Daniel Bensaïd, 27 de julho de 2007. Artigo também publicado em Centelhas, coletânea de artigos de Daniel Bensaid e Michael Lowy publicado pela editora Boitempo.
A Introdução ao Marxismo de Ernest Mandel foi e continua sendo, para muit@s militantes, um livro de referência. Pouco mais de trinta anos depois de sua primeira publicação, Daniel Bensaïd (militante e filósofo francês, membro da Liga Comunista Revolucionária — LCR), numa introdução a uma nova edição do livro, reavalia uma das obras mais lidas de Mandel.
A primeira edição pela Fundação Léon Lesoil desta Introdução ao Marxismo data de 1974. A data não é sem importância. Depois do “choque do petróleo” de 1973, Ernest Mandel foi, sem dúvida, um dos primeiros a diagnosticar o esgotamento dos “trinta gloriosos”[1] e a prognosticar a inversão da onda longa de crescimento consecutiva à guerra mundial[2]. Os debates no seio da esquerda e do movimento operário europeus continuavam marcados pela ilusão de um progresso ilimitado garantido por um compromisso keynesiano e um “Estado de Bem-Estar”. Esta visão otimista do desenvolvimento histórico nutria na esquerda parlamentar e nos aparelhos sindicais a esperança de um socialismo a passo de tartaruga, respeitador das instituições existentes enquanto esperava que a maioria política terminasse por se juntar à maioria social, em países onde — como a maior greve geral da história tinha ilustrado em maio de 1969 — o trabalho assalariado representava, pela primeira vez, mais de dois terços da população ativa.
A Introdução de Mandel não é, portanto, um texto fora do tempo. Se ela tem valor, ainda hoje, por suas qualidades pedagógicas na apresentação da gênese do capitalismo, do funcionamento da economia, das crises cíclicas, do desenvolvimento desigual e combinado, etc., ela não deixa de ter uma dimensão polêmica, da qual algumas idéias essenciais foram amplamente confirmadas pelos trinta anos decorridos desde sua redação:
- A lógica do capitalismo não tende a uma redução progressiva das desigualdades, ou mesmo à sua extinção. Se estas desigualdades pareceram declinar no período do pós-guerra, não foi pela generosidade de um capitalismo com compaixão, mas em razão das correlações de forças sociais nascidas da guerra e da resistência, da vaga de revoluções coloniais, do grande medo que tiveram as classes dirigentes nos anos 30 e no momento da Libertação[3]. Desde o começo, nos anos 80, da contra-reforma liberal, o Programa das nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) tem registrado, ano após ano, o aumento das desigualdades, não apenas entre os países ditos do Sul e do Norte, mas também entre os mais ricos e os mais pobres nos próprios países desenvolvidos, e entre os sexos, apesar das conquistas das mulheres. Não apenas o “Estado Social” e a “Economia Mista” não eram eternos, não apenas não eram a solução enfim encontrada às contradições e às crises do capitalismo, mas também, contrariamente às ilusões reformistas, nada é definitivamente conquistado pelos trabalhadores, enquanto os possuidores detiverem a propriedade dos grandes meios de produção e as alavancas do poder. Thatcher e Reagan não tardariam a demonstrá-lo. E G. W. Bush confirma, à sua maneira, que ainda estamos na época das guerras e revoluções.
- A propriedade privada dos meios de produção, de troca, de comunicação, longe de se diluir na propriedade popular das ações, sofre uma concentração sem precedentes, e exerce o poder efetivo que lhe corresponde, não apenas na esfera econômica, mas na também nas esferas política e midiática. Para qualquer um que não tenha renunciado à necessidade urgente de “mudar o mundo”, a transformação radical das relações de propriedade no sentido da apropriação social permanece tão decisiva quanto na época do Manifesto Comunista. E isto é ainda mais verdadeiro na hora da globalização, quando o capital transforma tudo em mercadoria, quando a privatização do mundo se estende à educação, à saúde, à vida, ao saber, ao espaço.
- Se o Estado não é apenas o “bando de homens armados” ou o “Estado Guarda Noturno”, se ele cumpre, cada vez mais, funções sofisticadas e complexas na reprodução social, e uma “função ideológica”, como sublinha Mandel, ele não é por isso apenas uma relação de poder entre outras (doméstica, cultural, simbólica). Ele permanece integralmente o garantidor e o ferrolho das relações de poderes, a “boa constrictor”[4] que enlaça a sociedade com seus múltiplos anéis. A questão posta continua a ser, então, a de quebrá-lo para abrir o caminho para seu desaparecimento como aparelho especializado separado da sociedade. Todas as revoluções do século XX, tanto nas vitórias quanto nas derrotas, confirmaram esta lição maior da Comuna de Paris.
Apesar desta pertinência verificada, a Introdução ao Marxismo de Mandel chama a atenção por alguns silêncios. Nos anos 70 houve um novo ascenso planetário dos movimentos de emancipação das mulheres. A IV Internacional iria adotar sobre esta questão um importante documento programático no seu XI Congresso Mundial, em 1979. Ora, as relações de gênero ocupam neste texto no máximo um lugar marginal[5]. Do mesmo modo, enquanto as preocupações ecológicas cresciam, a partir especialmente dos movimentos contra as centrais nucleares ou da catástrofe de Three Miles Island, elas estão praticamente ausentes da primeira edição desta Introdução. Isto pode provavelmente se explicar — mas não se justificar — pelo otimismo humanista e prometéico[6] que coabita então em Mandel com uma lucidez indiscutível quanto às ambivalências do progresso técnico e às ameaças da barbárie.
Esta incoerência — ou esta contradição — é confirmada pelo papel que ele atribui, quando se trata de responder aos desafios da transição a uma sociedade socialista, ao que eu chamo de “o coringa da abundância”: “Uma sociedade igualitária fundada na abundância, eis o objetivo do socialismo”. Esta marcha à abundância implica um crescimento das forças produtivas e da produtividade do trabalho que permitam uma redução massiva do tempo de trabalho. Se isto é verdade em termos gerais, não deixa de ser necessário, sob pena de queda no produtivismo cego e na despreocupação ecológica, submeter estas forças produtivas mesmas a um exame crítico. Levando tudo isto em conta, a noção de abundância é muito problemática. A suposição de uma abundância absoluta e de uma saturação das necessidades materiais aparece, de fato, como uma escapatória diante da necessidade de definir prioridades e de fazer escolhas na alocação de recursos limitados: quanto atribuir à saúde, à educação, à habitação, aos transportes, como decidir a localização destes investimentos, etc.? Existe um limite natural às necessidades em matéria de saúde ou de educação. Como a abundância, as necessidades são históricas e socais e, logo, relativas. Pode-se considerar com razão que a lógica do consumo mercantil suscita e alimenta necessidades artificiais, suntuárias, não necessárias, de que uma sociedade socialista poderia muito bem se livrar. Mas daí a pregar a austeridade e a frugalidade aos pobres, há um passo que alguns ideólogos do decrescimento não hesitam a dar. Quem está habilitado a discriminar as verdadeiras e as falsas necessidades, as boas e as más? Certamente não um areópago[7] de especialistas, mas a arbitragem democrática dos produtores e usuários associados.
Ora, o recurso ao coringa da abundância permite não apenas escamotear, ou ao menos simplificar, a questão das prioridades sociais em um ecossistema submetido a limites e a limiares, mas permite também deixar vaga a questão das instituições democráticas de uma sociedade em transição ao socialismo. Não se trata, é claro, de reclamar uma utopia democrática constituída por planos pré-concebidos de uma cidade perfeita, mas de sublinhar a importância decisiva das formas democráticas numa sociedade em que o desaparecimento do Estado não é de forma alguma o sinônimo de um desaparecimento da política na simples “administração das coisas” (como pôde sugerir uma fórmula mal advertidamente tomada de empréstimo — especialmente por Engels[8] — a Saint-Simon).
Não poderíamos reprovar Mandel por esta subestimação, uma vez que ele foi o principal redator da resolução “Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado”, adotada em 1979 pelo XI Congresso Mundial da IV Internacional. Mas o fato é que sua insistência no tema da abundância tende a relativizar o papel da política em favor de uma gestão técnica da distribuição sem limites: “Ao salariado deve se substituir a retribuição do trabalho pelo livre acesso a todos os bens necessários à satisfação das necessidades dos produtores. É somente em uma sociedade que assegure ao homem tal abundância de bens que pode nascer uma nova consciência social”. É com razão que esta questão da gratuidade — do “livre acesso” — não apenas de certos serviços sanitários os escolares, mas de produtos de consumo alimentares e de vestimenta de primeira necessidade importava tanto para ele. Decorre, com efeito, da desmercatilização do mundo e de uma verdadeira revolução das mentalidades, pondo pela primeira vez um termo à maldição bíblica que obriga o ser humano a ganhar o pão “com o suor do seu rosto”. Assim, Mandel insistia: “Tal abundância de bens não é de nenhuma maneira utópica, com a condição de ser introduzida gradualmente, e de partir de uma racionalização progressiva das necessidades dos homens, emancipados das imposições da concorrência, da caça ao enriquecimento privado e da manipulação por uma publicidade interessada em criar nos indivíduos um estado de insatisfação permanente. Assim, os progressos do nível de vida já criaram uma situação de saturação do consumo de pão, batatas, legumes, algumas frutas, ou até de produtos lácteos, gorduras e carne de porco, na parte menos pobre da população dos países imperialistas. Uma tendência análoga se manifesta em relação à vestimenta, aos calçados, aos móveis básicos, etc. Todos estes produtos poderiam ser progressivamente distribuídos gratuitamente, sem a intervenção do dinheiro, e sem que isto provoque aumentos importantes das despesas coletivas”.
Esta lógica da gratuidade como condição do desaparecimento parcial das relações monetárias continua atual. A ênfase posta nas condições de “saturação do consumo” pela parte menos pobre da população nos países mais ricos deixa na sombra, entretanto, o peso das desigualdades planetárias e a relação entre a produção e a evolução demográfica. A noção de “racionalização progressiva das necessidades humanas”, por mais pertinente que seja para a crítica do modo de vida induzido pela concorrência capitalista, não deve ser confundida com a da abundância, exceto uma abundância relativa num dado estado de desenvolvimento social, que não dispensa em nada critérios e prioridades no uso e na distribuição das riquezas. A política — e, logo, a “democracia socialista”, e não a “administração das coisas” — continua, então, necessária para a validação das necessidades e da maneira de satisfazê-las.
A parte mais datada da Introdução ao Marxismo de 1974, a que sofreu pior a prova dos anos e dos acontecimentos do último quarto de século, é incontestavelmente a que diz respeito ao stalinismo e sua crise. Mandel retoma aí o essencial da análise da Oposição de Esquerda e de Trotski da contra-revolução burocrática na URSS e de suas razões: “O reaparecimento de uma desigualdade social acentuada na URSS de hoje se explica fundamentalmente pela pobreza da Rússia após a revolução, pela insuficiência do nível de desenvolvimento das forças produtivas, pelo isolamento e o fracasso da revolução na Europa no período de 1918-1923”. Esta abordagem tem o mérito de enfatizar as condições sociais e históricas da gangrena burocrática, contrariamente à hagiografia reacionária hoje na moda — entre outras, a dos autores do Livro Negro do Comunismo — para quem os grandes dramas históricos não seriam senão o resultado mecânico do que germinou nos cérebros férteis de Marx ou de Lênin, quando não simplesmente a “culpa de Rousseau”. As pesquisas contemporâneas sérias baseadas na abertura dos arquivos soviéticos (as de Moshé Lewin especialmente) confirmam, numa larga medida, o método de Mandel, e esclarecem as diversas etapas da reação burocrática na União Soviética.
Mandel retoma a análise clássica da burocracia na tradição da Oposição de Esquerda ao stalinismo: a burocracia não é uma “nova classe dominante”; ela não “desempenha nenhum papel indispensável no processo de produção”; é “uma camada privilegiada que usurpou o exercício das funções de gestão no Estado e na economia soviéticos e que se outorga, com base neste monopólio de poder, vantagens copiosas no domínio do consumo”. Ainda que discutível (a definição das classes — no sentido amplo e histórico, ou no sentido mais específico às sociedades modernas — não está claramente estabelecida nem no próprio Marx), a distinção entre classes fundamentais e casta burocrática se esforçava em pensar a singularidade de um fenômeno inédito. Permitia evitar as simplificações que faziam da União Soviética ou da China “pátrias do socialismo” que requeriam uma fidelidade incondicional ou, inversamente, identificá-las pura e simplesmente com uma versão oriental dos imperialismos ocidentais.
Mas Mandel vai mais longe. A burocracia não é senão “uma camada privilegiada do proletariado”. Enquanto tal, “ela continua adversária do restabelecimento do capitalismo na URSS, o que destruiria os próprios fundamentos de seus privilégios”. A União Soviética permanece, então, “como logo depois da revolução de Outubro, uma sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo; o capitalismo pode ser restaurado, mas ao preço de uma contra-revolução social; o poder dos trabalhadores pode ser restaurado, mas ao preço de uma revolução política que quebre o monopólio do exercício do poder nas mãos da burocracia”. Entretanto, nos anos 70, demasiada água havia corrido sob as pontes da história, e demasiados crimes haviam sido cometidos, para que pudéssemos reivindicar tal continuidade entre a sociedade soviética de Brejnev e “os dias seguintes da revolução de Outubro”. Quanto à burocracia no poder, ela não demoraria a demonstrar que não era, enquanto tal, um “adversário” determinado do restabelecimento do capitalismo.
Mesmo levando em conta a intenção didática, esta passagem da Introdução não resiste à prova dos fatos. De um lado, reduzindo a burocracia a uma excrescência funcional do proletariado, Mandel exclui a hipótese de sua transformação completa em classe dominante. A desintegração da União Soviética e as revoluções de veludo na Europa do Leste mostraram, ao contrário, que uma fração substancial da burocracia podia, sobre a base de uma “acumulação burocrática primitiva”, tornar-se uma burguesia mafiosa. Por outro lado, a concepção pouco dialética da burocracia como “excrescência parasitária do proletariado” funda uma alternativa duplamente discutível entre contra-revolução social e revolução política. A hipótese de uma restauração do capitalismo como “contra-revolução social” evoca, com efeito, uma simetria de acontecimentos entre a revolução de outubro e esta contra-revolução. Ora, e é este o interesse da noção analógica de Termidor, uma contra-revolução não é uma revolução em sentido contrário (uma revolução invertida), mas o contrário de uma revolução; não um evento simétrico ao evento revolucionário, mas um processo. Neste sentido, a contra-revolução burocrática na União Soviética começou de fato nos anos 20, e a queda da União Soviética não foi senão seu último episódio.
Se é necessário, à luz dos últimos vinte anos, submeter a chave de leitura de Mandel ao crivo da crítica, isto não impede, por outro lado, de reconhecer também sua utilidade para a orientação nos tumultos do século. Mas é preciso reconhecer, além, disso, que ela levou a erros de apreciação, especialmente quanto ao sentido da perestroika sob Gorbachev ou ao sentido da queda do muro de Berlim. Tendo identificado no “declínio da revolução internacional depois de 1923” e no atraso da economia soviética “os dois pilares principais do poder da burocracia”, Mandel deduziu logicamente que, com o desenvolvimento da economia soviética (simbolizado pelo lançamento do Sputnik) e a retomada da revolução mundial (nos países coloniais, mas também na Europa depois de maio de 1968), a hora da revolução política iria soar na URSS e na Europa do Leste. Assim, a superestimação das “conquistas socialistas” que, ele supunha, facilitariam uma revolução política que democratizaria relações sociais já constituídas, o levaria em seu livro Onde vai a URSS de Gobartchev? (1989)[9] a superestimar a dinâmica de revolução política e subestimar as forças da restauração capitalista. Da mesma maneira, seu entusiasmo compreensível diante da derrubada do Muro de Berlim o levou a interpretar o evento como um retorno à tradição de Rosa Luxemburgo e dos conselhos operários, pondo fim a um longo parêntese de reação, e a subestimar a lógica restauracionista inscrita nas correlações de forças internacionais. Da sua parte, não se tratou apenas de uma demonstração do otimismo da vontade, mas também, claramente, de um erro de avaliação que remetia, em parte, a raízes teóricas.
Sua visão se apoiava na concepção, compartilhada no interior da IV Internacional desde seu congresso de 1963, de uma convergência dos “três setores da revolução mundial”: a revolução democrática nos países coloniais, a revolução social nas metrópoles imperialistas, a revolução política anti-burocrática nos países capitalistas desenvolvidos. Nos anos sessenta, não faltavam a esta perspectiva indicadores factuais: onda de choque da revolução chinesa, vitória da revolução cubana e das lutas de libertação na Argélia, na Indochina e nas colônias portuguesas; insurreição anti-burocrática de Budapeste em 1956, Primavera de Praga em 1968, lutas anti-burocráticas na Polônia; retomada das lutas sociais e dos grandes movimentos grevistas na França, na Itália, na Grã-Bretanha, nos anos 60; enfraquecimento das ditaduras franquista e salazarista. No meio dos anos 70, com o golpe de interrupção da revolução portuguesa em 1975, com a transição monárquica na Espanha, com a guerra entre o Vietnã e o Camboja, com o giro em direção à austeridade das esquerdas européias, com a normalização na Tchecoslováquia, e depois com o golpe na Polônia, os ventos tinham começado a mudar de direção, e os “três setores”, longe de convergirem harmoniosamente, começaram a divergir. Forças centrífugas passavam a dominar. As lutas anti-burocráticas no Leste não se faziam mais em nome dos conselhos operários ou da autogestão (“devolvam nossas fábricas!”), como foi o caso em 1980 no congresso de Solidarnosc, mas se alimentavam das miragens da sociedade de consumo ocidental. O refluxo desigual das revoluções sociais já anunciava a onda contrária das “revoluções de veludo” e de “revoluções sagradas”, de que Foucault foi um dos primeiros a perceber importância, a partir da revolução Iraniana de 1979.
Partindo de uma fórmula famosa de Trotski no Programa de Transição, segundo a qual “a crise da humanidade” se reduz à crise de sua direção revolucionária, Mandel recorreu freqüentemente, para dar conta de um curso imprevisto dos acontecimentos, à noção de atraso. As condições objetivas da revolução estariam quase sempre maduras, ou até começavam a apodrecer. Faltaria apenas o “fator subjetivo” que falhava, ou, pelo menos, se atrasava consideravelmente em relação à hora certa da história. Se as idéias antigas continuavam a dominar o movimento operário, era “devido à força de inércia da consciência que se atrasa sempre em relação à realidade material”. Esta idéia de um atraso imputável à “força de inércia da consciência” é estranha. É verdade que o pássaro da sabedoria tem a reputação de só levantar vôo no crepúsculo[10], mas as dificuldades da consciência de classe diziam respeito bem mais aos efeitos da alienação do trabalho e do fetichismo da mercadoria do que a um tempo de latência, apesar de tudo, tranqüilizador, pois ele sugeriria que a consciência virá talvez mais tarde, mas que ela necessariamente virá... A menos que ela venha tarde demais?
A noção de “atraso”, assim como a de “desvio” tão freqüentemente usada por Mandel, pressupõe uma concepção normativa discutível do desenvolvimento histórico. Ela introduz, além disso, uma relação problemática entre as “condições objetivas” e as “condições subjetivas” da ação revolucionária. Como explicar, se as condições objetivas são tão propícias quanto é afirmado, que o fator subjetivo seja tão infiel à maior parte dos seus encontros? Tal divórcio entre os dois traz o risco de levar a uma paranóia da traição: se o fator subjetivo não é o que deveria ser, não é em função de alguns limites relativos da situação e de correlações efetivas, mas porque ele é incessantemente traído de seu interior. As capitulações, ou mesmo as traições bem reais das direções burocráticas do movimento operário certamente custaram muito caro à humanidade no século passado (e lhe custarão ainda), mas fazer delas o fator explicativo principal ou exclusivo das desilusões e derrotas do século XX leva quase inevitavelmente a uma visão policial de história à qual as organizações trotskistas nem sempre escaparam.
Mandel é felizmente muito mais nuançado. Assim, ele enriquece sua noção de “condições objetivas”, “independentes do nível de consciência dos proletários e dos revolucionários”, incluindo nelas “as condições materiais e sociais” (a força do proletariado) e “as condições políticas”, isto é, a incapacidade das classes dominantes para governar e a recusa das classes dominadas a se deixar governar. Assim revisitadas, as “condições objetivas” incluem uma forte dose de subjetividade. Só sobram, assim, às condições ditas subjetivas, o nível de consciência de classe do proletariado e o nível de força de seu partido revolucionário. Elas tendem, assim, a se reduzirem à existência, à força, à consciência, à maturidade de sua vanguarda, separadas das mediações complexas da luta das classes e das instituições. É o caminho aberto a um voluntarismo exacerbado, que está para a vontade revolucionária como o individualismo está para a individualidade livre.
O risco de reduzir o problema das revoluções modernas apenas à vontade de sua vanguarda é compensado em Mandel por uma confiança sociológica na extensão, na homogeneidade e na maturidade crescentes do proletariado no seu conjunto. Ainda que ele chegue a conceder que “a classe operária não é completamente homogênea do ponto de vista de suas condições sociais de existência”, a tendência à homogeneidade ganha de longe a seus olhos. Ele supõe que ela supere quase espontaneamente as divisões internas e os efeitos da concorrência no mercado de trabalho: “Contrariamente a uma lenda amplamente difundida, esta massa proletária, se bem que fortemente estratificada, vê seu grau de homogeneidade crescer amplamente, e não decrescer. Entre um trabalhador manual, um empregado de banco, e um pequeno funcionário público, a distância é menor hoje do que foi há meio século ou há um século, em relação ao padrão de vida, à tendência à sindicalização e a fazer greves, e ao acesso potencial à consciência anticapitalista”. Relendo esta passagem, convém, também aqui, ter em mente o contexto social e os objetivos polêmicos. Face às mutações da divisão e da organização do trabalho que acompanharam a onda longa de crescimento, colocava-se a questão de saber se se tratava da formação de uma nova classe operária ou de uma extensão do proletariado ou, ao contrário, do aparecimento massivo de uma nova pequena burguesia. As alianças de classe e de formação de um novo bloco histórico colocavam questões estratégicas novas, como defendiam então alguns textos de Poulantzas, de Baudelot e Establet, ou algumas correntes maoístas empenhadas em encontrar um equivalente europeu ao “bloco das quatro classes” caro ao presidente Mao.
Mandel sustentava que a situação dos empregados ditos do terciário se aproximava da condição operária, do ponto de vista da forma (salário) e do montante médio de renda, de seu lugar subalterno na divisão de trabalho, de sua exclusão do acesso à propriedade. Esta aproximação material era confirmada por uma aproximação cultural, e verificada pelo comportamento das novas camadas assalariadas nas lutas de 1968 na França ou do maio rampante italiano: o antigo antagonismo surdo entre os colarinhos azuis e os colarinhos brancos, entre a fábrica e o escritório, se apagava diante das solidariedades nas lutas comuns contra a exploração e a alienação.
Se o argumento de Mandel se justificava sociológica e estrategicamente (o problema principal era unificação dos próprios trabalhadores, e não a busca de uma aliança de classe ou de uma nova versão da frente popular diante do “capitalismo monopolista de Estado”), ele transformava em tendência histórica irreversível a situação particular criada pelo capitalismo industrial do pós-guerra e seu modo específico de regulação. Retomava, assim, por sua conta, a aposta sociológica de Marx, para quem as dificuldades estratégicas da revolução social acabariam por se resolver graças ao desenvolvimento da grande indústria e à concentração crescente do proletariado em grandes unidades de produção, ela mesma propícia a um ascenso do movimento sindical, a um reforço das solidariedades, e a uma elevação da consciência política. Se isto parecia bem ser a tendência dos anos 60 e do começo dos anos 70, o contragolpe do capital logo veio com a ofensiva liberal. Longe de ser irreversível, a homogeneização tendencial foi minada pelas políticas de desconcentração das unidades de trabalho, de intensificação da concorrência no mercado de trabalho mundializado, de individualização dos salários e do tempo de trabalho, de privatização dos lazeres e do modo de vida, de demolição metódica das solidariedades e das proteções sociais. Em outras palavras, longe de ser uma conseqüência mecânica do desenvolvimento capitalista, a unificação das forças de resistência e de subversão da ordem estabelecida pelo capital é uma tarefa constantemente reiniciada nas lutas diárias, e cujos resultados nunca são definitivos.
Assim como ele sublinhava desde seu prefácio, Mandel dava uma importância maior aos capítulos metodológicos sobre a dialética materialista e a teoria do materialismo histórico. Este tipo de exposição geral tem suas virtudes pedagógicas. Os famosos Princípios Elementares de Filosofia de Georges Politzer contribuíram, assim, para iniciar, no mundo inteiro, dezenas ou centenas de milhares de militantes, que não eram intelectuais de formação, em questões teóricas fundamentais. Mas, para Mandel como para Politzer, a vulgarização pedagógica tem seu preço. Ela dá à apresentação de uma teoria uma forma de manual, um tanto doutrinária, e tende a apresentar leis universais abstratas — “a dialética como lógica universal do movimento e da contradição”, escreve Mandel — indo além de seus os campos de validade específicos. Assim, se é abstratamente correto dizer que “negar a causalidade é, em última análise, negar a possibilidade do conhecimento”, uma afirmação tão geral não diz nada sobre as numerosas questões que a própria noção de causalidade coloca e sobre as diversas modalidades de causalidade, irredutíveis a uma única causalidade mecânica inspirada pela física clássica. Assim, também, definir a dialética como “a lógica do movimento” e das formas de passagem de um estado a outro tende a fazer dela uma lógica formal, separada dos conteúdos, um sistema de leis gerais que regem as singularidades em ação no mundo real.
Há aí, certamente, matéria para uma discussão que ultrapassaria de longe os limites desta introdução crítica à Introdução ao Marxismo. Não é, entretanto, supérfluo assinalar que suas implicações estão longe de serem desprezíveis. O capítulo de Mandel sobre a dialética se conclui com a idéia de que “a vitória da revolução socialista mundial, o advento de uma sociedade sem classes, confirmarão na prática a validade da teoria marxista revolucionária”. A fórmula é, pelo menos, aventureira. Se a vitória deve confirmar a validade de uma teoria, a acumulação de derrotas deve, simetricamente, invalidá-la? Mas o que é vencer historicamente? Em qual escala de tempo? Quem é o juiz? De acordo com quais critérios? As questões se encadeiam e se transformam, remetendo em última instância à idéia que se faz de ciência e de verdade científica, ou da relação entre verdade e eficácia. Esta é outra e — muito — longa história.
[Nota de Bensaid sobre verdade e eficácia: A citação de Mandel se junta, numa certa medida, ao critério de cientificidade teórica adotado por Popper, o da refutabilidade (ou da “falseabilidade”: uma teoria só pode ser dita científica se ela se expõe aos desmentidos (refutações) da prática). É por isso que, segundo Popper, tanto a teoria de Marx quanto a de Freud, que sobrevivem aos desmentidos de seus prognósticos ou a seus fracassos terapêuticos, não poderiam pretender qualquer título de cientificidade. O argumento repousa numa série de pressupostos discutíveis, que dizem respeito tanto à relação entre ciências sociais e ciências exatas quanto às diversas formas de causalidade.]
A Introdução ao Marxismo de Mandel, as interrogações e as críticas que ela pode suscitar trinta anos depois de sua primeira publicação, são reveladoras de uma época e das relações de um revolucionário com seu tempo. Roland Barthes pôde escrever de Voltaire que ele foi “o último escritor feliz”, na medida em que ele pôde expressar a visão do mundo de uma burguesia em plena ascensão, ainda capaz de acreditar, com toda boa consciência, representar o futuro de uma humanidade esclarecida e iluminada. Da mesma maneira poderíamos dizer de Ernest Mandel que ele foi um dos últimos revolucionários felizes. A fórmula poderia surpreender ou chocar, tratando-se de um militante que sofreu as provas da guerra e do cárcere, que foi testemunha das tragédias do século dos extremos, que teve de lutar toda a sua vida à contracorrente dos ventos dominantes. Ele foi, apesar disso, um revolucionário feliz na medida em que, apesar das derrotas e das desilusões, ele conservava intacta a confiança dos pioneiros do socialismo no futuro da humanidade, e o otimismo que foi deles, no umbral de um século XXI que anunciava o fim das guerras e da exploração do homem pelo homem. Para Ernest, humanista clássico e homem das Luzes, as desilusões do século XX tinham sido apenas um longo desvio, ou um desagradável atraso, que não colocaria em questão a lógica do progresso histórico. Esta convicção obstinada faz, ao mesmo tempo, sua grandeza e sua fraqueza.
Tradução de João Machado Borges Neto
[1] Nota do tradutor: a expressão “trinta anos gloriosos”, ou simplesmente “trinta gloriosos”, título de um livro do economista Jean Fourastié, muito conhecido na França, costuma ser usada para designar os cerca de trinta anos (marcados por grande crescimento da economia mundial capitalista, e por grande elevação dos níveis de vida nos países capitalistas centrais — e, até certo ponto, também nos países dependentes) transcorridos entre o fim da segunda guerra mundial e a primeira grande crise econômica do pós-segunda guerra, em 1974-1975.
[2] Ernest Mandel, A Crise, Paris, Champs Flammarion, 1978. Edição brasileira: A Crise do Capital, São Paulo e Campinas, Editora Ensaio e Editora da Unicamp, 1990.
[3] Nota do tradutor: “Libertação” aqui se refere aqui à vitória dos movimentos de resistência e dos exércitos aliados contra a ocupação nazista de grande parte da Europa.
[4] Nota do tradutor: nome científico da jibóia
[5] Nota do tradutor: numa edição posterior da Introdução ao Marxismo, publicada depois de 1979, Mandel acrescentaria um capítulo sobre a questão da emancipação das mulheres.
[6] Nota do tradutor: relativo a Prometeu, da mitologia grega: titã responsável pela criação da humanidade, associado (entre outras coisas) à idéia de progresso, por ter dado o fogo aos homens.
[7] Nota do tradutor: segundo o dicionário Houaiss, “tribunal de justiça ou conselho, célebre pela honestidade e retidão no juízo, que funcionava a céu aberto no outeiro de Marte, antiga Atenas, desempenhando papel importante em política e assuntos religiosos (…); por extensão, assembléia de sábios, literatos, cientistas”.
[8] Nota do tradutor: Em sua obra Anti-Duhring, Engels diz que no comunismo, com o fim do Estado, o “governo dos homens” seria substituído pela “administração das coisas”.
[9] Nota do tradutor: a edição brasileira teve o título Além da Perestroika (São Paulo, Editora Busca Vida, dois volumes, 1989).
[10] Nota do tradutor: alusão a uma frase de Hegel, que escreveu no prefácio de seus Princípios da Filosofia do Direito que o “pássaro de Minerva” (da sabedoria) só levanta vôo no crepúsculo, para dizer que a filosofia só consegue apreender a realidade quando ela já está deixando de existir.