RIO DE JANEIRO - Acabam-se as eleições. Sobre seu lote de boas ou más surpresas, sobre campanhas que impressionaram por seu dinamismo, sobre como elas mudaram o terreno da luta que se trava todo dia, nada disso falaremos aqui. Elas não serão debatidas aqui sob o ângulo do que elas revelam da conjuntura que contribuem a modificar. Debate da maior importância, mas que não será o nosso.
Aqui somente queremos salientar um ponto, que parece ser sintoma de um mal maior: a relação dos candidatos com os artistas e, muito para além deles, com a arte e a cultura. Não citaremos aqui ninguém em particular, visto que não se trata de denunciar este ou aquele candidato, visto também que a esmagadora maioria repete esse mesmo discurso, cujos limites queremos debater.
O candidato X, que em outras pautas tem posições originais e arrojadas, quando perguntado o que fará pela cultura na periferia enche o peito para dizer: “Não se trata de promover a cultura na periferia, mas de promover a cultura da periferia. A periferia tem uma cultura vibrante, rica e diversa que temos que ajudar, temos que encontrar os recursos para que os artistas possam continuar fazendo esse trabalho tão essencial para o tecido social, sem o qual a vida carece de sentido, ...”.
Outro falará da necessidade de restaurar e criar novos equipamentos, ao qual um terceiro não faltará de acrescentar que é absolutamente injusta a divisão geográfica desses mesmos equipamentos, tão concentrados no centro e zonas ricas da cidade.
Por último, o mais radical de todos, avança a radicalíssima ideia de que devemos ter editais especiais para segmentos especiais, afinal de contas a distribuição de recursos e equipamentos tem que favorecer os desfavorecidos para que outras vozes possam ser ouvidas.
E pronto.
E nada mais.
Aqui foram resumidas a quase totalidade das propostas da esquerda para a arte e os artistas.
Elas estão certas, certíssimas. É mais do que obvio que todos os trabalhadores da cultura têm direito a terem direitos. E que sejam muitos estes direitos que possam garantir vida digna, como deveria ser para todos os trabalhadores, aliás.
É preciso sim discutir o orçamento ridículo alocado para cultura, fazer de tudo para que ele aumente, vigiar que a sua distribuição na cidade e na população obedeça a princípios de justiça. É inegável.
Mas é isso? Só isso? Nada mais? Não negamos que discutir dinheiro seja importante, mas o debate se esgota só nele? Não é meio estranho que seja esse o todo da discussão para uma atividade e para um setor que é tão saudado como sendo de vital importância para a sociedade?
Não haverá espaço para uma discussãozinha sequer sobre o que é arte? Sobre como ela é feita cotidianamente, sobre como ela às vezes ajuda, contribui na manutenção da barbárie que são os dias de hoje, sobre como às vezes também ela ajuda a se construir um amanhã diferente, mais livre? Nada?
O que nos dizem esses candidatos ao limitarem de tal forma o debate: que a cultura é intrinsicamente boa, que ela a todo passo ajuda a humanidade (ajudar em que é o que não fica tão claro), que tudo o que é feito hoje em seu nome é de uma positividade sem sombras.
Logicamente, então, a única discussão que podemos ter é quantitativa, já que o qualitativo já está com seu selo de excelência comprovado e tatuado na testa.
Como me fez reparar um amigo que provavelmente preferirá não ser citado, o número de artistas entre os primeiros signatários de qualquer petição é o sinal mais claro dessa negociação um tanto escusa em que os políticos se valem do prestigio dos profissionais da arte que estão muito mais representados do que qualquer outra categoria profissional.
Descabimento maior ainda seria pedir aos políticos pensarem em arte!
“Teremos Mais do Mesmo!”, dizem com entusiasmo candidatos e candidatas para os trabalhadores da cultura. “Vocês se ocupam do Mesmo, continuem fazendo igualzinho a antes, só que agora com Mais, e disso deixem que eu me ocupo. Tragam a mim seu público, seus seguidores, digam a eles a quem devem votar que logo, logo seus interesses estarão na linha de frente do combate institucional".
Esse discurso é também uma divisão de tarefas: aos artistas, a arte e aos políticos, a gestão da coisa publica. Que descabimento seria se artistas pensassem politicamente, os coitados não sabem fazer isso! São apenas pessoas abençoadas por um dom, mas esse dom é um fardo!
São eternos inocentes que não pensam como o resto da humanidade! E que seriam, além do mais, absolutamente incapazes de pensar COM o resto da humanidade! Deixemo-los ao seu ofício que, mesmo se moram na periferia, faz com que vivam em torre de marfim! Descabimento maior ainda seria pedir aos políticos pensarem em arte! Já se sabe onde isso acaba: totalitarismo! Só de falar nesse tema, já sinto o cheiro do gulag! Não, mais seguro é deixa-los como gestores do Estado.
Me permito aqui um parêntese para pensar se assim são os debates da educação, somente quantitativos. Melhor remuneração dos profissionais, melhores planos de carreira, escolas com mais meios. É obviamente nobre lutar por isso, quanto mais num país como o Brasil. Mas não será possível também tentar pensar mais além?
Ver, por exemplo, que não pode nunca se tratar somente de democratizar o acesso à educação posto que esta, em regime capitalista, é determinada parcialmente pelo capital, que suas práticas são funcionais para este. Tentar manter uma reflexão e uma ação que mantenha os dois polos, defender e criticar a escola a um só tempo, é hoje uma tarefa impossível? Essa tensão produtiva não seria, no entanto, o nome do Paulo Freire?
Volto aqui ao ponto anterior, a meu ver o mais importante, dessa partilha que deixa todas as pedras sobre todas as pedras. Podemos sim, por que não, deixar os artistas a arte. Mas o que estamos de fato dizendo quando afirmamos que somente cabe aos políticos o papel de gestores dos recursos públicos?
Quando dizemos que os políticos não deveriam ter uma visão da totalidade sob pena de se tornarem totalitários? Estamos criando um limite: “Não serás outra coisa que um servente da social-democracia! A ti te cabe somente gerir o Estado tal como ele já existe, repartindo com responsabilidade seus recursos, mas nunca pensar de outra forma a parte que te cabe nesse latifúndio!”
A arte politica serve para questionar as cristalizações do poder, até mesmo do poder nascido de uma revolução
Essa divisão do mundo é problemática por que ajuda a manter o mundo tal como ele é.
A extrema dificuldade de se pensar arte e política se dá por uma razão compreensível – a mais que nefasta experiência do stalinismo. No entanto, deixar de enfrentar essa questão é justamente fazê-lo vencer de novo. Assim, todas as questões ligadas a essa “revolução ao contrário” que foi o stalinismo devem ser enfrentadas e tentativas de superação devem ser postas em debate e prática – sob pena de hipotecarmos algo infinitamente mais importante que a arte ou a cultura – a própria transformação radical do existente.
A arte política não pode ser reduzida a um instrumento a serviço da burocracia, com seu péssimo gosto e seu autoritarismo estético, sua instrumentalização da arte com o único fim de enrijecer mais ainda um poder execrável. A arte politica serve, ao contrário, para questionar as cristalizações do poder, até mesmo do poder nascido de uma revolução.
A falta de uma política real para a arte que ultrapasse a questão de seu financiamento é um sintoma grave posto que mostra o quanto o debate sobre estratégia, sobre como se ganha e se mantém o poder contra o Estado e o capital, está esgarçado.
Se esse debate fosse levado a sério, não poderíamos nos contentar com questões de financiamento, teríamos que nos perguntar qual a função que a arte e os artistas podem exercer para esse papel, teríamos que pensar quais são os critérios para ganhar os artistas para essas tarefas, teríamos que nos confrontar a todas as experiências do passado e passá-las no crivo da análise da nossa conjuntura para saber o que delas poderia ser usado para hoje.
Não digo aqui que bastaria um programa revolucionário para a arte para a realização da revolução. Digo o contrário. Digo que a falta desse plano nos mostra o quanto o debate estratégico não está assumindo todas as dimensões que deveria, talvez por nem existir com a acuidade que a situação presente demanda.
Não podemos nos contentar com uma política cultural meramente quantitativa porque não podemos nos contentar com o Estado
E sem esse debate o que nos resta? Ganhar aos poucos cada vez mais espaços dentro da institucionalidade? Fazer a revolução avançar ganhando mais vereadores a cada eleição? Quem sabe prefeitos, governadores? Sonharemos em ter presidentes? Mas sempre deixando intocado o que era antes o inimigo estratégico mor, o próprio Estado.
Podemos ver aqui o quanto essa aposta gradativa institucional é compatível com as mais brandas das políticas identitárias, aquelas para qual basta termos “uns dos nossos lá dentro” sem mexer em absoluto no que é esse dentro. Sem ver que a partilha entre aquele dentro e esse fora é precisamente a raiz do problema.
Essa aposta numa lenta acumulação de forças institucionais, numa revolução pelas urnas, parece uma reedição de apostas antigas, quando havia fé no progresso, quando se pensava que o amanhã seria necessariamente melhor. Como entende-la quando hoje nem se sabe se vai haver amanhã?
É claro que a transformação do mundo passa pela tomada de poder de Estado, e que as eleições podem ser vistas como uma etapa importante nesse processo. Só que essa transformação demanda uma transformação radical do próprio Estado. Sua estrutura e seu funcionamento não podem permanecer intocados se de fato almejamos um adensamento real da democracia.
Não podemos nos contentar com uma política cultural meramente quantitativa porque não podemos nos contentar com o Estado.
Julian Boal é militante da Insurgência e membro da coordenação da Escola de Teatro Popular do Rio de Janeiro.
Este artigo foi reproduzido do jornal Brasil de Fato. A publicação é de 04 de dezembro e pode ser acessada aqui.