Por Luciana Araujo, militante e membra da Executiva Nacional da Insurgência
Publicado originalmente em 1981, o livro “Mulheres, raça e classe”, de Angela Davis, segue guardando uma atualidade impressionante para os debates da esquerda revolucionária – e em particular para o feminismo re-volucionário. Editado no Brasil neste ano pela Boitempo Editorial, a obra dedica-se a resgatar historicamen-te a centralidade política da articulação indissociável das categorias ‘gênero’, ‘raça’ e ‘classe’ para o pro-cesso revolucionário. Esse resumo apresenta as análises consideradas mais importantes e atuais de Angela e busca compará-lo ao processo de formação sócio-histórica e econômica do Brasil.
Gênero, raça, estereótipos, opressão e exploração
Partindo do destaque para a necessidade de superação dos estereótipos sociais sobre as mulheres negras que ainda hoje, e não só nos EUA, são marcas das sociedades racistas, Angela lembra que a condição de mulher negra foi historicamente analisada pelos recortes da “promiscuidade versus casamento e sexo forçado versus sexo voluntário com homens brancos” ou pela tese do “matriarcado negro” (segundo historiadores como Daniel Moynihan, por exemplo, citado pela autora, a origem da opressão sobre o povo negro estaria numa estrutura matriarcal que retirava a “autoridade” do homem negro sobre a comunidade, e não na discrimina-ção racial).
Angela desmonta essa ‘tese’ resgatando que “proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que as irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulhe-res negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos da escravidão. Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros aspectos de sua existência ofuscados pelo trabalho compulsório. Aparente-mente, portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida das mulheres negras na escravidão seria uma avaliação de seu papel como trabalhadoras.” (p.17)
Mas Angela resgata também que a condição de gênero foi desde sempre um instrumento de manutenção dos lucros, especialmente pela via da reprodução forçada de mão de obra (e traz para o centro do debate o gêne-ro como mecanismo concreto de exploração, evidenciando como a opressão serve à exploração). “Quando era lucrativo explora-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, eram reduzidas exclu-sivamente à sua condição de fêmeas” (p. 19). E “enquanto as punições mais violentas impostas aos homens consistiam em açoitamentos e mutilações, as mulheres [negras] eram açoitadas, mutiladas e também estupra-das. O estupro, na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do proprietário e do contro-le do feitor sobre as mulheres negras na condição de trabalhadoras. Os abusos especialmente infligidos a elas facilitavam a cruel exploração econômica de seu trabalho” (p. 20)
Ângela lembra como a manipulação da opressão de gênero e racial contra as mulheres negras como meca-nismo de exploração é a base para a subjugação de toda a classe trabalhadora (especialmente das mulheres não negras). Para isso, resgata o uso de mulheres escravas para substituir animais foi usado na Inglaterra também contra mulheres brancas, mencionando passagem do volume 1 dO Capital: “Na Inglaterra, ocasio-nalmente ainda se utilizam, em vez de cavalo a, mulheres para puxar barcos nos canais, porque o trabalho exigido para a produção de máquinas e alimentação/manutenção de cavalos é uma quantidade matematicamente dada, ao passo que o exigido para a manutenção das mulheres da população excedente está abaixo de qualquer cálculo” (p. 23).
E destaca que estereotipada “força da mulher negra” é uma leitura deturpada das estratégias de sobrevivên-cia adquiridas no período da escravidão. Que foi nesse processo que fomos adquirindo um modo de enfren-tar a vida e “características consideradas tabus pela ideologia da feminilidade do século XIX” (p. 24)
A necessidade de “ter consciência de seu enorme poder – sua capacidade de produzir e criar” foi o que fez “essas mulheres terem aprendido a extrair das circunstâncias opressoras de sua vida a força necessária para resistir à desumanização diária da escravidão. A consciência que tinham de sua capacidade ilimitada para o trabalho pesado pode ter dado a elas confiança em sua habilidade para lutar por si mesmas, sua família e seu povo” (p.24).
Essa realidade possibilitou um legado de “maior autossuficiência, resistência e insistência na igualdade sexual” quando, na transição à industrialização, “a experiência do trabalho produtivo foi roubada de muitas mulheres brancas” (p.24), quando se gestou a ideologia da feminilidade imposta às mulheres não negras para aprisiona-las ao espaço privado e potencializar os privilégios masculinos usando ao mesmo tempo a força de trabalho e o exército de reserva negro como mecanismo de contenção de salários e condições de vida para o conjunto da classe. Ao mesmo tempo em que se impunha aos homens, brancos e negros e com especificida-des pautadas pela dinâmica de exploração associada à condição racial, masculinidades calcadas na violência como método de relações interpessoais e ao mesmo violenta para com os homens ao impor comportamentos que são socialmente naturalizados.
No caso das mulheres negras, Ângela ressalta que o mito do matriarcado negro também tem como origem a ocultação dos impactos concretos do modo de produção escravista sobre os indivíduos. “Os proprietários de escravos definiam a família negra: uma estrutura biológica matrilocal”, omitindo dos registros de nascimen-tos os nomes dos pais para perpetuar a condição de escravos dos filhos de escravas. No entanto, “a maioria das análises históricas e sociológicas sobre a família negra durante a escravidão presume simplesmente que a recusa do senhor de reconhecer a paternidade entre seus escravos se converteu de forma direta em um arranjo familiar matriarcal criado pela própria população escravizada” (p. 25)
Em contraposição a essa ‘tese’ a autora resgata estudos como o de Herbert Gutman – A família negra na escravidão e na liberdade – que mostram a resistência dos laços familiares à espoliação escravocrata. Ou-tra coisa é que as condições objetivas permitiram uma maior igualdade sexual para as mulheres negras em relação às brancas naquele momento histórico, sancionando inclusive relações sexuais antes do casamento. Até mesmo como mecanismo de luta para emancipação dos seus filhos – assim como o aborto foi também mecanismo de resistência à perpetuação da condição de escravizados, muito mais do que uma opção por “autonomia individual” no sentido liberal do termo.
Raça e luta de classes: elementos comparativo entre o processo histórico nos EUA e no Brasil
Angela destaca também como as mulheres negras escravizadas nos EUA tiveram importante papel nos pro-cessos de rebelião contra o escravismo. “Se as mulheres negras sustentavam o terrível fardo da igualdade em meio à opressão, se gozavam de igualdade com seus companheiros no ambiente doméstico, por outro lado elas também afirmavam sua igualdade de modo combativo, desafiando a desumana instituição da escravidão. Resistiam ao assédio sexual dos homens brancos, defendiam sua família e participavam de paralisações e rebeliões” (p.31).
Citando Herbert Aptheker, ela resgata que diante das condições de vida “não era de se estranhar que a mu-lher negra frequentemente apressasse as conspirações de escravos”. Como Harriet Tubman, única mulher a liderar tropas em batalhas nos EUA até a década de 1980 pelo menos, que libertou mais de 300 escravizados e serviu no exército do Norte na Guerra de Secessão.
O mesmo se deu no Brasil, com mulheres liderando sublevações e a organização do povo negro nos qui-lombos. Como Acotirene, Aqualtune e Dandara em Palmares; Tereza de Benguela no Quariterê (MS), Preta Zeferina no Quilombo do Urubu (BA); Felipa Aranha no Grão Pará e atual Tocantins; Mãe Domingas no Quilombo Tapagem (PA); Zacinda Gambá (ES); Francisca e Medicha Ferreira no quilombo Conceição das Crioulas (PE); e Luisa Mahin, que teve papel destacado na revolta dos Malês e na Sabinada1 .
Angela mostra também como a participação negra em rebeliões foi sendo cerceada por adaptações legislati-vas. “Depois da rebelião de Nat Turner, em 1831, a legislação que proibia o acesso da população escrava à educação recrudesceu em todo o Sul” (p.113).
Este é outro elemento constitutivo norteamericano copiado na gênese do Estado capitalista no Brasil. O livro Revoltas, Motins, Revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX — coletânea de artigos organizada por Mônica Duarte Dantas – traz farto material coletado em anais do Congresso Nacional e de assembleias legislativas, relatórios de inquéritos policiais e processos judiciais do período imperial para mostrar como o Estado brasileiro foi se reestruturando para combater qualquer ação organizada das camadas pobres da população — especialmente os negros, que no período analisado (1817 a 1838) ainda viviam sob a égide do regime escravista.
“Enquanto os movimentos ocorridos nas décadas de 1830 e 1840 foram considerados rebeliões, e seus parti-cipantes, rebeldes, aqueles acontecidos na segunda metade do século XIX foram classificados como crimes de “sedição”, “resistência”, “ajuntamento ilícito” ou “motim”. Ainda que a repressão contra os vários mo-vimentos tratados no livro tenha variado imensamente, de acordo com o lugar ou a conjuntura, essa trans-formação aponta para uma mudança política inerente à própria construção e consolidação do Estado e, mais ainda, para uma mudança na forma de atuação e nas expectativas das camadas livres pobres e libertas do Império” (p. ??)
Já no primeiro capítulo Mônica demonstra como elementos do plano de código penal elaborado por Edward Livingston para o Estado da Luisiania (EUA) foram incorporados pela elite escravocrata brasileira ao Có-digo Criminal do Império, de 1830. Mas antes mesmo da vigência do Código, na repressão à Revolução Pernambucana de 1817, tal concepção, baseada na cultura do medo e da defesa da propriedade como fim primeiro e último do Estado, se verificou. Todos os que tencionassem cometer o crime de “quebrar a ordem étnica e social, de dar um conteúdo de possível e efetiva igualdade ao igualitarismo teórico da República quando estabeleceu a abolição de todas as distinções honoríficas, dos privilégios, dos tratamentos distintivos entre os indivíduos e tudo buscou unificar no comum tratamento de patriota e no democrático vós, no lugar das Vossas Mercês e Excelências”.
A persistência de relações escravistas no capitalismo das sociedades erigidas sobre a escravidão: gênese do Estado penal
Angela ressalta também como o capitalismo industrial se aproveitou dos códigos sociais estabelecidos na escravidão para aumentar suas taxas de lucro pela via do encarceramento massivo. A 13ª emenda à consti-tuição norte-americana, que em 1864 aboliu a escravidão, deixou a brecha fundamental de permiti-la como punição a crimes (trabalho forçado no sistema carcerário). Numa citação extraída de A reconstrução negra da América, de W.B. Du Bois, a autora destaca que “Desde 1876, pessoas negras têm sido detidas em resposta à menor provocação e sentenciadas a longas penas ou multas, sendo obrigadas a trabalhar para pagá-las”. E continua, destacando que “essa deturpação do sistema de justiça criminal era opressiva para toda a popu-lação saída da escravidão. Mas as mulheres eram especialmente suscetíveis aos ataques brutais do sistema judiciário”, incluindo prisões por resistência a estupros (p.97).
Feminismo branco e racismo: um debate necessário
No livro, Angela traça ainda todo o panorama do distanciamento de feministas brancas norte-americanas – incluindo históricas abolicionistas – da luta pelos direitos do povo negro pós-Guerra de Secessão. Ao fazer esse detalhado relato, evidencia como a fragmentação das lutas e a reprodução do racismo são em si entraves ao avanço emancipatório.
O trabalho doméstico
Ela ressalta como as mulheres brancas exercem um tipo de privilégio social sobre as negras que muitas vezes é invisibilizado até os dias de hoje inclusive pelas feministas. “Nos programas feministas ‘de classe média’ do passado e do presente a conveniente omissão dos problemas dessas trabalhadoras em geral se mostrava uma justificativa velada – ao menos por parte das mulheres mais abastadas – para a exploração de suas próprias empregadas” (p.104).
E essa concepção foi trazida para a pauta de reivindicações do movimento feminista branco liberal por essa cegueira racista – com a reivindicação da remuneração do trabalho doméstico. “A ideia de um pagamento para as donas de casa provavelmente soaria bastante atraente a muitas mulheres. Mas é possível que a atra-ção durasse pouco. Pois quantas dessas mulheres teriam o desejo real de se reconciliar com as incumbências domésticas debilitantes e intermináveis em troca de um salário? Poderia um salário alterar o fato de que, como disse Lenin, ‘as insignificantes e mesquinhas tarefas domésticas esmagam, estrangulam, embrutecem e humilham [a mulher], aprisionam-na à cozinha e ao quarto das crianças e desperdiçam seu trabalho em uma lida brutalmente improdutiva, insignificante, exasperante, embrutecedora e esmagadora?’ Seria como se os pagamentos feitos pelo governo às donas de casa acabassem por legitimar ainda mais essa escravidão doméstica” (p.238)
A política liberal de criminalização
Da mesma forma, a autora critica a forma como o movimento feminista branco norte-americano incorpo-rou o mito do estuprador negro – retratado de forma caricata mas emblemática do senso comum do país no clássico “Birth of Nation”, de D. W. Griffith (1915) – desconsiderando que a violência sexual é “um dos sintomas mais evidentes da desintegração social” e “uma das marcantes disfunções da sociedade capitalista atual”. O feminismo liberal até hoje bebe nesta fonte, desconsiderando que o seu reverso é o senso comum da “disponibilidade sexual da mulher negra”, estimulando os estupros, além de uma justificativa racista para seguir negando direitos aos homens negros, encarcerando-os e os matando.
A questão do aborto e dos direitos sexuais e reprodutivos
Da mesma forma, no feminismo branco, a luta pelo direito ao aborto muitas vezes não só invisibilizou as práticas abortivas adotadas por mulheres negras escravizadas, como fechou os olhos e muitas vezes defen-deu a esterilização involuntária – largamente utilizada nos EUA para conter o avanço populacional negro
[assim como no Brasil e em outros países]. Além de abstrair que “quando números tão grandes de mulheres negras e latinas recorrem a abortos, as histórias que relatam não são tanto sobre o desejo de ficar livres da gravidez, mas sobre as condições sociais miseráveis que as levam a desistir de trazer novas vidas ao mundo” (p.207). E ressalta a urgência de uma campanha efetiva “em defesa dos direitos reprodutivos para todas as mulheres – em especial para aquelas que são, com frequência, obrigadas por suas circunstâncias econômicas a abdicar do direito à reprodução em si” (p. 209).
“O potencial progressista do movimento foi roubado quando passou a defender o não direito individual das pessoas de minorias étnicas ao controle da natalidade, e sim a estratégia racista de controle populacional. A campanha pelo controle da natalidade [desenvolvida em 1939] foi usada para cumprir uma função essencial na execução da política populacional racista e imperialista do governo dos Estados Unidos” (p.217). Esse resgate Angela faz para lembrar que “no fim dos anos 1970 a prática abusiva da esterilização pode ter sido maior do que nunca”. No Brasil da ditadura empresarial militar essa mesma política foi adotada em larga escala no mesmo período.
A luta sufragista
“Na última década do século XIX a campanha pelo sufrágio feminino começou a aceitar definitivamente o abraço fatal da supremacia branca” (p. 121). Em 1893, a Associação Nacional Estadunidense pelo Sufrágio Feminino (Nawsa) aprovou uma resolução que afirmava: “Que, sem expressar qualquer opinião sobre as qualificações apropriadas para votar, chamamos a atenção para o fato significativo de que em cada estado há mais mulheres que sabem ler e escrever do que o número total de eleitores masculinos analfabetos; mais mulheres brancas sabem ler e escrever do que a totalidade de eleitores negros; mais mulheres estadunidenses sabem ler e escrever do que a totalidade dos eleitores estrangeiros; de modo que a concessão do direito de voto a essas mulheres resolveria a vergonhosa questão de termos um governo baseado no analfabetismo, seja ele produto nacional ou estrangeiro”.
Ao que Angela ressalta que “as sufragistas bem que poderiam ter anunciado que se o poder de voto fosse concedido a elas, mulheres brancas da classe média e da burguesia, rapidamente subjugariam os três prin-cipais elementos da classe trabalhadora dos EUA: a população negra, os imigrantes e a mão de obra branca nacional sem instrução.” (p.122)
Nesse mesmo período, a Associação passa a apoiar o imperialismo norte-americano por meio de formula-ções de propostas de sufrágio feminino “para as nossas possessões” (leia-se territórios invadidos e coloniza-dos).
Em 1895 em outra convenção da Nawsa, houve exortações ao Sul “a adotar o sufrágio feminino como uma solução ao problema do negro”, e foi corrente o uso do argumento de um dos fundadores do Partido Repu-blicano, o abolicionista Henry Blackwell, quando da aprovação da 14ª (cidadania por nascimento em terri-tório norteamericano) e 15ª (direito de voto) emendas à constituição norte-americana. À época (1868/1870), Blcakwell defendeu que o direito de voto fosse concedido às mulheres, alfabetizadas, para “contrabalançar” iminente poder político da população negra, que se equiparava ao contingente populacional feminino (cer-ca de 4 milhões de indivíduos em cada grupo).
“Tendo aberto, mais do que nunca, suas portas para a ideologia racista predominante, o movimento sufra-gista optou por um caminho cheio de obstáculos que colocou seu próprio objetivo – o voto feminino – sob contínua ameaça” (p.127). Só em 1920 as mulheres conquistaram o direito ao voto nos EUA – e ainda assim ele foi em muitos estados negados às mulheres negras no Sul do país, seja pelas ações violentas da Ku Klux Klan seja porque os tribunais eleitorais rejeitavam os votos dessas mulheres.
Mais um paralelo importante com o Brasil
O Brasil adotou com a Lei Saraiva, de 1881, a mesma forma legislativa de segregação, excluindo do colé-gio eleitoral os analfabetos, nos estertores do regime escravocrata (política que perdurou até a Constituição de 1988). Antes, em 1871 havia sido promulgada a Lei do Ventre Livre, que libertava os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir de 28 de setembro daquele ano, mas os mantinha sob tutela dos donos até os 21 anos.
E em 1885, com a Lei dos Sexagenários, foram libertos os escravizados maiores de 65 anos. Essas duas últimas legislações são importantes conquistas fruto das rebeliões internas e da pressão internacional, espe-cialmente inglesa, pelo fim do escravismo. Mas a elite política manobrou de todas as formas para excluir os negros libertos da cidadania, especialmente desobrigando o Estado de garantir aos liberados do jugo escra-vista seus direitos sob o argumento de que passaram a ser “livres”. No caso da Lei Saraiva-Cotegipe/sexage-nários além do fato de poucos negros chegarem aos 65 anos, sua libertação trazia a contradição de significar também ficar à própria sorte sem que o senhor tivesse sequer que alimentá-los quando já estavam doentes e com baixo rendimento para o trabalho forçado.
Toda a costura do livro mostra como os reflexos da ideologia burguesa se entranharam no feminismo branco e o levou a amarras em relação a seus próprios objetivos. Tecendo a crítica a lideranças que colocavam a opressão sexista acima das desigualdades de classe e do racismo, Angela ressalta que “foi provavelmente de-vido aos poderes enganadores da ideologia que ela não conseguiu perceber que tanto as mulheres da classe trabalhadora quanto as mulheres negras estavam fundamentalmente unidas a seus companheiros pela explo-ração de classe e pela opressão racista, que não faziam discriminação de sexo. Embora o comportamento sexista de seus companheiros precisasse, sem dúvida, ser contestado, o inimigo real – o inimigo comum – era o patrão, o capitalista ou quem quer que fosse responsável pelos salários miseráveis, pelas insuportáveis condições de trabalho e pela discriminação racista e sexista no trabalho.” (p. 148).
A necessária reflexão dos socialistas
A autora também destaca, no capítulo 10, o papel das mulheres comunistas, apontando que o Partido So-cialista nos EUA foi o único defensor do sufrágio feminino no interior da classe trabalhadora, quebrando o monopólio das sufragistas de classe média. Mas ressalta que este não adotou como política complementar a luta direta contra o racismo.
Encerramos esse resumo com a reflexão formulada por Angela em 1997 em uma conferência realizada no Maranhão. “As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras.” Ou, como menciona Djamila Ribeiro no prefácio de ‘Mulheres, Raça e Classe’, é necessário pensar a necessá-ria centralidade da articulação das categorias que organizam as opressões e a superexploração da classe traba-lhadora brasileira majoritariamente negra, feminina e com imensa composição LGBT para buscar superar “o desafio de conceber ações capazes de desatrelar valores democráticos de valores capitalistas”.
E, ainda para reforçar, como Angela resgata dO Capital, “o trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro”. E nós negras e negros continuamos sendo marcados a no-vos ferros (agora especialmente os do encarceramento e do genocídio) todos os dias.