Ricardo Abramovay
Em diversas cidades da maior potência agrícola do mundo, falta carne nos supermercados. O desperdício e o trauma seriam dificilmente imagináveis algumas semanas atrás.
Mas a destruição não atinge apenas os EUA. Só num grande frigorífico do estado alemão da Renânia do Norte-Vestfália, 205 trabalhadores (quase todos romenos, búlgaros ou poloneses) estão contaminados. Na França os frigoríficos também se tornaram focos de propagação da pandemia.
E no Brasil? No início desta semana, auditores fiscais do trabalho interditaram uma unidade de processamento da JBS em Ipumirim, no estado de Santa Catarina: há informações de que 5% dos 1.500 funcionários trabalhando naquela unidade tiveram resultado positivo para a doença. No Rio Grande do Sul, já há 495 casos confirmados e, como os trabalhadores muitas vezes não moram próximo aos frigoríficos, a contaminação já atinge 16 municípios.
É claro que em todo o mundo, e no Brasil não é diferente, as empresas se apressam em adotar medidas mitigadoras, na tentativa de cumprir as legislações locais e evitar a disseminação da doença.
Mas é fundamental ir além disso. É o que fez uma rede de investidores globais no sistema agroalimentar global, com ativos superiores a US$ 20 trilhões, ao criticar o presidente Donald Trump, quando ele decidiu incluir frigoríficos e abatedouros entre os setores essenciais nos Estados Unidos.
“Os espaços imensos, fechados e confinados das fazendas industriais e das unidades de processamento são um terreno fértil para a emergência de doenças zoonóticas como o novo coronavírus, que afetam tanto os animais como os trabalhadores do sistema alimentar”, denuncia a Fairr (Farm Animal Investment Risk and Return).
O órgão prossegue: “em vez de aproveitar a oportunidade para encarar o problema de frente e acelerar a mudança no setor agrícola animal, a decisão do presidente oferece não mais que um band-aid para a cadeia norte-americana de alimentos. É uma injeção paliativa de energia num setor cujos ativos são vistos por seus próprios gestores como encalhados (stranded)”.
O termo usado pela Fairr, “stranded“, é o mesmo que os analistas empregam quando se referem às reservas conhecidas de petróleo em mãos das empresas, e que não poderão ser exploradas, sob pena de destruírem o sistema climático. São ativos que já tiveram, mas perderam valor, e serão incapazes de render o que seus detentores deles esperavam.
Mas como é possível traçar um horizonte tão sombrio para um setor que prima pela reputação de eficiência, de avanço tecnológico e de precisão milimétrica, tanto na criação dos animais quanto em processamento e distribuição? Se ninguém discorda de que o mundo precisa de comida e se o setor agroalimentar é tão eficiente, como é possível dizer que a produção global de proteínas é composta de ativos “stranded”, ou seja, cujo valor corre o risco de não poder ser realizado?
É que os métodos rigorosos e sofisticados que permitem a oferta em larga escala de proteínas relativamente baratas a um número cada vez maior de pessoas têm na eficiência laboratorial que os caracteriza sua maior fragilidade. A pandemia só está servindo para revelar isso de forma escancarada.
Essa fragilidade tem três componentes básicos.
O primeiro refere-se à aglomeração de animais em espaços reduzidos. No caso das aves, por exemplo, numa granja moderna, elas não têm espaço sequer para abrir as asas. Em média, cada animal dispõe de um espaço inferior a uma folha de papel A4. As técnicas de criação encurtam ao máximo a vida dos animais e para isso são introduzidas modificações genéticas que respondem por um sofrimento impressionante, sobretudo ao final de suas vidas. É verdade que o Brasil, como grande exportador de carne de aves, tem respeitado protocolos internacionais com relação ao bem-estar animal. Mas, ainda assim, a capacidade biológica dos animais é explorada ao limite. Algumas horas sem energia elétrica para manter a temperatura ideal do aviário já significam a morte de muitos animais.
Os animais criados sob esses métodos pertencem, na verdade, às empresas integradoras que oferecem ao produtor primário a ração, as instalações e os remédios. Essas empresas compram esses animais exatamente no momento em que estão prontos para o abate. A fragilidade está não só na suscetibilidade a doenças (em virtude de sua aglomeração confinada extrema), mas no fato de que, se eles não puderem ser retirados exatamente no momento previsto, não há alternativa senão sua eliminação física, como está ocorrendo agora nos Estados Unidos em larga escala.
Como esse sistema exigiu investimentos de grande vulto, ele é marcado por uma concentração industrial impressionante. Ao mesmo tempo em que um pequeno grupo de grandes corporações dominava a produção animal, os pequenos abatedouros e a capacidade de oferecer produtos a mercados locais eram quase inteiramente extintos. É sob integração contratual que são criados 90% dos frangos nos Estados Unidos; 57% dos porcos oferecidos ao mercado norte-americano pertencem a apenas quatro companhias. Segundo a revista britânica The Economist, quatro empresas dominam o conjunto do mercado de carnes nos Estados Unidos. No Canadá, apenas três plantas industriais processam 95% da carne consumida internamente e exportada.
Em outras palavras, trata-se de um sistema marcado por impressionante eficiência, mas, ao mesmo tempo, por uma rigidez que o torna incapaz de resistir a uma crise como a que agora atinge o mundo. É um sistema que guarda as características mais marcantes da era industrial e onde conhecimento, inteligência e informação em nada contribuem para reduzir sua inflexibilidade, o que o torna especialmente suscetível a crises como a que estamos vivendo. O sistema artificializou o manejo de seres vivos a um ponto tal que, quando algo dá errado, o resultado é o colapso.
Mas, além da fragilidade representada pela suscetibilidade dos animais confinados a doenças, pela tolerância cada vez menor das sociedades contemporâneas à indignidade com que são tratados e à concentração produtiva que retira do sistema alimentar qualquer flexibilidade no enfrentamento de uma crise como a atual, há dois outros problemas que serão abordados no próximo artigo desta coluna: as condições de trabalho nos frigoríficos e o vínculo entre o sistema alimentar e uma outra pandemia, que fragiliza especialmente os atingidos pelo coronavírus: a de obesidade.
Ricardo Abramovay é professor Sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP