Julia Almeida Vasconcelos da Silva é advogada, militante da Insurgência, mestre em Direito pela UFRJ e integrante do NEV/USP. Le Monde Diplomatique.
Movimentos ousados precisam de testes, demonstrações de deslocamentos, medição de força e autoridade. Nem sempre, portanto, eles costumam parecer o que são. Quando se planeja ações, você antecipa um movimento, como um ensaio, com objetivo de assegurar que, no momento certo, você saberá com exatidão a forma e as forças que reúne.
O ato de 7 de setembro terá esse caráter. Bolsonaro tem como grande alvo a mobilização da sua base social mais coesa e, em especial, um foco nos policiais militares, pois o teste sobre a força e o tamanho do apoio deste setor armado ao governo é de suma importância e essencial para sua manutenção. Essa manifestação é construída a partir do enredo do voto impresso e do desfile militar em Brasília, seguindo uma escalada do discurso de ameaça de quebra institucional pelo governo. E a coerência entre esses dois movimentos é impressionante.
O enredo da votação do voto impresso e o discurso de ameaça da democracia que Bolsonaro apresentou cumpriram dois papéis fundamentais. O primeiro, um elemento que é capaz de coesionar todo o bolsonarismo e, portanto, produz um caráter mais difuso ao conjunto da sua base fiel, que é a disputa do conceito e entendimento sobre democracia. Dentre as estratégias fascistas do governo, disputar o sentido de democracia é essencial para justificar a sua escalada autoritária (parece um contrassenso, mas não é). Bolsonaro mira no STF, mas não apenas, a sua alegação de que pode ser aviltado nas urnas e que há um setor do Estado contrário a ele, que não quer dar mais transparência, porque quer dar um golpe, é fundamental para a dinâmica geral de viabilizar um discurso de ganha-ganha. Ou seja, ele consegue construir uma narrativa que dá força à mobilização permanente da sua base social e, se perder as eleições, é porque foram roubadas e se não existir eleições, é porque elas não poderiam ser justas. A estratégia de propaganda bolsonarista tem se centrado nesse discurso, em especial desde a votação do voto impresso.
Para entendermos como essa narrativa vem sendo construída, é fundamental frisarmos que, efetivamente, Bolsonaro não lutou nem jogou todas as suas fichas para aprovar o voto impresso na Câmara em 10 de agosto. Não fez mesa de negociação, disponibilização de verbas para fazer acordos ou qualquer coisa do tipo. Bolsonaro sabe como jogar com o centrão e quem paga a orquestra, escolhe a música, tanto que teve importantes vitórias fazendo exatamente essas movimentações. Assim, não foi por falta de experiência, ou ilusão, mas porque os seus objetivos políticos eram outros. Ele nunca quis negociar, diferente de outros momentos, e sabia que não ameaçaria ou ganharia a votação trazendo um desfile militar para a Esplanada. O verdadeiro objetivo do desfile, logo, era construir um evento-teste importante, sendo esta a segunda finalidade do enredo que Bolsonaro construiu sobre o voto impresso. Vejamos.
Apesar da Operação Formosa acontecer com frequência, o dia escolhido, a junção do Exército e Aeronáutica, além da Marinha, a participação do presidente e a passagem por Brasília não são usuais: ela foi transmutada e mobilizada para esse fim. Parece estranho, mas o desfile nunca foi uma ameaça real à votação, mas ele precisava sinalizar que essa ameaça real pode acontecer, precisa demonstrar que há domínio e disposição para um alinhamento golpista. Talvez, esse tenha sido o grande último teste de Bolsonaro nas Forças Armadas. Quando se cria um cenário de simulação de ameaça militar e os três comandantes em chefe, Exército, Aeronáutica e Marinha, aceitam marchar juntos com Bolsonaro em algo que simbolizava uma ameaça a outro poder (o Congresso), eles sinalizam o que Bolsonaro queria. Neste momento, o presidente tem um sinal forte de que, se necessário, terá apoio das Forças Armadas para aventuras mais autoritárias. Ressalta-se que a expansão desses limites vem sendo construída há meses e teve como momentos importantes a troca do ministro da Defesa em março deste ano, em conjunto com os três comandantes militares, e a vitória de Bolsonaro com a não punição de Eduardo Pazuello pela participação da motociata do Rio. Essas interferências conseguiram constituir um alargamento de fronteiras com as Forças e em especial, a mensagem de que há alinhamento com Bolsonaro mesmo em atos contra legem, mesmo em ameaças a outros poderes.
Nesse sentido, é evidente que a estratégia de Bolsonaro com seu desfile no dia 10 de agosto não passava pela efetiva ameaça de intervenção, mas pela simulação de ameaça e um ensaio dessa capacidade de alinhamento com as Forças. De igual modo, os objetivos do 7 de setembro não passam por efetivar qualquer golpe, mas por medir forças e entender a extensão de seu apoio popular e, principalmente, da sua intervenção nas polícias militares.
A maior tensão que temos hoje de preocupação com as polícias militares é que não há nenhum outro setor organizado que realmente “dispute” com o bolsonarismo esse setor. É evidente que não há homogeneidade no conjunto dos policiais militares, há figuras contrárias a Bolsonaro e que possuem perspectiva democrática. No entanto, do ponto de vista orgânico, com projeto político de poder, não há nada que consiga fazer essa disputa. Ao longo da República, as polícias já cumpriram um papel de serem alternativas de poderio ao poder central, nas disputas de oligarquias locais, através do comando dos governadores. Chegou-se a ter efetivo militar correspondente ao do Exército nacional. O motim do Ceará em 2019, com o alvejamento de Cid Gomes, é simbólico da perda desses grupos locais em relação à sua influência nas polícias.
A dinâmica do sucateamento desse setor, que cumpre o trabalho sujo do controle social, é um dos principais elementos desse desfecho. Isso se evidencia no caso de São Paulo: o controle dos governos estaduais sobre as polícias existe enquanto a ordem democrática vigora, mas não se manifesta mais como um alinhamento orgânico ou uma interferência de lealdade em qualquer situação. Não é circunstancial o lançamento da nota da Associação Nacional dos Militares Estaduais do Brasil que afirmaram ser subordinadas, sobretudo às Forças Armadas, e não aos governadores estaduais (o que é discutível do ponto de vista de seu regramento de dupla subordinação, consagrado pela Constituição), em resposta a reunião convocada por Dória com governadores que problematizava a participação de policiais militares na manifestação do dia 7.
Os próprios setores das elites civis clássicas reduziram muito essa interferência, e o bolsonarismo tem sido a principal estrutura de coesão desses setores em torno de um projeto. Bolsonaro exalta e legitima a ação do cotidiano dessas forças, mesmo quando execradas pela sociedade. A disputa do armamento pesado, da necessidade de uma sociedade mais militarizada, dá força e sentido ideológico para esse setor, além da promessa (nunca cumprida) das melhorias de condições de vida. No entanto, o projeto paralelo de melhora dessas condições, que são as milícias, tem ganhado espaço e força com Bolsonaro e também é um fator essencial de radicalização dessa base de apoio.
Inclusive, também se estende essa preocupação para o conjunto das Forças Armadas. Tínhamos muita disputa de setores progressistas ao longo de décadas: o tenentismo, a infiltração de setores comunistas, que teve como principal referência Prestes; e depois, Lamarca, dentre outros; assim como outras forças sociais do campo das elites e oligarquias civis. No entanto, as reformas levadas a cabo pela ditadura civil-militar deram fim a essa dinâmica. Vemos, hoje, as Forças Armadas tendo enorme protagonismo no governo Bolsonaro, com a vice-presidência, importantes ministérios e mais de 6 mil cargos. A nota de ameaça de Braga Neto, assinada pelos três comandantes das Forças, de 7 de julho, após a acusação do envolvimento de militares no esquema da Covaxin, é um grande exemplo do controle, da militarização e do significado autoritário da participação de militares no governo.
No geral, Bolsonaro tem tentado construir um discurso de endurecimento pré e pós eleitoral. A narrativa que ele disputa é ou do endurecimento, porque não há garantia de que as eleições serão justas, ou da tentativa de não reconhecer a derrota eleitoral porque houve fraude (já que não aprovaram o voto impresso). Em alguma medida, mesmo não aparecendo em um primeiro momento, para Bolsonaro a batalha do voto impresso tem o objetivo de se blindar antecipadamente e reunir as condições para dar passos mais autoritários a depender da aproximação do cenário eleitoral, ou pós eleitoral, e de como o cerco comece a se fechar para ele.
É evidente que existem inúmeros setores econômicos, políticos e sociais que podem interferir e alterar a correlação de forças da escalada autoritária de Bolsonaro, mas o que deve nos chamar a atenção é que, pela primeira vez neste período de governo, o presidente, efetivamente, tem feito testes e reunido forças para enfrentar todos as alternativas possíveis para o seu desfecho. A declaração que deu recentemente de que não vislumbra sua derrota eleitoral é sincera. Ele sabe que infringiu o Estado de direito, com possível corrupção, envolvimento com milícias e com a condução da pandemia. Não há saída contemporizadora e Bolsonaro vai caminhar com sua base social mobilizada e acumulando forças para dar os passos que a conjuntura exigir, com vistas à manutenção de seu governo.
Por fim, além da base de militares, chama atenção a adesão de alguns setores sociais como parcela de caminhoneiros e setores evangélicos. A contradição de vivenciarmos o enfraquecimento da popularidade de Bolsonaro e a perda de alguns apoios (ou seu enfraquecimento) e, ao mesmo tempo, a principal mobilização do bolsonarismo desde a pandemia revela que toda a estratégia utilizada por seu grupo do gabinete do ódio e máquina de fake news, de construção de uma estratégia de narrativa do caos com disputas de concepção democrática, tem surtido efeito. Pois é evidente que apesar de estar em um momento de enfraquecimento, ainda tem relevância social na sua base mais sólida.
Por todos esses elementos, conclui-se que as manifestações do dia 7 de setembro do bolsonarismo estão sendo mobilizadas como nunca pelo governo, e prometem ser quantitativa e qualitativamente diferentes das anteriores. As ameaças de grupos armados e a possibilidade de perda de controle dão um tom mais orgânico de uma manifestação com perfil protofascista. Além de medir um pouco de seu apoio popular (que não precisa ser de maioria social, basta que seja significativo), Bolsonaro quer ter certeza, também pelo foco nas polícias militares, que, se ele precisar apertar o botão, a engrenagem estará montada e terá a cadência necessária para sustentar a sua posição de possível aumento autoritário.7 de setembro e os eventos-teste de Bolsonaro7 de setembro e os eventos-teste de Bolsonaro