"Vocês sabem que estão em guerra, não é?"
Jamil Chade UOL, 19 de junho de 2021
A frase me foi dita por um experiente representante da ONU que, ao longo dos últimos 30 anos, foi deslocado para algumas das principais crises sanitárias no planeta para ajudar a vacinar a população, estabelecer protocolos ou simplesmente buscar uma saída para o drama humano.
A guerra que ele citava era a do Brasil, com 500 mil mortos por covid-19 e um futuro adiado para milhões de outros que sobreviveram. Uma guerra que não perde intensidade e que vai no sentido contrário da média mundial nas últimas seis semanas.
Uma guerra que já matou cinco vezes a guerra da Bósnia, mais que as duas bombas nucleares sobre o Japão em 1945, mais que a primeira guerra do Iraque nos anos 90, supera a guerra civil em Sierra Leoa ou o conflito em Darfur. Uma guerra que é dez mais letal que a ação do Boko Haram (grupo terrorista que surgiu na Nigéria), se aproxima da Guerra da Síria e é duas vezes mais intensa em mortes que a guerra no Iêmen.
Por qualquer comparação que se faça, a situação da pandemia no Brasil supera a das mortes violentas pelo mundo. Dados da entidade Small Arms Survey indicam que, em 2018, 105 mil pessoas foram mortas em conflitos armados em todo o mundo, um quinto dos óbitos no Brasil pela covid-19.
Considerando todos os homicídios em todos os países do mundo, os números de 2018 também são inferiores ao impacto da pandemia nas famílias brasileiras. No planeta, cerca de 409 mil pessoas morreram como resultado de homicídios naquele ano, considerando uma população de quase 8 bilhões de pessoas.
Mas a história da guerra do Brasil não é apenas a do colapso do direito à vida. Ela é também a da destruição de 20 anos de avanços sociais, quase ininterruptos, e da reabertura de uma ameaça institucional.
Trata-se de uma guerra sem bombas, sem trincheiras, sem um objetivo militar por parte do adversário e, talvez, por isso ainda mais difícil de ser freada.
Ao longo da pandemia, o Brasil passou de um país pária para uma ameaça internacional. Criticado por governos estrangeiros, atores da sociedade civil, religiosos e empresários estrangeiros, o presidente Jair Bolsonaro se transformou num dos principais símbolos do negacionismo. Hoje, sua imagem está associada ao fracasso de um país em frear a crise.
Aos brasileiros que vivem fora do país, a nova realidade diária é a de ser questionado por todos.
Da porta da escola primária de meus filhos, passando por seguranças de entidades internacionais, jornalistas, amigos, vizinhos, políticos locais, taxistas, faxineira da ONU, palavras como "louco", "alucinado" e "assassino" são repetidas para designar o presidente brasileiro. Elas são completadas por perguntas enfáticas: "Não há como retirá-lo?" ou "Quem votaria ainda por ele?"
Se o Brasil assumiu o papel incômodo de um dos "doentes do mundo", entidades internacionais e especialistas estão preocupados com o impacto que a pandemia terá para os próximos anos no país.
Reconstruir um país exigirá, porém, reconhecer que a guerra existe, que não perdeu força e que suas consequências não se limitam aos mortos.
Ao contrário do que foi a narrativa usada no início da pandemia, o vírus deixou claro que não é democrático. Se ele não distingue classe social, os números revelam que os bairros mais pobres que mais sofreram. Seja por falta de condições nos hospitais, por moradias onde famílias inteiras dividem colchões, por transportes públicos superlotados ou cadeias desumanas.
Nesta guerra, descobriu-se que uma enorme parcela da população não tinha acesso à água e sabão nas escolas, ou latrinas em suas casas.
Ninguém —e nem o vírus— se surpreendeu diante da constatação de que a desigualdade mata.
Hoje, a América Latina soma 20% de todos os óbitos no planeta por causa do coronavírus, apesar de representar apenas 8% da população. Por diversos dias no pico da crise, o Brasil tinha um quarto dos mortos, representando menos de 3% do planeta.
O vírus não é mais letal na região. O que mata é a ausência de políticas públicas, de coesão social e de democracia.
500 mil e subindo?
Enquanto no resto do mundo a pandemia perde força, ela se mantém com forte intensidade no país e não dá sinais de retroceder. Os últimos números da OMS são reveladores: enquanto a média mundial de novos casos por semana cai para os menores níveis desde fevereiro, o Brasil mantém uma intensa transmissão. Enquanto o mundo vê uma queda por cinco semanas no número de óbitos, o Brasil registra uma alta de 14%.
Para as famílias e amigos daqueles que não resistiram, fica a constatação de que segurança não se limita a defender fronteiras e construir presídios. Mas sim leitos de UTI, capacidade de produção de vacinas, oxigênio e direitos, o verdadeiro tratamento precoce.
Para os sobreviventes, a pandemia deixa um rastro de devastação. Agora, a reconstrução ocorrerá a partir de uma base ainda mais fragilizada, de uma renda menor e de sonhos desfeitos.
O Brasil, para analistas, foi o retrato de uma região. De acordo com a Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), a contração do PIB na América Latina foi a maior em 120 anos em 2020 e uma recuperação será lenta. Enquanto isso, o desemprego subiu para 10,7% e elevou a taxa de pobreza em quatro pontos percentuais. O PIB per capita regrediu em 12 anos e a fome voltou.
Quem não voltou para a escola foram milhares de meninas que caíram de novo a uma condição de trabalho infantil. Para muitas delas, o pós-pandemia será de silêncio pelo dia e de gritos de medo pelos pesadelos da noite.
Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho) e a Unesco, a pandemia levou o trabalho infantil a aumentar em 26% apenas em São Paulo. De acordo com o Center for Global Development, a América Latina deverá terminar a crise sanitária com um aumento de 25 milhões de pessoas extras no exército de miseráveis.
Para o FMI, OCDE e OMS, governos que alegaram que, para proteger a renda da população, não poderiam adotar medidas sociais acabaram prorrogando a crise. A dicotomia economia x vida era falsa.
Avaliações feitas por essas entidades demonstraram, com números, que é o controle do vírus que permite a retomada econômica, e não a abertura do comércio em si.
Futuro de instabilidade, insegurança e ameaças à democracia
Para o futuro, alguns dos cenários desenhados pela Atlantic Council revelam que a "covid-19 lenta" que atinge o Brasil e o resto do continente ameaça se desdobrar em um enfraquecimento da democracia, em mais violência e instabilidade. "As consequências serão duradouras", diz a entidade.
Um dos possíveis cenários é a erosão da democracia, diante da explosão da violência e da expansão do controle do crime que, diante do colapso da sociedade, se aproveitou para ampliar sua influência. Amplificadas, as desigualdades ainda ameaçam aprofundar a polarização política e social.
O eventual fim da pandemia vai retirar as máscaras do rosto de inocentes. Mas também da ficção de um suposto reencontro com a paz social. Enquanto uma parcela das autoridades voltará a promover sua dança macabra, não haverá fim para a "era de exceção" para milhões de brasileiros mergulhados em uma guerra que, hoje, redefine a própria nação.