Eduardo D’ Albergaria*
Qualquer um que se desafie a avaliar os seis primeiros meses do governo Bolsonaro terá que se debruçar sobre muitos temas – o desmonte da política de Meio Ambiente, os ataques à Educação Pública, a institucionalização do populismo penal, os retrocessos nas políticas de diversidade, o alinhamento subserviente aos Estados Unidos. Mas, sem dúvida, de todos, o tema que hoje assume o centro do debate é o da aprovação recente da Reforma da Previdência.
Essa reforma significará uma imensa realocação de recursos públicos, que impactará diferentemente cada setor da sociedade, aliviando para alguns (do andar de cima) enquanto prejudica muitos outros (do andar de baixo). Junto com a PEC do Teto de Gastos e a Reforma Trabalhista, a da Previdência representa um novo pacto social, que substitui o instaurado pela Constituição de 1988.
A importância da reforma da Previdência está também no fato de sua tramitação ter consolidado três campos políticos no interior do Congresso Nacional (o Centrão, o bloco governista e a oposição de esquerda), que se enfrentaram e aliaram em cada uma das fases de discussão da proposta.
O Centrão tem em suas mãos o imenso trunfo de presidir as duas casas legislativas e deter a maior bancada em ambas – além de contar com a simpatia de parcelas expressivas do poder econômico e da mídia empresarial. No entanto, foi a força política que mais sofreu derrotadas nas últimas eleições. Graças ao imenso desgaste da chamada “velha política”, perdeu vagas no Congresso para os dois partidos que prometiam uma renovação à direita: o PSL e o Novo.
Há diferenças entre o PSL e o partido Novo, que mesmo durante a tramitação da Reforma se evidenciaram. O ultraliberal Novo rejeita o rótulo de governista, embora tenha um ministro nesse governo – com a inglória tarefa de destruir as proteções ambientais. No entanto, os dois partidos convergiram na defesa do governo e sua política econômica.
A oposição à esquerda (em relação ao governo) chegou a esse embate da Previdência depois de um histórico de diferenças entre os partidos que a compõe. Durante os 13 anos de governos petistas, o PSOL fez oposição de esquerda ao governo de coalizão capitaneado pelo partido de Lula. Durante o processo de impeachment de Dilma, esses partidos se aproximaram. (Mas aí foi a vez de o PSB votar a favor da cassação do mandato presidencial, junto com dissidentes na Rede e PDT). Nas eleições de 2018, a esquerda e a centro-esquerda se dispersaram, com candidaturas próprias do PDT, PT e PSOL. Já o PSB não se posicionou nacionalmente, e o esvaziamento da candidatura presidencial de Ciro Gomes, operado pelo PT, foi a justificativa apresentada por ele para sequer participar do apoio a Haddad contra Bolsonaro no segundo turno. Nas eleições para a Presidência da Câmara, enquanto Rede e PT apoiaram a candidatura do PSOL, outros como PDT, PC do B (e deputados do PT) apoiaram Rodrigo Maia.
É essa esquerda no sentido amplo, com um longo histórico de fragmentação, sem um porta-voz ou partido que se apresente como liderança legitimada, que precisou enfrentar uma artilharia midiática em defesa da Reforma e um potencial rolo compressor de governistas e o Centrão.
1º round: PSL x Centrão
Quando da chegada da proposta do governo à Câmara, os líderes do Centrão demonstraram disposição em aprovar a reforma, desde que algumas mudanças fossem feitas no texto. E, embora não falassem publicamente, que benesses -emendas individuais, e cargos – fossem distribuídas aos deputados como compensação pelo desgaste de retirar benefícios previdenciários e assistenciais de eleitores.
No entanto, o governo afirmou que não aceitava nenhuma mudança no seu projeto e nenhuma redução na meta de economia de R$ 1 trilhão em dez anos. Esta seria a meta do projeto destinado a viabilizar o desejo do banqueiro Paulo Guedes em matar a Previdência Pública (baseada na solidariedade entre ativos e inativos) e substituí-la por uma Previdência privatizada, gerida pelos bancos, à base de poupanças individuais. Só que a chamada capitalização demandaria elevadíssimos custos de transição, como demandou onde foi tentada (e a maioria desses abandonaram esse modelo em seguida, segundo levantamento da OIT).
O governo partiu para ataques na imprensa e mobilizou sua base social para agredir o Centrão nas ruas e nas redes sociais. Eles que demonizam tanto Gramsci parecem entender muito bem os conceitos de “hegemonia” e “Estado ampliado”: de fora das instituições, os bolsonaristas imaginavam acumular forças suficientes para atropelar o Congresso, o STF e impor uma Reforma nos seus moldes.
Bolsonaro utilizou recursos públicos numa campanha milionária tentando convencer os brasileiros de que a reforma seria um sacrifício necessário a ser feito por todos para salvar a economia do país. Até mesmo apresentadores de TV – que não precisarão da Previdência Pública quando perderem sua capacidade de trabalho – foram contratados para convencer os maios pobres.
Isso sem esquecer a campanha pesada nas redes sociais com hashtags como #ReformaDe1Trilhão, congregando trabalho voluntário com uma rede profissional especializada na criação de notícias falsas. Inclusive com o envio massivo de e-mails para os parlamentares, por meio de robôs.
2º round: o ataque das fakenews
Com o tradicional modus operandi do bolsonarismo, o governo distribuiu um sem número de notícias falsas para aumentar o apoio popular à proposta:
1 – “Os trabalhadores com menores rendimentos pagarão menos com a Reforma da Previdência”, anunciou Leonardo Rangel, da Secretaria de Previdência e Trabalho, em vídeo divulgado pelo governo. Esse mesmo mantra foi repetido à exaustão pelas mídias empresariais. Em resposta a um requerimento de Informações da bancada do PSOL (RIC 610-19), o governo informou que a diminuição de alíquota previdenciária de quem ganha um salário mínimo representará ao final de 10 anos R$ 4,1 bilhões.
O detalhe é que, junto com aquela “benesse” aos mais pobres, o governo alterou tempos de contribuição e idade mínima para esses mesmos trabalhadores, que perderão, dessa forma, R$ 65,6 bilhões em dez anos.
O Ministério da Economia afirmou também que o total de perdas de quem ganha um salário mínimo, na reforma proposta pelo governo, seria de R$ 171,2 bi.
Como podem afirmar que “os trabalhadores com menores rendimentos pagarão menos com a Reforma da Previdência”, se o governo deu com uma mão e retirou pesadamente com 10?
2 – “As mulheres mais pobres estão se aposentando hoje com 61 anos e meio no regime geral. Então, quando se passa para 62 anos [de idade mínima], elas não são atingidas”, disse o ministro da Economia em Audiência Pública na Câmara dos Deputados. No entanto, quando o ministro fala que as mulheres mais pobres se aposentam com 61 anos, ele se refere na verdade às médias de aposentadoria. Ou seja, algumas se aposentam com menos de 61 anos, e agora elas terão que ter no mínimo 62 anos, além de 15 anos de contribuição e 40 anos para ter acesso a seu benefício integral. O que se pode prever é que, diferente do que o Ministério da Economia afirmou em resposta ao Requerimento de Informações (RIC 610/19), as mulheres se aposentarão com uma média superior ao mínimo de 62 anos.
Além disso, existem na PEC outras formas de se reduzir recursos que chegavam aos mais pobres (especialmente às mulheres). Com a mudança da fórmula de cálculo dos benefícios, os20% menores salários recebidos ao longo da vida passam a fazer parte do cálculo, levando a que os benefícios sejam menores.
Portanto, diferentemente do que foi agitado pelo Ministro da Economia, as mulheres mais pobres foram prejudicadas, sim.
3 – Em coluna no jornal O Estado de S. Paulo, com o título “Responsabilidade Compartilhada” (18/07/19), uma porta-voz do mercado financeiro repetiu a mentira governamental segundo a qual “os mais pobres foram mais preservados” na proposta e o ajuste “pesou mais sobre os mais privilegiados”.
Do trilhão que o governo dizia querer economizar com a PEC, mais de 90% saíam dos trabalhadores que recebem até o teto de aproximadamente R$ 5.800. As projeções falam em 80% desse trilhão sendo retirado dos bolsos de trabalhadores que recebem até dois salários mínimos. Como falar então em “privilegiados”?
Os governistas tentam explicar esse ataque à renda das famílias mais pobres sob a justificativa de que, pelo critério per capta, teriam sido mais penalizados os “privilegiados”.
O que os governistas e o mercado financeiro escondem é que os mais privilegiados da sociedade brasileira, os superricos, não foram sequer tocados pela Reforma. Porque eles simplesmente não necessitam do sistema público de Previdência para se sustentar em idade mais avançada. Eles se mantêm com a renda dos seus patrimônios – que no Brasil é subtributado.
Já que a proposta inicial do governo não incluía os mais privilegiados no esforço contributivo, o PSOL apresentou na Comissão Especial da PEC propostas para que o país deixasse de ser um paraíso fiscal para os superricos. Mas infelizmente esses destaques foram derrotados, ao mesmo tempo que se aprovava uma escandalosa isenção de R$ 84 bilhões para o agronegócio.
É verdade que a elite do funcionalismo público foi fortemente penalizada (menos os militares, deixados fora da Reforma), mas tudo o que se espera economizar em cima dos servidores públicos representa menos de 15% do trilhão pretendido. Ou seja, o governo economizará muito mais (R$ 171 bilhões) com o assalto em cima de quem ganha um salário mínimo, do que em cima dos servidores que recebem acima do teto de R$ 5.800 (R$ 160 bilhões). Definitivamente os mais pobres não foram preservados.
4 – “A Previdência gera desigualdade social”. Segundo o Secretário Especial da Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, em audiência na Câmara dos Deputados, os “15% mais ricos concentram quase metade da renda previdenciária do país”. Essa informação foi reverberada acriticamente por toda a mídia empresarial.
Em resposta ao Requerimento de Informações (RIC 610/19), o Ministério da Economia reconheceu que os 15% beneficiários mais ricos recebem a “fortuna” de R$ 1601. São esses brasileiros que o governo apelidou de “privilegiados”, escondendo do grande público que os superricos seguem pagando menos impostos do que os que ganham até dois salários mínimos no Brasil.
Na verdade, a Previdência Pública brasileira teve um impacto importante na redução da pobreza e das desigualdades. Entre os idosos o índice Gini, que mede a desigualdade, é melhor do que entre a população em geral, justamente como efeito da Previdência Pública.
5 – “Os deputados que são contrários à reforma querem defender suas aposentadorias especiais”. Essa agitação, muito comum nas redes sociais (em especial originada de perfis fakes), parte da mentira de que os atuais parlamentares serão afetados pela reforma. Na verdade, só os parlamentares eleitos em 2022 terão suas aposentadorias vinculadas automaticamente ao regime geral, com teto de R$ 5.800. Esse ataque foi utilizado mesmo contra os deputados que já abriram mão de suas aposentadorias especiais.
6 – “A economia vai crescer”. O Ministério da Economia produziu, no início do ano, uma Nota Técnica (SEI/ME 2887285) para dar sustentação a seu projeto. A Nota afirmava que “caso nenhuma reforma for aprovada, o crescimento do PIB tende a ser em média 2,9 pontos menor nos próximos cinco anos em comparação com o cenário com mudanças das regras previdenciárias”. E seguia: “No cenário sem reforma da Previdência, o crescimento do PIB em 2019 seria inferior a 1% e o Brasil já entraria em recessão a partir do segundo semestre de 2020”. Essa previsão catastrófica foi acompanhada por todas as linhas editoriais. Como disse o presidente da Câmara, em entrevista à Globonews, “houve uma convergência de entendimentos na mídia”.
É interessante notar: quando o terrorismo midiático começou a fazer efeito e a desaprovação da reforma começou a cair, o discurso de todas as linhas editoriais mudou conjuntamente. A aprovação da Reforma, do dia para a noite, não seria mais suficiente para a retomada do crescimento.
Vale observar essas duas manchetes de entrevistas dadas por dirigentes do Itaú. Na primeira, em dezembro de 2018, no G1, o economista chefe do bancão afirmava: “Crescimento mais acelerado em 2019 depende da reforma da Previdência”. Na segunda, no Estadão, logo depois da aprovação em 1º turno na Câmara: “Reforma da Previdência não basta para crescimento, diz Itaú”
7 – “Os investimentos estrangeiros virão e o desemprego vai diminuir”. Na mesma nota técnica (SEI/ME 2887285) citada, o Ministério da Economia afirma que em “um ambiente sem reforma, a queda de investimentos seria acompanhada por uma elevação da taxa de desemprego, alcançando 15, 1% em 2023. Por outro lado, o cenário com a implementação da reforma da Previdência reduziria continuamente a taxa de desemprego, levando o mercado de trabalho a uma tendência de convergência para os níveis pré-recessão”. “O valor médio de criação de empregos devido à reforma é de 1,33 milhões por ano, alcançando um valor total de empregos gerados até 2023 de quase 8 milhões em comparação ao cenário sem realização da reforma”.
O mesmo mantra que foi repetido desde o impeachment de Dilma, da votação do Teto de Gastos, na tramitação da Reforma Trabalhista… Agora é reutilizado para defender o desmonte da Previdência. Curiosamente, o governo, depois de aprovada a proposta em 1º turno, nem esperou a realização dessa profecia virtuosa e já procura liberar parcelas do FGTS para tentar aquecer a economia.
Estudo do Centro de Desenvolvimento da UFMG alerta para o risco de efeito recessivo sobre a economia brasileira, caso não ocorra o tão anunciado aumento de investimento privado. Isso porque o impacto da reforma na renda das famílias mais pobres tende a desacelerar o consumo, e por consequência o crescimento da economia.
3º round – Quem manda no Congresso
Já na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o Centrão demonstrou para o governo que, sem seu apoio, a reforma não caminharia. Contraditoriamente, para a oposição, não seria possível travar ou mesmo atenuar os efeitos da reforma sem os votos do centrão. Ao fim, o Centrão impôs ritmos e decisões.
A proposta foi aprovada na CCJ com algumas mudanças pontuais, demonstrando que o projeto de Paulo Guedes não seria aprovado de “porteira fechada”, como exigia o Executivo.
A partir daí, deu-se uma nova rodada de embates públicos entre o Presidente da Câmara e o Ministro da Economia, até que um substitutivo foi apresentado e aprovado pelo Centrão na Comissão Especial sobre a Reforma da Previdência. O texto também foi a Plenário da Câmara e recebeu o apoio expressivo de 379 a 131 votos.
Foi uma noite de coroação para Rodrigo Maia. Os parlamentares do PSL se revezaram nos microfones para enaltecer o Presidente da Casa. Até Bolsonaro Filho 03 bateu continência… Mas ingrato, como quem tripudia de seu adversário derrotado, Maia em seu discurso não poupou o governo de críticas.
Para alcançar uma votação tão expressiva, o Centrão precisou não só negociar pontos do projeto, como garantir que um rio de emendas e cargos em Ministérios (fala-se em 300) entrasse em jogo.
De um lado, foi uma vitória das instituições democráticas para frear os anseios autoritários de um governo. Por outro, foi a vitória da velha política reproduzindo o modus operandi em que os deputados não votam segundo suas convicções formadas nos debates no parlamento ou junto às suas bases, mas no peso da grana e da estrutura governamental.
Este será um dos maiores desafios da oposição à esquerda nos próximos meses: superar a polarização entre a barbárie bolsonarista e a velha política. Para isso, deverá dar-se maior peso ao arejamento e revitalização das instituições (inclusive internamente aos próprios partidos). Imagine como seria o resultado da Reforma se ela precisasse passar por um referendo popular ao final. O assalto ao bolso dos mais pobres seria mesmo tão acintoso?
4º round – a Reforma sacode a oposição de esquerda
Uma leitura apressada pode levar à conclusão de que a esquerda (em sentido amplo) sofreu uma retumbante derrota, seja pelo número de votos a favor da proposta, seja pelas defecções expressivas em dois de seus partidos (PDT e PSB), incluindo figuras que sinalizavam a possibilidade desses partidos se rejuvenescerem: como Tábata Amaral e Filipe Rigoni.
Sem dúvida, foi uma derrota para a oposição de esquerda e para os movimentos sociais. Uma derrota que tem que ser vista em perspectiva: aconteceu nos rescaldos de uma avassaladora onda conservadora que chegou ao Congresso, sob uma forte artilharia midiática, com os movimentos sociais arrefecidos.
Os embates da Previdência demonstraram a qualidade dos parlamentares da bancada de oposição (em especial quando se contrasta com a caricata bancada do PSL), mas também que essa atuação tem limites, se não acompanhada de lutas sociais, atuação articulada nas redes e diálogos nas ruas (a exemplo das banquinhas do “vira voto” no 2º turno de 2018).
Dentro das possibilidades da atuação parlamentar, a oposição conseguiu vitórias importantes na proposta: engavetou a privatização total da Previdência (a Capitalização) e barrou as mudanças no BPC, que impactavam idosos em situação de miséria, na aposentadoria rural, impediu o esvaziamento de recursos do BNDES e até mesmo conseguiu suavizar o ataque aos professores.
Mas um dos destaques, apresentado pelo PSOL, que tentava manter o abono salarial para quem recebe entre 1,3 até dois salários mínimos demonstrou a enorme fragilidade dessas figuras de renovação ditas à esquerda. Tábata Amaral votou pela retirada do abono a que esses brasileiros tinham direito.
5º round – polêmicas na direita
A votação de destaques também demonstrou diferenças na direita: a bancada do PSL foi pesadamente criticada por liberais e eleitores do Novo sobre a votação que garantia regras menos duras para policiais federais. Diversos parlamentares da legenda tiveram que publicar justificativas em suas redes sociais.
Há que se reconhecer que o Novo votou de forma coerente em quase todas a tramitação da Reforma: votou contra todos os trabalhadores, não só os policiais, também contra os professores e os benefícios que chegavam aos mais pobres (como o abono). Manteve sua coerência de estar sempre ao lado dos superricos. Votaram (junto com o PSL) para derrubar o destaque do PSOL que fazia com que os superricos começassem a pagar impostos no Brasil.
Retiraram, é verdade, de sua proposta a diminuição da alíquota da CSLL para os bancos. Mas poderiam ter apresentado um destaque para retirar as isenções de R$ 84 bilhões dadas ao agronegócio (já que repetiam que todos deviam fazer um sacrifício, por que liberar os ruralistas?). No entanto, o partido preferiu jogar fora o destaque a que tinha direito.
O PSL foi questionado também pelas demais categorias. Afinal, por que as demais não puderam ter o mesmo tratamento dado a militares e policiais federais?
E para tornar a vida dos parlamentares do PSL ainda mais difícil, eles estão sendo questionados também pelos próprios policiais, que imaginavam que um governo que fala tanto em segurança pública lhes daria uma condição mais favorável para se aposentar.
6º round – A cortina de fumaça
Passada uma semana de uma reforma que retirou centenas de bilhões de reais das famílias mais pobres e da classe média, que inaugurou a governabilidade conservadora sob Bolsonaro, era de se esperar que os brasileiros estivessem discutindo o impacto das votações em suas vidas.
No entanto, a maioria esmagadora da população brasileira segue sem ter a menor ideia de como sua aposentadoria será afetada pelas decisões. E o tema que mais se discute é a indicação do filho do presidente para o cargo de embaixador nos EUA – sem que tenha qualquer qualificação para o cargo, além de nepotismo descarado.
É difícil saber até onde se trata de mais uma trapalhada ou até onde o presidente age de caso pensado. Mas a polêmica veio a calhar. Pois, se há desgaste com a indicação do filho, desgaste ainda maior seria se os brasileiros se dessem conta que vão trabalhar mais anos, receber menos por isso, enquanto uma votação regada a emendas e cargos retirou o agronegócio e os superricos do sacrifício.
* Cientista Social e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
Eduardo D’ Albergaria*
Qualquer um que se desafie a avaliar os seis primeiros meses do governo Bolsonaro terá que se debruçar sobre muitos temas – o desmonte da política de Meio Ambiente, os ataques à Educação Pública, a institucionalização do populismo penal, os retrocessos nas políticas de diversidade, o alinhamento subserviente aos Estados Unidos. Mas, sem dúvida, de todos, o tema que hoje assume o centro do debate é o da aprovação recente da Reforma da Previdência.
Essa reforma significará uma imensa realocação de recursos públicos, que impactará diferentemente cada setor da sociedade, aliviando para alguns (do andar de cima) enquanto prejudica muitos outros (do andar de baixo). Junto com a PEC do Teto de Gastos e a Reforma Trabalhista, a da Previdência representa um novo pacto social, que substitui o instaurado pela Constituição de 1988.
A importância da reforma da Previdência está também no fato de sua tramitação ter consolidado três campos políticos no interior do Congresso Nacional (o Centrão, o bloco governista e a oposição de esquerda), que se enfrentaram e aliaram em cada uma das fases de discussão da proposta.
O Centrão tem em suas mãos o imenso trunfo de presidir as duas casas legislativas e deter a maior bancada em ambas – além de contar com a simpatia de parcelas expressivas do poder econômico e da mídia empresarial. No entanto, foi a força política que mais sofreu derrotadas nas últimas eleições. Graças ao imenso desgaste da chamada “velha política”, perdeu vagas no Congresso para os dois partidos que prometiam uma renovação à direita: o PSL e o Novo.
Há diferenças entre o PSL e o partido Novo, que mesmo durante a tramitação da Reforma se evidenciaram. O ultraliberal Novo rejeita o rótulo de governista, embora tenha um ministro nesse governo – com a inglória tarefa de destruir as proteções ambientais. No entanto, os dois partidos convergiram na defesa do governo e sua política econômica.
A oposição à esquerda (em relação ao governo) chegou a esse embate da Previdência depois de um histórico de diferenças entre os partidos que a compõe. Durante os 13 anos de governos petistas, o PSOL fez oposição de esquerda ao governo de coalizão capitaneado pelo partido de Lula. Durante o processo de impeachment de Dilma, esses partidos se aproximaram. (Mas aí foi a vez de o PSB votar a favor da cassação do mandato presidencial, junto com dissidentes na Rede e PDT). Nas eleições de 2018, a esquerda e a centro-esquerda se dispersaram, com candidaturas próprias do PDT, PT e PSOL. Já o PSB não se posicionou nacionalmente, e o esvaziamento da candidatura presidencial de Ciro Gomes, operado pelo PT, foi a justificativa apresentada por ele para sequer participar do apoio a Haddad contra Bolsonaro no segundo turno. Nas eleições para a Presidência da Câmara, enquanto Rede e PT apoiaram a candidatura do PSOL, outros como PDT, PC do B (e deputados do PT) apoiaram Rodrigo Maia.
É essa esquerda no sentido amplo, com um longo histórico de fragmentação, sem um porta-voz ou partido que se apresente como liderança legitimada, que precisou enfrentar uma artilharia midiática em defesa da Reforma e um potencial rolo compressor de governistas e o Centrão.
1º round: PSL x Centrão
Quando da chegada da proposta do governo à Câmara, os líderes do Centrão demonstraram disposição em aprovar a reforma, desde que algumas mudanças fossem feitas no texto. E, embora não falassem publicamente, que benesses -emendas individuais, e cargos – fossem distribuídas aos deputados como compensação pelo desgaste de retirar benefícios previdenciários e assistenciais de eleitores.
No entanto, o governo afirmou que não aceitava nenhuma mudança no seu projeto e nenhuma redução na meta de economia de R$ 1 trilhão em dez anos. Esta seria a meta do projeto destinado a viabilizar o desejo do banqueiro Paulo Guedes em matar a Previdência Pública (baseada na solidariedade entre ativos e inativos) e substituí-la por uma Previdência privatizada, gerida pelos bancos, à base de poupanças individuais. Só que a chamada capitalização demandaria elevadíssimos custos de transição, como demandou onde foi tentada (e a maioria desses abandonaram esse modelo em seguida, segundo levantamento da OIT).
O governo partiu para ataques na imprensa e mobilizou sua base social para agredir o Centrão nas ruas e nas redes sociais. Eles que demonizam tanto Gramsci parecem entender muito bem os conceitos de “hegemonia” e “Estado ampliado”: de fora das instituições, os bolsonaristas imaginavam acumular forças suficientes para atropelar o Congresso, o STF e impor uma Reforma nos seus moldes.
Bolsonaro utilizou recursos públicos numa campanha milionária tentando convencer os brasileiros de que a reforma seria um sacrifício necessário a ser feito por todos para salvar a economia do país. Até mesmo apresentadores de TV – que não precisarão da Previdência Pública quando perderem sua capacidade de trabalho – foram contratados para convencer os maios pobres.
Isso sem esquecer a campanha pesada nas redes sociais com hashtags como #ReformaDe1Trilhão, congregando trabalho voluntário com uma rede profissional especializada na criação de notícias falsas. Inclusive com o envio massivo de e-mails para os parlamentares, por meio de robôs.
2º round: o ataque das fakenews
Com o tradicional modus operandi do bolsonarismo, o governo distribuiu um sem número de notícias falsas para aumentar o apoio popular à proposta:
1 – “Os trabalhadores com menores rendimentos pagarão menos com a Reforma da Previdência”, anunciou Leonardo Rangel, da Secretaria de Previdência e Trabalho, em vídeo divulgado pelo governo. Esse mesmo mantra foi repetido à exaustão pelas mídias empresariais. Em resposta a um requerimento de Informações da bancada do PSOL (RIC 610-19), o governo informou que a diminuição de alíquota previdenciária de quem ganha um salário mínimo representará ao final de 10 anos R$ 4,1 bilhões.
O detalhe é que, junto com aquela “benesse” aos mais pobres, o governo alterou tempos de contribuição e idade mínima para esses mesmos trabalhadores, que perderão, dessa forma, R$ 65,6 bilhões em dez anos.
O Ministério da Economia afirmou também que o total de perdas de quem ganha um salário mínimo, na reforma proposta pelo governo, seria de R$ 171,2 bi.
Como podem afirmar que “os trabalhadores com menores rendimentos pagarão menos com a Reforma da Previdência”, se o governo deu com uma mão e retirou pesadamente com 10?
2 – “As mulheres mais pobres estão se aposentando hoje com 61 anos e meio no regime geral. Então, quando se passa para 62 anos [de idade mínima], elas não são atingidas”, disse o ministro da Economia em Audiência Pública na Câmara dos Deputados. No entanto, quando o ministro fala que as mulheres mais pobres se aposentam com 61 anos, ele se refere na verdade às médias de aposentadoria. Ou seja, algumas se aposentam com menos de 61 anos, e agora elas terão que ter no mínimo 62 anos, além de 15 anos de contribuição e 40 anos para ter acesso a seu benefício integral. O que se pode prever é que, diferente do que o Ministério da Economia afirmou em resposta ao Requerimento de Informações (RIC 610/19), as mulheres se aposentarão com uma média superior ao mínimo de 62 anos.
Além disso, existem na PEC outras formas de se reduzir recursos que chegavam aos mais pobres (especialmente às mulheres). Com a mudança da fórmula de cálculo dos benefícios, os20% menores salários recebidos ao longo da vida passam a fazer parte do cálculo, levando a que os benefícios sejam menores.
Portanto, diferentemente do que foi agitado pelo Ministro da Economia, as mulheres mais pobres foram prejudicadas, sim.
3 – Em coluna no jornal O Estado de S. Paulo, com o título “Responsabilidade Compartilhada” (18/07/19), uma porta-voz do mercado financeiro repetiu a mentira governamental segundo a qual “os mais pobres foram mais preservados” na proposta e o ajuste “pesou mais sobre os mais privilegiados”.
Do trilhão que o governo dizia querer economizar com a PEC, mais de 90% saíam dos trabalhadores que recebem até o teto de aproximadamente R$ 5.800. As projeções falam em 80% desse trilhão sendo retirado dos bolsos de trabalhadores que recebem até dois salários mínimos. Como falar então em “privilegiados”?
Os governistas tentam explicar esse ataque à renda das famílias mais pobres sob a justificativa de que, pelo critério per capta, teriam sido mais penalizados os “privilegiados”.
O que os governistas e o mercado financeiro escondem é que os mais privilegiados da sociedade brasileira, os superricos, não foram sequer tocados pela Reforma. Porque eles simplesmente não necessitam do sistema público de Previdência para se sustentar em idade mais avançada. Eles se mantêm com a renda dos seus patrimônios – que no Brasil é subtributado.
Já que a proposta inicial do governo não incluía os mais privilegiados no esforço contributivo, o PSOL apresentou na Comissão Especial da PEC propostas para que o país deixasse de ser um paraíso fiscal para os superricos. Mas infelizmente esses destaques foram derrotados, ao mesmo tempo que se aprovava uma escandalosa isenção de R$ 84 bilhões para o agronegócio.
É verdade que a elite do funcionalismo público foi fortemente penalizada (menos os militares, deixados fora da Reforma), mas tudo o que se espera economizar em cima dos servidores públicos representa menos de 15% do trilhão pretendido. Ou seja, o governo economizará muito mais (R$ 171 bilhões) com o assalto em cima de quem ganha um salário mínimo, do que em cima dos servidores que recebem acima do teto de R$ 5.800 (R$ 160 bilhões). Definitivamente os mais pobres não foram preservados.
4 – “A Previdência gera desigualdade social”. Segundo o Secretário Especial da Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, em audiência na Câmara dos Deputados, os “15% mais ricos concentram quase metade da renda previdenciária do país”. Essa informação foi reverberada acriticamente por toda a mídia empresarial.
Em resposta ao Requerimento de Informações (RIC 610/19), o Ministério da Economia reconheceu que os 15% beneficiários mais ricos recebem a “fortuna” de R$ 1601. São esses brasileiros que o governo apelidou de “privilegiados”, escondendo do grande público que os superricos seguem pagando menos impostos do que os que ganham até dois salários mínimos no Brasil.
Na verdade, a Previdência Pública brasileira teve um impacto importante na redução da pobreza e das desigualdades. Entre os idosos o índice Gini, que mede a desigualdade, é melhor do que entre a população em geral, justamente como efeito da Previdência Pública.
5 – “Os deputados que são contrários à reforma querem defender suas aposentadorias especiais”. Essa agitação, muito comum nas redes sociais (em especial originada de perfis fakes), parte da mentira de que os atuais parlamentares serão afetados pela reforma. Na verdade, só os parlamentares eleitos em 2022 terão suas aposentadorias vinculadas automaticamente ao regime geral, com teto de R$ 5.800. Esse ataque foi utilizado mesmo contra os deputados que já abriram mão de suas aposentadorias especiais.
6 – “A economia vai crescer”. O Ministério da Economia produziu, no início do ano, uma Nota Técnica (SEI/ME 2887285) para dar sustentação a seu projeto. A Nota afirmava que “caso nenhuma reforma for aprovada, o crescimento do PIB tende a ser em média 2,9 pontos menor nos próximos cinco anos em comparação com o cenário com mudanças das regras previdenciárias”. E seguia: “No cenário sem reforma da Previdência, o crescimento do PIB em 2019 seria inferior a 1% e o Brasil já entraria em recessão a partir do segundo semestre de 2020”. Essa previsão catastrófica foi acompanhada por todas as linhas editoriais. Como disse o presidente da Câmara, em entrevista à Globonews, “houve uma convergência de entendimentos na mídia”.
É interessante notar: quando o terrorismo midiático começou a fazer efeito e a desaprovação da reforma começou a cair, o discurso de todas as linhas editoriais mudou conjuntamente. A aprovação da Reforma, do dia para a noite, não seria mais suficiente para a retomada do crescimento.
Vale observar essas duas manchetes de entrevistas dadas por dirigentes do Itaú. Na primeira, em dezembro de 2018, no G1, o economista chefe do bancão afirmava: “Crescimento mais acelerado em 2019 depende da reforma da Previdência”. Na segunda, no Estadão, logo depois da aprovação em 1º turno na Câmara: “Reforma da Previdência não basta para crescimento, diz Itaú”
7 – “Os investimentos estrangeiros virão e o desemprego vai diminuir”. Na mesma nota técnica (SEI/ME 2887285) citada, o Ministério da Economia afirma que em “um ambiente sem reforma, a queda de investimentos seria acompanhada por uma elevação da taxa de desemprego, alcançando 15, 1% em 2023. Por outro lado, o cenário com a implementação da reforma da Previdência reduziria continuamente a taxa de desemprego, levando o mercado de trabalho a uma tendência de convergência para os níveis pré-recessão”. “O valor médio de criação de empregos devido à reforma é de 1,33 milhões por ano, alcançando um valor total de empregos gerados até 2023 de quase 8 milhões em comparação ao cenário sem realização da reforma”.
O mesmo mantra que foi repetido desde o impeachment de Dilma, da votação do Teto de Gastos, na tramitação da Reforma Trabalhista… Agora é reutilizado para defender o desmonte da Previdência. Curiosamente, o governo, depois de aprovada a proposta em 1º turno, nem esperou a realização dessa profecia virtuosa e já procura liberar parcelas do FGTS para tentar aquecer a economia.
Estudo do Centro de Desenvolvimento da UFMG alerta para o risco de efeito recessivo sobre a economia brasileira, caso não ocorra o tão anunciado aumento de investimento privado. Isso porque o impacto da reforma na renda das famílias mais pobres tende a desacelerar o consumo, e por consequência o crescimento da economia.
3º round – Quem manda no Congresso
Qualquer um que se desafie a avaliar os seis primeiros meses do governo Bolsonaro terá que se debruçar sobre muitos temas – o desmonte da política de Meio Ambiente, os ataques à Educação Pública, a institucionalização do populismo penal, os retrocessos nas políticas de diversidade, o alinhamento subserviente aos Estados Unidos. Mas, sem dúvida, de todos, o tema que hoje assume o centro do debate é o da aprovação recente da Reforma da Previdência.
Essa reforma significará uma imensa realocação de recursos públicos, que impactará diferentemente cada setor da sociedade, aliviando para alguns (do andar de cima) enquanto prejudica muitos outros (do andar de baixo). Junto com a PEC do Teto de Gastos e a Reforma Trabalhista, a da Previdência representa um novo pacto social, que substitui o instaurado pela Constituição de 1988.
A importância da reforma da Previdência está também no fato de sua tramitação ter consolidado três campos políticos no interior do Congresso Nacional (o Centrão, o bloco governista e a oposição de esquerda), que se enfrentaram e aliaram em cada uma das fases de discussão da proposta.
O Centrão tem em suas mãos o imenso trunfo de presidir as duas casas legislativas e deter a maior bancada em ambas – além de contar com a simpatia de parcelas expressivas do poder econômico e da mídia empresarial. No entanto, foi a força política que mais sofreu derrotadas nas últimas eleições. Graças ao imenso desgaste da chamada “velha política”, perdeu vagas no Congresso para os dois partidos que prometiam uma renovação à direita: o PSL e o Novo.
Há diferenças entre o PSL e o partido Novo, que mesmo durante a tramitação da Reforma se evidenciaram. O ultraliberal Novo rejeita o rótulo de governista, embora tenha um ministro nesse governo – com a inglória tarefa de destruir as proteções ambientais. No entanto, os dois partidos convergiram na defesa do governo e sua política econômica.
A oposição à esquerda (em relação ao governo) chegou a esse embate da Previdência depois de um histórico de diferenças entre os partidos que a compõe. Durante os 13 anos de governos petistas, o PSOL fez oposição de esquerda ao governo de coalizão capitaneado pelo partido de Lula. Durante o processo de impeachment de Dilma, esses partidos se aproximaram. (Mas aí foi a vez de o PSB votar a favor da cassação do mandato presidencial, junto com dissidentes na Rede e PDT). Nas eleições de 2018, a esquerda e a centro-esquerda se dispersaram, com candidaturas próprias do PDT, PT e PSOL. Já o PSB não se posicionou nacionalmente, e o esvaziamento da candidatura presidencial de Ciro Gomes, operado pelo PT, foi a justificativa apresentada por ele para sequer participar do apoio a Haddad contra Bolsonaro no segundo turno. Nas eleições para a Presidência da Câmara, enquanto Rede e PT apoiaram a candidatura do PSOL, outros como PDT, PC do B (e deputados do PT) apoiaram Rodrigo Maia.
É essa esquerda no sentido amplo, com um longo histórico de fragmentação, sem um porta-voz ou partido que se apresente como liderança legitimada, que precisou enfrentar uma artilharia midiática em defesa da Reforma e um potencial rolo compressor de governistas e o Centrão.
1º round: PSL x Centrão
Quando da chegada da proposta do governo à Câmara, os líderes do Centrão demonstraram disposição em aprovar a reforma, desde que algumas mudanças fossem feitas no texto. E, embora não falassem publicamente, que benesses -emendas individuais, e cargos – fossem distribuídas aos deputados como compensação pelo desgaste de retirar benefícios previdenciários e assistenciais de eleitores.
No entanto, o governo afirmou que não aceitava nenhuma mudança no seu projeto e nenhuma redução na meta de economia de R$ 1 trilhão em dez anos. Esta seria a meta do projeto destinado a viabilizar o desejo do banqueiro Paulo Guedes em matar a Previdência Pública (baseada na solidariedade entre ativos e inativos) e substituí-la por uma Previdência privatizada, gerida pelos bancos, à base de poupanças individuais. Só que a chamada capitalização demandaria elevadíssimos custos de transição, como demandou onde foi tentada (e a maioria desses abandonaram esse modelo em seguida, segundo levantamento da OIT).
O governo partiu para ataques na imprensa e mobilizou sua base social para agredir o Centrão nas ruas e nas redes sociais. Eles que demonizam tanto Gramsci parecem entender muito bem os conceitos de “hegemonia” e “Estado ampliado”: de fora das instituições, os bolsonaristas imaginavam acumular forças suficientes para atropelar o Congresso, o STF e impor uma Reforma nos seus moldes.
Bolsonaro utilizou recursos públicos numa campanha milionária tentando convencer os brasileiros de que a reforma seria um sacrifício necessário a ser feito por todos para salvar a economia do país. Até mesmo apresentadores de TV – que não precisarão da Previdência Pública quando perderem sua capacidade de trabalho – foram contratados para convencer os maios pobres.
Isso sem esquecer a campanha pesada nas redes sociais com hashtags como #ReformaDe1Trilhão, congregando trabalho voluntário com uma rede profissional especializada na criação de notícias falsas. Inclusive com o envio massivo de e-mails para os parlamentares, por meio de robôs.
2º round: o ataque das fakenews
Com o tradicional modus operandi do bolsonarismo, o governo distribuiu um sem número de notícias falsas para aumentar o apoio popular à proposta:
1 – “Os trabalhadores com menores rendimentos pagarão menos com a Reforma da Previdência”, anunciou Leonardo Rangel, da Secretaria de Previdência e Trabalho, em vídeo divulgado pelo governo. Esse mesmo mantra foi repetido à exaustão pelas mídias empresariais. Em resposta a um requerimento de Informações da bancada do PSOL (RIC 610-19), o governo informou que a diminuição de alíquota previdenciária de quem ganha um salário mínimo representará ao final de 10 anos R$ 4,1 bilhões.
O detalhe é que, junto com aquela “benesse” aos mais pobres, o governo alterou tempos de contribuição e idade mínima para esses mesmos trabalhadores, que perderão, dessa forma, R$ 65,6 bilhões em dez anos.
O Ministério da Economia afirmou também que o total de perdas de quem ganha um salário mínimo, na reforma proposta pelo governo, seria de R$ 171,2 bi.
Como podem afirmar que “os trabalhadores com menores rendimentos pagarão menos com a Reforma da Previdência”, se o governo deu com uma mão e retirou pesadamente com 10?
2 – “As mulheres mais pobres estão se aposentando hoje com 61 anos e meio no regime geral. Então, quando se passa para 62 anos [de idade mínima], elas não são atingidas”, disse o ministro da Economia em Audiência Pública na Câmara dos Deputados. No entanto, quando o ministro fala que as mulheres mais pobres se aposentam com 61 anos, ele se refere na verdade às médias de aposentadoria. Ou seja, algumas se aposentam com menos de 61 anos, e agora elas terão que ter no mínimo 62 anos, além de 15 anos de contribuição e 40 anos para ter acesso a seu benefício integral. O que se pode prever é que, diferente do que o Ministério da Economia afirmou em resposta ao Requerimento de Informações (RIC 610/19), as mulheres se aposentarão com uma média superior ao mínimo de 62 anos.
Além disso, existem na PEC outras formas de se reduzir recursos que chegavam aos mais pobres (especialmente às mulheres). Com a mudança da fórmula de cálculo dos benefícios, os20% menores salários recebidos ao longo da vida passam a fazer parte do cálculo, levando a que os benefícios sejam menores.
Portanto, diferentemente do que foi agitado pelo Ministro da Economia, as mulheres mais pobres foram prejudicadas, sim.
3 – Em coluna no jornal O Estado de S. Paulo, com o título “Responsabilidade Compartilhada” (18/07/19), uma porta-voz do mercado financeiro repetiu a mentira governamental segundo a qual “os mais pobres foram mais preservados” na proposta e o ajuste “pesou mais sobre os mais privilegiados”.
Do trilhão que o governo dizia querer economizar com a PEC, mais de 90% saíam dos trabalhadores que recebem até o teto de aproximadamente R$ 5.800. As projeções falam em 80% desse trilhão sendo retirado dos bolsos de trabalhadores que recebem até dois salários mínimos. Como falar então em “privilegiados”?
Os governistas tentam explicar esse ataque à renda das famílias mais pobres sob a justificativa de que, pelo critério per capta, teriam sido mais penalizados os “privilegiados”.
O que os governistas e o mercado financeiro escondem é que os mais privilegiados da sociedade brasileira, os superricos, não foram sequer tocados pela Reforma. Porque eles simplesmente não necessitam do sistema público de Previdência para se sustentar em idade mais avançada. Eles se mantêm com a renda dos seus patrimônios – que no Brasil é subtributado.
Já que a proposta inicial do governo não incluía os mais privilegiados no esforço contributivo, o PSOL apresentou na Comissão Especial da PEC propostas para que o país deixasse de ser um paraíso fiscal para os superricos. Mas infelizmente esses destaques foram derrotados, ao mesmo tempo que se aprovava uma escandalosa isenção de R$ 84 bilhões para o agronegócio.
É verdade que a elite do funcionalismo público foi fortemente penalizada (menos os militares, deixados fora da Reforma), mas tudo o que se espera economizar em cima dos servidores públicos representa menos de 15% do trilhão pretendido. Ou seja, o governo economizará muito mais (R$ 171 bilhões) com o assalto em cima de quem ganha um salário mínimo, do que em cima dos servidores que recebem acima do teto de R$ 5.800 (R$ 160 bilhões). Definitivamente os mais pobres não foram preservados.
4 – “A Previdência gera desigualdade social”. Segundo o Secretário Especial da Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, em audiência na Câmara dos Deputados, os “15% mais ricos concentram quase metade da renda previdenciária do país”. Essa informação foi reverberada acriticamente por toda a mídia empresarial.
Em resposta ao Requerimento de Informações (RIC 610/19), o Ministério da Economia reconheceu que os 15% beneficiários mais ricos recebem a “fortuna” de R$ 1601. São esses brasileiros que o governo apelidou de “privilegiados”, escondendo do grande público que os superricos seguem pagando menos impostos do que os que ganham até dois salários mínimos no Brasil.
Na verdade, a Previdência Pública brasileira teve um impacto importante na redução da pobreza e das desigualdades. Entre os idosos o índice Gini, que mede a desigualdade, é melhor do que entre a população em geral, justamente como efeito da Previdência Pública.
5 – “Os deputados que são contrários à reforma querem defender suas aposentadorias especiais”. Essa agitação, muito comum nas redes sociais (em especial originada de perfis fakes), parte da mentira de que os atuais parlamentares serão afetados pela reforma. Na verdade, só os parlamentares eleitos em 2022 terão suas aposentadorias vinculadas automaticamente ao regime geral, com teto de R$ 5.800. Esse ataque foi utilizado mesmo contra os deputados que já abriram mão de suas aposentadorias especiais.
6 – “A economia vai crescer”. O Ministério da Economia produziu, no início do ano, uma Nota Técnica (SEI/ME 2887285) para dar sustentação a seu projeto. A Nota afirmava que “caso nenhuma reforma for aprovada, o crescimento do PIB tende a ser em média 2,9 pontos menor nos próximos cinco anos em comparação com o cenário com mudanças das regras previdenciárias”. E seguia: “No cenário sem reforma da Previdência, o crescimento do PIB em 2019 seria inferior a 1% e o Brasil já entraria em recessão a partir do segundo semestre de 2020”. Essa previsão catastrófica foi acompanhada por todas as linhas editoriais. Como disse o presidente da Câmara, em entrevista à Globonews, “houve uma convergência de entendimentos na mídia”.
É interessante notar: quando o terrorismo midiático começou a fazer efeito e a desaprovação da reforma começou a cair, o discurso de todas as linhas editoriais mudou conjuntamente. A aprovação da Reforma, do dia para a noite, não seria mais suficiente para a retomada do crescimento.
Vale observar essas duas manchetes de entrevistas dadas por dirigentes do Itaú. Na primeira, em dezembro de 2018, no G1, o economista chefe do bancão afirmava: “Crescimento mais acelerado em 2019 depende da reforma da Previdência”. Na segunda, no Estadão, logo depois da aprovação em 1º turno na Câmara: “Reforma da Previdência não basta para crescimento, diz Itaú”
7 – “Os investimentos estrangeiros virão e o desemprego vai diminuir”. Na mesma nota técnica (SEI/ME 2887285) citada, o Ministério da Economia afirma que em “um ambiente sem reforma, a queda de investimentos seria acompanhada por uma elevação da taxa de desemprego, alcançando 15, 1% em 2023. Por outro lado, o cenário com a implementação da reforma da Previdência reduziria continuamente a taxa de desemprego, levando o mercado de trabalho a uma tendência de convergência para os níveis pré-recessão”. “O valor médio de criação de empregos devido à reforma é de 1,33 milhões por ano, alcançando um valor total de empregos gerados até 2023 de quase 8 milhões em comparação ao cenário sem realização da reforma”.
O mesmo mantra que foi repetido desde o impeachment de Dilma, da votação do Teto de Gastos, na tramitação da Reforma Trabalhista… Agora é reutilizado para defender o desmonte da Previdência. Curiosamente, o governo, depois de aprovada a proposta em 1º turno, nem esperou a realização dessa profecia virtuosa e já procura liberar parcelas do FGTS para tentar aquecer a economia.
Estudo do Centro de Desenvolvimento da UFMG alerta para o risco de efeito recessivo sobre a economia brasileira, caso não ocorra o tão anunciado aumento de investimento privado. Isso porque o impacto da reforma na renda das famílias mais pobres tende a desacelerar o consumo, e por consequência o crescimento da economia.
3º round – Quem manda no Congresso
Já na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o Centrão demonstrou para o governo que, sem seu apoio, a reforma não caminharia. Contraditoriamente, para a oposição, não seria possível travar ou mesmo atenuar os efeitos da reforma sem os votos do centrão. Ao fim, o Centrão impôs ritmos e decisões.
A proposta foi aprovada na CCJ com algumas mudanças pontuais, demonstrando que o projeto de Paulo Guedes não seria aprovado de “porteira fechada”, como exigia o Executivo.
A partir daí, deu-se uma nova rodada de embates públicos entre o Presidente da Câmara e o Ministro da Economia, até que um substitutivo foi apresentado e aprovado pelo Centrão na Comissão Especial sobre a Reforma da Previdência. O texto também foi a Plenário da Câmara e recebeu o apoio expressivo de 379 a 131 votos.
Foi uma noite de coroação para Rodrigo Maia. Os parlamentares do PSL se revezaram nos microfones para enaltecer o Presidente da Casa. Até Bolsonaro Filho 03 bateu continência… Mas ingrato, como quem tripudia de seu adversário derrotado, Maia em seu discurso não poupou o governo de críticas.
Para alcançar uma votação tão expressiva, o Centrão precisou não só negociar pontos do projeto, como garantir que um rio de emendas e cargos em Ministérios (fala-se em 300) entrasse em jogo.
De um lado, foi uma vitória das instituições democráticas para frear os anseios autoritários de um governo. Por outro, foi a vitória da velha política reproduzindo o modus operandi em que os deputados não votam segundo suas convicções formadas nos debates no parlamento ou junto às suas bases, mas no peso da grana e da estrutura governamental.
Este será um dos maiores desafios da oposição à esquerda nos próximos meses: superar a polarização entre a barbárie bolsonarista e a velha política. Para isso, deverá dar-se maior peso ao arejamento e revitalização das instituições (inclusive internamente aos próprios partidos). Imagine como seria o resultado da Reforma se ela precisasse passar por um referendo popular ao final. O assalto ao bolso dos mais pobres seria mesmo tão acintoso?
4º round – a Reforma sacode a oposição de esquerda
Uma leitura apressada pode levar à conclusão de que a esquerda (em sentido amplo) sofreu uma retumbante derrota, seja pelo número de votos a favor da proposta, seja pelas defecções expressivas em dois de seus partidos (PDT e PSB), incluindo figuras que sinalizavam a possibilidade desses partidos se rejuvenescerem: como Tábata Amaral e Filipe Rigoni.
Sem dúvida, foi uma derrota para a oposição de esquerda e para os movimentos sociais. Uma derrota que tem que ser vista em perspectiva: aconteceu nos rescaldos de uma avassaladora onda conservadora que chegou ao Congresso, sob uma forte artilharia midiática, com os movimentos sociais arrefecidos.
Os embates da Previdência demonstraram a qualidade dos parlamentares da bancada de oposição (em especial quando se contrasta com a caricata bancada do PSL), mas também que essa atuação tem limites, se não acompanhada de lutas sociais, atuação articulada nas redes e diálogos nas ruas (a exemplo das banquinhas do “vira voto” no 2º turno de 2018).