Paulo Silva*
LONDRINA – Em muitos sentidos, a Revolução Haitiana (1791-1804) foi uma ruptura especial, infelizmente tão pouco estudada. Aquela única revolução anticolonial e antiescravagista protagonizada pelo povo negro, em seu tempo, deixou lições fundamentais sobre tática e estratégia para os movimentos antirracistas e para os revolucionários do presente como um todo. Assim como impactou com força imprevisível as bases filosóficas do iluminismo europeu [1], tão defensor de uma liberdade abstrata nas metrópoles e tão conivente com o escravismo colonial - sistema produtivo baseado na escravização de africanas e africanos arrancados de seus territórios para a Américas e Caribe e perfeitamente integrado à economia-mundo, ou seja ao capitalismo mercantilista no Atlântico[2].
O maior ponto de ruptura da Revolução que sacudiu a então colônia de São Domingos, logo depois e sob influência direta da Revolução Francesa (França da qual a ilha era uma colônia açucareira altamente rentável) foi que, diferentemente de revoltas de escravizados registradas até aquele momento, os revolucionários haitianos não se pautaram pela bandeira de “Voltar para casa, a África, de volta a nossas raízes”. Os revolucionários haitianos queriam fazer da ilha de São Domingos uma República ali, na terra de sua subjugação e dor, porque entenderam que se tratava de construir um mundo novo a partir do seu próprio povo e do lugar que ocupavam no mundo.
Há, assim, uma ruptura profunda com as concepções de raízes atreladas a um objeto-lugar que já foi perdido.
O processo revolucionário negro, antiescravista, anticolonial e republicano recusou explicitamente a ideologia dominante na época, segundo a qual os povos negros das colônias das Américas e Caribe não pertenciam àqueles lugares, portanto, ao supostamente não terem raízes locais, não poderiam ser sujeitos de transformação. Em segundo lugar, numa colônia com grande contingente de população mestiça, a Revolução Haitiana se chocou frontalmente com o conceito racista colonizador que até ali diferenciava também os seres humanos negros pelas diversas tonalidades de pele. O processo unificou, não sem contradições, todos os afrodescendentes num único sujeito revolucionário anticolonial e abolicionista.
Revolta em São Domingos
Tudo começou em 1791 com uma revolta multitudinária de escravizados (calculam-se 100 mil), liderados pelo dirigente político e militar Toussaint Loverture. A revolta pôs fim ao sistema escravista e (literalmente) aos escravocratas dos grandes latifúndios do Norte da Ilha. O vudu teve papel organizador importante, foi a ferramenta de organização que possibilitou o planejamento. Quando as revoltas contra a morte de Vicent Ogé emergiram, espontâneas e autônomas, isso foi capturado pela organização ampla que já existia e estava sendo gestada[3].
Em 1792, a Assembleia Nacional francesa concedeu direitos aos ex-escravizados livres em todas as suas colônias. (A Assembleia francesa havia recebido calorosamente a delegação de Saint Domingues. Vitoriosos em casa, eles foram recebidos como iguais na França revolucionária.) Em 1793, depois da vitória dos haitianos contra os exércitos franceses, com a invasão inglesa e espanhola, Sonthonax, administrador jacobino enviado ao Haiti, se viu obrigado a abolir a escravidão na colônia para não perder ainda mais território para as potências invasoras e atrair a causa dos revolucionário para a República metropolitana, que agora radicalizava a revolução decapitando o rei.
A guerra não se encerraria ali, pois, com o golpe contrarrevolucionário de Napoleão Bonaparte, este enviaria, em 1801, sob comando de Leclec, um exército para aniquilar todos na ilha, homens, mulheres e crianças, para reintroduzir ali a escravidão. Napoleão, Leclerc e toda a elite europeia, hegemônica naquele contexto atlântico de capitalismo que transitava do mercantilismo à fase industrial, entraram em pânico. Sabiam que não poderiam recolocar os grilhões, algemas, troncos e chicote. Era preciso uma guerra total. Isso impõe aos revolucionários o seu lema Liberdade ou Morte. Batalha após batalha a revolução haitiana venceu.
Os ex-escravizados revolucionários triunfaram não apenas militarmente, mas ideologicamente, num campo que até hoje pulsa e nos adverte. Declararam a independência da ilha em 1803, acabaram com a escravidão e rebatizaram o país de Haiti – nome dos indígenas exterminados pela ocupação europeia. Nos momentos finais da revolução, quando se veem no dilema de matar ou não todos os brancos, tanto os colonialistas escravocratas derrotados como também os poloneses e outros que lutaram ao lado da revolução, os revolucionários tratam os últimos como exceção. A solução que dão é revolucionária: o artigo 4 da Constituição Haitiana de 1804 diz: “O Haiti é uma república negra, todos os cidadãos do Haiti, independentemente da cor da sua pele, são negros”. O segundo ponto avançadíssimo da carta é aquele que proclama que a nova república negra seria a nação de todos os negros que lutam pela liberdade no mundo. Os haitianos são os primeiros internacionalistas revolucionários.
Toussaint Louverture, em quadro provavelmente pintado durante sua prisão na França
Contradições do processo
Destaco seis principais contradições do processo haitiano. No plano interno, em São Domingos, a primeira contradição importante que vai ser explorada pelos revolucionários é entre homens livres e os assim chamados libertos ‘de cor’. Estes últimos constituíam uma segunda classe rica, colonos e donos de escravos e que reclamavam mais participação na gestão colonial, ameaçando colonos brancos e homens brancos que não eram colonos. Havia também muitos, em sua maioria homens e mulheres livres de cor, que eram pobres obviamente. “Livres”, é bom lembrar, eram aqueles que já nasciam livres, muitos até eram livres havia gerações, com oportunidade de enriquecimento. Os “libertos” eram aqueles que tinham sido escravizados e conquistaram a liberdade (no mais das vezes, liberdade comprada por amigos, ou parentes). Portanto, embora fossem negros, existia uma multiplicidade de contradições nesse setor. Essa massa de pessoas livres de cor totalizava, antes da revolução em 1791, segundo a historiografia, 30 mil pessoas (frente a perto de 500 mil escravizados).
Havia contradições com os brancos que não possuíam escravos, não eram colonos e, pobres, em grande parte funcionários públicos do governo da metrópole ou soldados – conjunto que, mesmo não suportando a ascensão de uma classe bem posicionada de homens livres de cor ricos, também tinham suas contradições e conflitos com os colonos. Já uma terceira contradição muito aproveitada pelos revolucionários foi o conflito dos colonos brancos com o governo francês. Os colonos desejavam o controle absoluto tanto sobre a ilha como projetar esse poder na metrópole, visto que São Domingos era cada vez mais a jóia francesa do Caribe, colônia mais produtiva, que sustentava as pretensões coloniais do império francês. Somavam-se 30 mil brancos na ilha entre funcionários, soldados, fazendeiros, senhores e pobres, donos de escravos ou não.
No plano externo há duas contradições importantes. A primeira, no conjunto da estrutura social-política e econômica francesa, entre os interesses da colônia e os da metrópole. A relação entre colônia e metrópole era mediada pelo “exclusivo colonial”, uma regra que forçava a colônia a comprar produtos da metrópole a alto custo e, na mesma medida, obrigava a colônia a vender seus produtos somente para a metrópole. Ora, aos colonos interessava vender seus produtos livremente para qualquer país, almejavam a abertura dos portos para além da metrópole.
A cisão entre colonos brancos e o conjunto das forças políticas da metrópole, que estava em ebulição revolucionária contra o Antigo Regime, agrava essas relações de confiança entre brancos colonos e metropolitanos. Se a promessa de igualdade, liberdade e fraternidade entre homens mobiliza a França e anima os brancos metropolitanos, os colonos brancos, além de verem a oportunidade de ganhar mais poder na metrópole e neutralizar qualquer pretensão mais ampla de democracia para as massas, também vêem a chance de afirmar seus ideais racistas. O projeto dos colonos para obter domínio completo era nítido: o controle do poder na França deveria ter uma linha linha de cor, em que brancos estivessem por cima e negros, embaixo. Isto os faria expropriar a já muito próspera classe negra de São Domingos.
Os colonos tensionavam a Assembléia Nacional da jovem República francesa para o campo conservador, pois não admitiam o reconhecimento dos direitos políticos dos homens de cor. Aproveitavam de sua posição distante da metrópole para defender seu projeto racista, ameaçando com um possível movimento separatista de independência colonial – nos moldes do que tinham feito os colonos dos Estados Unidos, antigas colônias inglesas nas Américas. Esse fator era central, era real uma possibilidade de independência da colônia e os fazendeiros brancos não iriam medir esforços para fazê-lo.
Para os homens livres de cor em ascensão, com riqueza e distinta influência política na colônia e na metrópole, a revolução era a garantia de uma plena cidadania francesa, a possibilidade de aumentar seu poder na colônia e até mesmo de colocar em prática um projeto de controle total dos negócios coloniais, conslidando-se como burguesia negra na ilha, equiparada em poder e influência aos colonos brancos. Ou seja, defendiam seu direito pleno de obter propriedade. O que nem a colônia, nem a metrópole contavam era com que a revolução escrava na ilha tivesse a força de reposicionar todo o tabuleiro do processo, tornando os escravizados a força mais radical no cenário conturbado.
A segunda contradição no plano externo é a importante disputa entre as potências européias pela hegemonia global e que coloca em rota de colisão frontal os interesses desses grupos franceses, com a Inglaterra e a Espanha pelo controle da ilha incendiada. Esse fator é o que decide a relação de forças em vários momentos da revolução, e foi exemplarmente explorado pelos revolucionários negros.
A sexta e última contradição, a mais elementar no processo, certamente é entre escravizados e senhores fazendeiros (colonos brancos). Os escravizados somavam 500 mil pessoas e sabiam de todas essas contradições no seio da classe dos senhores de escravos – que não era homogênea, que nem todos eram brancos e que, no interior das relações em São Domingos e no exterior, havia importantes tensões sobretudo com a explosão da revolução francesa. Os escravizados sabiam que a metrópole estava em chamas e que era preciso aproveitar a crise. Num verdadeiro manual prático de tática e estratégia, sabiam em que momento se aliar e em que momento romper as antigas alianças e se reposicionar na guerra.
Revolução contra o quê e quem?
É falsa a simplificação de que houve uma revolução de negros contra brancos. O projeto revolucionário era acabar com o poder colonial, escravagista, portanto ao capitalismo na forma de seu tempo. A revolução do Haiti destituiu não só a terra e o sonho coloniais franceses nas Américas e Caribe, mas também o poder da branquitude europeia colonialista de operar a racializão a favor da superexploração, pelo menos na ilha. O Haiti foi a implosão do sistema colonial-escravista em suas fronteIras, mas também, simbolicamente, do que se denominou posteriormente de “branquitude”, ideologia que tenta situar os brancos fora do processo de racialização.
No âmbito em que operavam os revolucionários haitianos para constituir uma nação, se toda a escravidão era regida pela lógica de que todos os brancos são superiores e portanto naturais de direito sobre os negros, então todos os brancos deveriam deixar de existir, mas não numa eliminação física de guerra total, como a que pautou o exército francês colonial. Após a revolução, os brancos deixaram de existir em solo haitiano, não pelo fato de que foram mortos e aniquilados, mas pelo fato de que foram destituídos do poder.
A precoce experiência haitiana radicalizou (portanto questionou na raiz) a ideia revolucionária de liberdade, igualdade, fraternidade – derivada do iluminismo europeu e cantada em verso e prosa nas revoluções burguesas por todo o mundo. Porque pôs em prática, sem mediações, a igualdade e fraternidade entre os seres humanos, com a liberdade de absolutamente todos, sem racialização. Não foi por acaso seu isolamento, no contexto geopolítico de transição hegemônica em que se deu; não foi por acaso sua perseguição por meio de embargos econômicos das potências globais da época, escravistas.
Fica, no entanto, quase três séculos depois, num mundo digital, globalizado e não menos racista, a pulsão de energia revolucionária que vem do Haiti de Louverture e Dessaline e tantas revolucionárias negras. Seu exemplo atravessa as lutas negras afrodiaspóricas. O racismo nos leva ao desejo de buscar pelas “verdadeiras raízes do negro”, mas não em nosso território, onde está escrita nossa História dos últimos três a quatro séculos, e marcados os passos dos nossos antepassados, o seu sangue derramado e seus sonhos. O racismo, funcional ao capitalismo de ontem e de hoje, nos força a buscar em algum lugar, numa constante e permanente diáspora sentimental, um lugar vazio e inexistente que já foi perdido pelo fato de que nunca existiu. Devemos radicalmente recusar essa ilusão, como fizeram os escravizados revolucionários de São Domingos. Se aqui não é nosso lugar, faremos que seja.
[1] Na definição de Luiz Felipe de Alencastro, O Trato dos Viventes – Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, Cia das Letras, São Paulo, 2000.
[2] Ver Buck-Morss, Susan, Hegel e o Haiti. Edições N-1, São Paulo, 2017 (prefácio de Vladimir Safatle).
[3] A organização foi capaz de conter os impulsos espontaneístas para uma ação unitária e organizada, com o ataque sistemático de larga escala na ilha e após a desestruturação e completa desestabilização de uma região da ilha, construiu e formou um exército de vanguarda sobre a liderança de Tuissant Louverture, Dessaline, mas também de mulheres guerreiras como Marie Claire Heureuse Felicité Bonheur, Suzanne Sanité Bélair, descrita como a Tigresa da Revolução (a sargento no exército de Tuissant), Marie Jeanne Lamartiniere, Marie Sainte Dédée Bazile, conhecida também como Défilée-La-Folle, Dédée, Henriette Saint Marc e Catherine Flon.
(*) Paulo Silva é estudante de Psicologia (Universidade Estadual de Londrina), militante do Movimento Negro Unificado, da Insurgência Paraná e pré-candidato a vereador pelo PSOL.