Muitos dos impactos do aquecimento global são agora simplesmente "irreversíveis", segundo a mais recente avaliação produzida pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Matt McGrath, BBC News, 28 de fevereiro de 2022
Em seu mais recente relatório, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) diz que tanto seres humanos como a natureza em geral estão sendo pressionados além de sua capacidade de adaptação.
Segundo o preocupante estudo, mais de 40% da população mundial é "altamente vulnerável" ao estado do clima.
Existe, no entanto, esperança de que, se o aumento em temperaturas for mantido abaixo de 1,5 grau Celsius acima dos níveis da era pré-industrial, as perdas projetadas atualmente podem ser reduzidas.
Divulgado apenas quatro meses depois da COP26, reunião em Glasgow (Escócia, Reino Unido) em que líderes do mundo todo comprometeram-se com ações rápidas contra as mudanças climáticas, esse novo estudo mostra o tamanho do desafio.
"Nosso relatório claramente indica que lugares onde pessoas vivem e trabalham podem deixar de existir, que ecossistemas e espécies com que nós crescemos e que são centrais para nossas culturas e compõem nossas línguas podem desaparecer", afirmou a professora Debra Roberts, co-presidente do IPCC.
"Este é realmente um momento-chave. Nosso relatório aponta, muito claramente, que esta é a década da ação, se nós quisermos mudar esse quadro."
O novo relatório do IPCC é a segunda de três revisões feitas pelo organismo, que reúne os mais importantes pesquisadores que estudam as mudanças no clima.
Em agosto de 2021, a primeira delas destacou o tamanho do efeito que os seres humanos vêm tendo no sistema climático da Terra.
Essa segunda revisão examina as causas, os impactos e as soluções para conter as mudanças climáticas. O documento fornece a mais clara indicação até hoje de como um mundo mais quente está afetando todos os seres vivos do planeta.
Trata-se de uma crua descrição das duras consequências que o mundo já está experimentando, como o crescente número de pessoas morrendo devido ao calor excessivo.
Pequena chance
Os autores, porém, dizem que ainda existe uma pequena janela de tempo para que o pior seja evitado. "Uma das coisas que eu acho que são realmente, realmente claras no relatório é que sim, as coisas estão ruins, mas na verdade o futuro depende de nós, não do clima", afirma Helen Adams, da universidade King's College, de Londres, e uma das principais autoras.
O relatório mostra que eventos climáticos extremos e ligados às mudanças climáticas, como enchentes e ondas de calor, estão atingindo seres humanos e outras espécies de forma muito mais dura do que avaliações anteriores indicavam.
Esses impactos, segundo o estudo, já estão indo além da capacidade de muita gente em lidar com eles. Toda a população mundo é afetada, mas alguns de forma muito mais grave, e esse resultado depende em grande medida de onde você vive.
Entre 2010 e 2020, o número de mortos em enchentes, secas e tempestades em regiões vulneráveis, incluindo partes da África, sul da Ásia e Américas do Sul e Central, foi 15 vezes maior que o total em outras partes do mundo.
A natureza já está vendo impactos dramáticos no nível atual de aquecimento. Corais estão sendo "embranquecidos" e morrendo devido ao aumento das temperaturas, enquanto muitas árvores estão sucumbindo às secas.
O relatório do IPCC destaca os impactos crescentes que são aguardados enquanto o aumento das temperaturas ao redor do globo, atualmente em 1,1 grau Celsius sobre o período pré-industrial, segue na direção de 1,5 grau.
O continuado e acelerado aumento do nível do mar atingirá cada vez mais comunidades costeiras, os empurrando para "submersão e perdas".
Sob todos os cenários de emissões de gases do efeito estufa, o IPCC espera que na próxima década mais 1 bilhão de pessoas ficarão sob risco de efeitos negativos do clima sobre áreas costeiras.
Se as temperaturas subirem entre 1,7 grau C e 1,8 grau C sobre o nível de 1850 (considerada a época anterior ao grande efeito da industrialização sobre o clima), o relatório afirma que metade da população humana poderia ficar exposta a períodos de condições climáticas que oferecem risco à vida, a partir do aumento do calor e da umidade.
Dengue e saúde mental
O secretário-geral da ONU, António Guterres, descreveu o novo relatório como um "atlas do sofrimento humano". Ele não tem dúvidas sobre de quem é a culpa.
"Os fatos são inegáveis. Essa abdicação de liderança é criminosa. Os maiores poluidores do mundo são culpados de incêndio criminoso da nossa própria casa."
No cenário descrito pelo estudo, doenças se espalharão mais rapidamente nas próximas décadas. Existe um risco específico de que condições climáticas em transformação facilitarão a disseminação da dengue entre bilhões de pessoas a mais até o final deste século.
Além do impacto na saúde física, esse relatório, pela primeira vez, afirma que as mudanças climáticas podem estar agravando problemas de saúde mental, incluindo o estresse e o trauma relacionado com eventos climáticos extremos e a perda de condições de vida e cultura.
Espécies ameaçadas
O IPCC diz que cerca de metade dos organismos vivos avaliados em seu estudo já está em movimento, viajando para pontos geográficos de mais altitude ou na direção dos polos terrestres.
Enquanto até 14% das espécies avaliadas vão provavelmente enfrentar um alto risco de extinção se o mundo chegar a um aumento de temperatura de 1,5 grau, numa realidade de 3 graus de elevação essa parcela aumentaria para 29% das espécies.
Para animais vivendo em áreas que são classificadas como centros de biodiversidade vulneráveis, espera-se que seu risco de extinção, que já é alto, dobre caso a temperatura global atinja 2 graus acima dos níveis pré-industriais - e aumente dez vezes se ela subir 3 graus.
Alguns pesquisadores já especularam que atingir um aumento de 1,5 grau por um curto período seria aceitável se as temperaturas voltarem para abaixo desse nível pouco depois. O relatório do IPCC, porém, diz que essa abordagem é perigosa.
"Em qualquer aumento acima do limite, há um risco crescente de atingirmos pontos de inversão e causar uma reação climática, como descongelamento de pergelissolo [solo permanentemente congelado]", disse Linda Schneider, do Instituto Heinrich Boll e que participou das discussões do IPCC como observadora. "Isso tornaria muito mais difícil e poderia tornar impossível voltar para abaixo de 1,5 grau C."
O relatório desdenha de artifícios tecnológicos como tentar desviar os raios do Sol ou remover dióxido de carbono da atmosfera, dizendo que essas medidas poderiam piorar as coisas.
O resumo para lideranças em posições de decisão coloca muito foco em "desenvolvimento resiliente ao clima", o que, segundo o estudo, cria a força necessária para lidar com as mudanças climáticas em qualquer sociedade.
"Se nossos caminhos de desenvolvimento forem aqueles em que sistemas de saúde não melhoram muito, a educação não melhora muito, nossas economias não estão crescendo muito rapidamente, e a desigualdade continua um grande problema, esse é um mundo em que uma quantidade determinada de mudanças climáticas terá um impacto realmente grande", afirmou o professor Brian O'Neill, do Laboratório Nacional do Noroeste do Pacífico, dos EUA, coordenador do IPCC e um dos autores do estudo.
"Em contrapartida, se for um mundo onde estamos promovendo rápidos avanços em educação, saúde e pobreza, se as mudanças climáticas são impostas nessa sociedade, o risco será bem menor."