O caso das vacinas, assim como o das doenças negligenciadas, evidencia o papel essencial das universidades e institutos públicos de pesquisa, que têm compromisso com o time e não consigo mesmos. Devem, assim, estar atentos a sua função social como centros de produção e disseminação do conhecimento, especialmente quando o conhecimento é nossa estratégia de ataque. Diante disso, estudantes, pesquisadores, artistas e ativistas de 29 países se juntaram na campanha global #FreeTheVaccine, que convoca diversas universidades do mundo a disponibilizarem amplamente seus conhecimentos contra a covid-19
Luciana M. N. Lopes e Alan Rossi Silva, Outras Palavras, 21 de setembro de 2020
Pelo mundo, surgem campanhas para que universidades disponibilizem tecnologias de combate à covid-19 de forma gratuita — e não se concentrem em grandes laboratórios. No Brasil, UFPel é exemplo. UFMG poderá ser a próxima.
Para muitas brasileiras e brasileiros, ir a uma partida de futebol é uma experiência mágica. O chão tremendo. A fumaça colorida. As — MUITAS — vozes em coro. É impossível resistir à energia. O coração vai à boca e para naqueles dois segundos de dúvida: vai entrar? E, então, a explosão. O abraço intenso no vizinho desconhecido. A alegria comum e contagiante ao ver seu time marcar um gol.
Naquele 8 de julho de 2014, 99,95% do novo Mineirão estava lotado. Milhares de pessoas buscavam a emoção de ver seu time passar para a final de uma Copa do Mundo jogada em casa. 58.141 corações viveram, contudo, um dos episódios mais vergonhosos da história do nosso futebol: a goleada de 7×1 da Alemanha. Vimos um país inteiro comovido. Em luto.
Quem imaginaria que, seis anos depois, estaríamos tomando uma goleada infinitamente mais vergonhosa? Já são mais de 130 mil corações — mais que o dobro da ocupação do Mineirão — que pararam por gols do novo coronavírus. Estranho é não sentir, neste caso, a comoção e o luto do país. Se muitos de nós deixamos o campo antes do final da partida, alguns nunca nem entraram: vivem suas vidas como se a batalha decisiva que travamos nunca tivesse começado.
Com uma defesa desorganizada e vazada, aqueles de nós que não abandonaram o time depositam a esperança em nosso ataque: a ciência. E os jogadores da ciência, mesmo desvalorizados e contestados pelo negacionismo, vêm trabalhando duro para organizarem um ataque veloz. Os esforços globais para a pesquisa e o desenvolvimento de vacinas, medicamentos, diagnósticos e outras tecnologias em saúde são impressionantes e sem precedentes. Em seis meses de pandemia, foram mapeados mais de 200 estudos para desenvolvimento de uma vacina contra a covid-19. Oito deles já estão na fase III dos testes em humanos — a última antes do registro sanitário. Quanto mais entrosados os jogadores, mais perto chegamos do gol.
No Brasil, todos os nossos jogadores de ataque vêm, praticamente, da mesma categoria de base: a universidade pública, que produz 95% da ciência do país. Mesmo tendo sido sistematicamente desvalorizadas pelo governo federal nos últimos anos, nossas universidades públicas e seus pesquisadores têm dado raça em campo e se esforçado, inclusive, para cobrir nossa defesa. Além de buscarem adaptar suas atividades ao novo contexto, elas têm realizado diagnósticos, investigações epidemiológicas e campanhas de conscientização, bem como tomado medidas para minimizar os danos causados pela pandemia e reduzir as desigualdades sociais por ela intensificadas. Além disso, são cada vez mais numerosas as iniciativas que visam a pesquisar, desenvolver e distribuir Equipamentos de Proteção Individual (EPI), sanitizantes, ventiladores, medicamentos e vacinas.
São mais de 23 milhões de dólares investidos por órgãos públicos em estudos relacionados à Covid-19 no Brasil. Nós, enquanto sócios-torcedores, participamos desta aplicação. Mas investimos pouco em nossos jogadores, se comparado aos países ricos: no mundo, há mais de US$ 5 bilhões — grande parte, dinheiro público — dedicados ao desenvolvimento de uma vacina. Afinal, a ampla imunização mundial seria o gol de placa na disputa contra o novo coronavírus.
Nesse sentido, cabe destacar que a maioria das pesquisas básicas relacionadas a vacinas é desenvolvida em universidades e laboratórios públicos. Nós, os sócios-torcedores, investimos nas pesquisas quando há grandes incertezas sobre os resultados. Já as farmacêuticas multinacionais costumam atuar como aquele jogador que fica “na banheira” esperando a bola chegar em seu pé: elas se envolvem nas últimas etapas do desenvolvimento, quando os riscos são bem menores e o retorno financeiro é potencializado.
Apesar de essas empresas dizerem que estão no nosso time, não nos deixemos enganar. Sua maior preocupação não é com a vitória coletiva, mas com a glória e com o patrocínio individual — querem ser os únicos a marcar e fazem isso através de monopólios sobre as tecnologias, como vacinas e medicamentos, definindo o preço que querem. Mas, em decisões como a atual, em que a vitória significa salvar vidas, não deveríamos depender de um jogador que vê a disputa como fonte de lucro… Estamos na final e não há tempo para mercenários. Os campeonatos anteriores, como aqueles disputados em torno do HIV/Aids e da Hepatite C, nos lembram que, quando a estratégia individual se sobrepõe à coletiva, somos levados a, no máximo, disputar, cansados, longas prorrogações desnecessárias.
Acontece que nossas universidades, muitas vezes, fazem acordos para só tocar a bola para esse jogador mesquinho. A conhecida “vacina de Oxford” é um exemplo disso. Apesar de ter sido desenvolvida por uma universidade, com muito dinheiro público, as condições de produção e distribuição dessa tecnologia estão inteiramente nos pés de uma única empresa farmacêutica — a AstraZeneca. Há vários jogadores livres, na cara do gol, implorando para receber a bola e fazer a alegria da torcida. Entretanto, este ataque veloz, que poderia resultar em um dos gols mais espetaculares da história, pode ser impedido por um jogador “fominha”. Nesse sentido, questionamos se o investimento antecipado de mais de R$ 1 bilhão dos sócios-torcedores brasileiros nessa tecnologia ainda em testes não refletiria um receio de sermos jogados para escanteio na fila do acesso à vacina, caso ela se comprove eficaz. Aliás, será que essa fila existiria caso a vacina pudesse ser livremente produzida e distribuída?
O caso das vacinas, assim como o das doenças negligenciadas, evidencia o papel essencial das universidades e institutos públicos de pesquisa, que têm compromisso com o time e não consigo mesmos. Devem, assim, estar atentos a sua função social como centros de produção e disseminação do conhecimento, especialmente quando o conhecimento é nossa estratégia de ataque. Diante disso, estudantes, pesquisadores, artistas e ativistas de 29 países se juntaram na campanha global #FreeTheVaccine, que convoca diversas universidades do mundo a disponibilizarem amplamente seus conhecimentos contra a covid-19.
Assim, alguns lances vistos por aqui despertam nossa paixão e acendem a esperança de trazermos o troféu para casa. Além de conduzir o estudo epidemiológico com o maior número de indivíduos testados do mundo para o coronavírus, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) entrou em campo com garra e lançou uma modalidade de licenciamento de patentes e transferência de tecnologia completamente gratuita. Segundo a portaria 732/2020, o compartilhamento de tecnologias úteis no combate à covid-19 poderá ser feito de forma não exclusiva e sem recebimento de royalties pela instituição. Ou seja, além de poder tocar a bola para diversos jogadores, a UFPel não precisa cobrar pelos toques. Em contrapartida, os receptores da tecnologia deverão distribuir os seus produtos de forma ampla e com preço abaixo do mercado. Jogada de craque!
No Brasil, um país marcado por iniquidades escancaradas neste campeonato, jogadas assim são importantíssimas. E outras universidades, como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), têm sido convidadas a treiná-las. Posicionada ao lado do Mineirão, a UFMG também pode assumir uma posição estratégica na organização do nosso ataque: ela é a maior depositante de patentes em biotecnologia do Brasil. Por meio de uma campanha intitulada “Conhecimento sem cortes e sem monopólio”, a universidade, que licencia a maioria de suas patentes de forma não exclusiva, foi convocada por sua comunidade a também firmar o compromisso de jogar pelo coletivo no campeonato contra a covid-19. Elencada, recentemente, em um ranking internacional como a 5ª melhor universidade da América Latina, uma jogada da UFMG nesse sentido ajudaria a inspirar outros jogadores — nacionais e internacionais — a vestirem a camisa e tocarem mais a bola.
Em todo o mundo, a torcida grita por uma “vacina do povo” amplamente acessível. E várias instituições fizeram discursos nesse sentido. Só que discursos, quando não acompanhados de ação, são apenas bolas na trave. E “bola na trave não altera o placar”. Para virar o jogo contra a covid-19, precisamos chegar ao gol. E não chegaremos se continuarmos deixando que a grande indústria farmacêutica, localizada majoritariamente nos países ricos, continue monopolizando a bola.
No futebol, as jogadoras e os jogadores brasileiros são referência. Já no campeonato contra a covid-19, mesmo que o nosso Sistema Único de Saúde tenha desempenhado um papel fundamental em nos manter, literalmente, vivos na batalha, somos um dos países na lanterna. Apesar disso, as diversas iniciativas para fortalecer o nosso ataque — com destaque para o Projeto de Lei 1462/2020, que tira a indústria farmacêutica nacional do impedimento — indicam que há espaço para assumirmos o protagonismo e inspirarmos todo o mundo com jogadas dignas de replay.
A covid-19 mostra que precisamos rever a forma como nós, enquanto sociedade, jogamos. Ela está ganhando de lavada, fora o baile. Até a premiação do Bola de Ouro, que acontece desde 1956 e coroa os melhores jogadores do futebol mundial, foi cancelada em 2020 devido à pandemia. Contudo, muitas instituições continuam agindo como se estivéssemos jogando um amistoso e não uma final de Copa do Mundo.
Mas o jogo está longe de acabar e as notícias sobre vacinas promissoras nos mostram que ainda podemos virar. Não é hora de cumprir tabela e nem de desistir do campeonato. É hora de a gente vestir a máscara e cantar o mais alto possível; empurrar o time; fazer o chão tremer; pedir substituições e deixar claro que não há espaço para jogadores sem amor à camisa, que fazem da pandemia e de nossas vidas uma oportunidade para lucros abusivos. O que a gente quer é raça — do time todo. O que a gente quer é gol e abraço. E só um time que joga junto pode nos proporcionar a alegria da vitória.
Luciana M. N. Lopes é farmacêutica e doutoranda em Saúde Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Alan Rossi Silva é advogado e doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Representam a Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais (UAEM), uma organização global de estudantes em defesa do acesso universal a medicamentos e de um sistema de inovação biomédico justo.