivo de reconfigurar os indivíduos como sujeitos de consumo. Por isso, a espetacularização não é uma tese superada. Ela é o cotidiano das redes sociais. As pessoas tornam suas vidas um espetáculo. Afinal, somos cada um de nós uma empresa, um empreendimento. Assim, o neoliberalismo vai se agigantando. Você é um espetáculo, você é um empreendedor de si. Basta ver como o Facebook é limitado. Compare com a web, com o conteúdo dos sites e verá que a arquitetura oferecida por Zuckerberg é restrita e chata, mas como todas e todos estão por lá, em fotos e fatos, temos que produzir ali o nosso sujeito para nos apresentar vivos para os outros.
A espetacularização não é uma tese superada. Ela é o cotidiano das redes sociais. As pessoas tornam suas vidas um espetáculo - Sérgio Amadeu
IHU On-Line - Em artigo recente, o senhor chamou atenção para a disseminação de inúmeros dados dos usuários para empresas de tecnologia, especialmente neste momento. Quais são os riscos que vê nesse processo?
Sérgio Amadeu - O capitalismo atual tornou os dados um ativo de grande valor. Assim, cada clique que damos, cada site que visitamos, cada segundo que permanecemos em uma página ou observando um perfil em rede social, está sendo computado, capturado, coletado. Eles permitirão que modelos estatísticos possam tentar prever nossos próximos passos e nossas vontades. Assim, a rede social, o mecanismo de busca pode nos vender. Pode vender nossos gostos e nossas vontades para quem pode nos oferecer esses produtos. O problema é que essas plataformas encurtam demasiadamente a realidade, elas modulam nosso comportamento controlando nosso olhar. Isso nos empobrece. Além disso, não é saudável para nenhum de nós que as corporações saibam tudo ou quase tudo sobre nós. Isso nos fragiliza economicamente, socialmente e politicamente.
IHU On-Line - Nas últimas semanas, várias empresas suspenderam a publicidade em algumas redes sociais, como o Facebook, o Twitter e o YouTube, por conta da propagação de conteúdos racistas nas redes sociais, participando da campanha Stop Hate For Profit (Pare de lucrar com o ódio, em tradução livre), exigindo que as empresas tomem medidas em relação às mensagens divulgadas nas redes. Como o senhor avalia esse boicote? Que consequências práticas ele pode gerar?
Sérgio Amadeu - Acho que muitos movimentos interessantes estão surgindo nas redes depois do susto e da suspensão da realidade que tivemos e ainda temos com as ondas de desinformação e de proliferação do discurso de ódio. Acho que as resistências começam a brotar e a se transformar em máquinas de combate e de defesa da diversidade e dos direitos democráticos. Quem iria imaginar que as câmeras de segurança que estão ocupando as cidades seriam usadas para identificar os policiais militares que assassinam jovens negros? Quem poderia prever que as milícias digitais seriam enfrentadas pelas torcidas organizadas que se articularam pelo mesmo cliente de mensagens instantâneo que os bolsominions? Quem pensaria que os entregadores e motoboys que arriscavam suas vidas para atender as camadas médias iriam se articular pelas redes digitais e enfrentar as plataformas? Os neoliberais declararam que os direitos acabaram e que a luta dos trabalhadores morreu? Será? Tudo indica que não. Enquanto Bolsonaro e seus generais entreguistas afundavam o país nas carreatas da morte, enquanto distribuíam cloroquina e falavam que a covid-19 era uma ‘gripezinha’, os movimentos sociais se organizaram e criaram redes de solidariedade para a população abandonada pelo governo. Só o Mapa Colaborativo já registrou mais de duas mil ações de apoio e de enfrentamento da pandemia realizada pelos coletivos, movimentos sociais e universidades. Acho que coletivos de mobilização digital antifascistas irão surgir e começar a enfrentar e a derrotar o neofascismo que atualmente é uma das maiores expressões do neoliberalismo.
Quem iria imaginar que as câmeras de segurança que estão ocupando as cidades seriam usadas para identificar os policiais militares que assassinam jovens negros? - Sérgio Amadeu
IHU On-Line - Como avalia, de outro lado, o crescente uso da rede social Parler, que permite a publicação de opiniões e ideias com ampla liberdade de expressão?
Sérgio Amadeu - Essa rede é minúscula no Brasil. Trata-se de uma rede da extrema direita norte-americana que se empolga com o racismo, com a discriminação, com a misoginia, com a homofobia, com a supremacia branca, com o assassinato de pobres e negros. Ela mostra a falácia da chamada liberdade dos liberais. Rir de uma pessoa que tem uma deficiência física não é liberdade de expressão; é agressivo, é criminoso, é humilhante. A rede Parler reúne imbecis que gostam de humilhar, mentir e agredir. Isso não é liberdade de expressão; é liberdade de agressão. Esses integrantes da extrema direita estadunidense cultuam a ignorância e querem substituir o debate racional baseados em evidências factuais pela crença em valores reacionários. No Brasil, o gabinete do ódio, as hordas e milícias bolsonaristas, se servem do negacionismo, da cultura da ignorância e se organizam como hordas protofascistas. Eles seriam os únicos interessados em uma rede social de bestializados. Serão derrotados pela história. Ninguém aguenta tanta ignorância, como dizia o velho Chico, “tanta mentira, tanta força bruta”.