Em analogia à cidade construída no ar, a qual Aristófanes zombava em Os pássaros [1], tudo aquilo que construímos nas “nuvens” é anti-sociedade. As relações face a face, cuja importância é de fato relativizada, são absolutamente essenciais. É preciso que voltem.
Joëlle Zask, AOC (Analyse Opinion Critique)/IHU-Unisinos, 16 de junho de 2020
Termos como tele-trabalho [no Brasil tem-se falado home-office] [2], videoconferências, happy hours virtuais, compartilhamento de tela, brainstorming à distância, webinars e tele-presença se tornaram familiares no período de confinamento. De dezembro de 2019 para cá, a empresa californiana Zoom registrou um aumento 3.000% ao que se refere aos usuários da plataforma. A troca à distância via as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) tem feito um grande serviço diante da situação excepcional que vivemos.
Mas, elas irão se tornar a norma? As gigantes digitais [essas empresas de TIC], assim como gestores de universidades e empresários têm nos prometido inúmeros benefícios e parecem cada vez mais seduzidos pelas TIC. Na quinta-feira, 21 de maio, Mark Zuckerberg, diretor-chefe do Facebook, anunciou, depois do Twitter, Google, e na França, PSA, Blackmarket, Alan, etc., que a metade de seus empregados poderia trabalhar em casa daqui cinco a dez anos. Sob o pretexto de igual acesso à internet, uma prioridade nacional se expressa: “não esperemos mais para declarar um estado de urgência digital”, o “mundo de amanhã deve ser o da inclusão digital”.
Após a admiração inicial pelas possibilidades do tele-trabalho, da educação à distância, da telemedicina, da telejustiça, é chegado o momento de uma possível perpetuação [desses instrumentos]. Aqueles que os recusam, argumentando que seu tempo livre tem sido reduzido, que as trocas [à distância] têm sido trabalhosas, e que lhes faltam os contatos verdadeiros, e etc., tendem a ser identificados como fósseis de um mundo desaparecido.
Do meu ponto de vista, não se trata de atacar os serviços mediados pelas trocas remotas em seus diversos tipos de cloud meetings [nuvens de reuniões], mas de refletir como fundar um projeto de sociedade baseado em relações virtuais por intermédio da internet é destruir com a sociedade. Em analogia à cidade construída no ar, a qual Aristófanes zombava em Os pássaros, tudo aquilo que construímos nas “nuvens” é anti-sociedade. As relações face a face, cuja importância é de fato relativizada, são absolutamente essenciais. É preciso que voltem.
Contrastado com o progresso da sociedade industrial cuja promessa era a de minar os laços sociais “normais”, os fundadores das Ciências Sociais da década de 1890 colocaram em evidência [tais laços], utilizando-se de termos como “relações diretas”, “grupos primários”, “comunidade”, “união social local” em oposição a “Grande Sociedade”. Simmel, por exemplo, viu nas relações face a face, o fato social por excelência, o building block sem o qual a sociedade que forma os indivíduos não poderia realmente ser uma sociedade, mas seria o equivalente a um aglomerado.
Da mesma forma, Dewey considerou menos essencial a questão de saber como os indivíduos x ou y se associam e mais o que difere ou deve distinguir uma associação humana de um rebanho de ovelhas ou de um conjunto de elétrons. A resposta é o face a face. Na sua ausência, podemos muito bem ter multidões, massas, aglomerados ou redes, mas nós não teremos a sociedade “especificamente” humana. Para que a sociedade “real” aconteça, é preciso, como já escreveu Aristóteles, dessa forma de amizade que hoje chamamos de sociabilidade, convívio.
A esse respeito Simmel é insuperável: as relações face a face que ele estudou por meio da dança ou da conversa, diz ele, são as formas mais “puras” do fenômeno social. “A sociabilidade criada, ou se preferirmos, um mundo sociologicamente ideal, [é aquele] no qual a alegria de um indivíduo em particular é absolutamente ligada ao fato de que outros também estejam à vontade”. Porque a razão de ser desses relacionamentos é simplesmente criar o contato e o manter pelo tempo desejado. [Esses relacionamentos] estabelecem igualdade entre participantes pela simples razão de gostarem de estar na companhia do outro. Sem obedecer a nenhuma restrição, sem ter que cumprir com nenhum imperativo, sem visualizar nenhuma utilidade e sem estar motivada por necessidades, essa forma primária de associação, encontrada em toda parte, é um “elo de reciprocidade, que de alguma forma flutua livremente entre indivíduos”.
Malinowski, a quem devemos a famosa análise da chamada função “fática” da linguagem, segue na mesma direção. O que explica as sociedades por mais múltiplas que elas sejam não é um suposto “instinto gregário”, nem a necessidade material uma da outra, e sim uma “tendência a estar junto, de desfrutar da companhia do outro”. Estar na companhia é uma “tendência fundamental que faz com que a simples presença do outro seja necessária ao ser humano”.
Essas expressões que podemos achar um pouco datadas, exprimem um fato fundamental das relações humanas. É ao mesmo tempo óbvio e algo bastante misterioso. Na língua francesa, por exemplo, a expressão “relações face a face” não é encontrada nos registros de frases comuns. Usamos expressões como “relações interpessoais” ou “relações intersubjetivas” que não tem o mesmo sentido. A “face” [o rosto] não é a pessoa nem a subjetividade: a “face” é, antes, o aspecto de si mesmo que se deseja apresentar aos outros, como na expressão “livrar a própria cara”. Trata-se do sujeito humano como ele se moldou socialmente com base no que entende ser as expectativas dos outros.
A “face” expressa menos o papel social do indivíduo do que a sua personalidade singular, única, de indivíduo socializado. Nem puramente individual nem puramente social, ela [a face] resulta do fato geral de que o comportamento social que forja o indivíduo – desde sua infância – depende do uso que ele fez das formas sociais comuns, e não pelas circunstâncias de ter sido reproduzido nele o mundo exterior, ou tais disposições desse mundo, nem do fato de que suas faculdades seriam espontaneamente desenvolvidas porque teríamos permitido.
Consequentemente, o face a face implica na copresença física das faces, e não das costas ou dos ombros, como em uma multidão cujas possibilidades de estabelecer e de manter contato são tão numerosas que é difícil identificá-las. Qual é a diferença entre um happy hour virtual e um happy hour em “carne e osso”? De uma teleconsulta médica de uma consulta presencial? De uma aula verdadeira em uma sala com estudantes de verdade e um professor de MOOC [Massiv Open Online Courses]? O regime generalizado de imagens faz com que se perca de vista os efeitos da redução do real a algo óptico frente a qual só podemos ser espectador. Mesmo uma fotografia, com seu formato, seu papel, seu contexto de exposição, sua história, etc., é irredutível a uma “imagem”.
A imagem [no caso da fotografia] entra no face a face da química, da mensagem subliminar, na interpretação de gestos complexos, das emoções e das intuições, dos microeventos que influenciam o fluxo da interação, [há] uma flexibilidade no ajuste graças ao deciframento instantâneo de expressões faciais de emoção [nela contida], permeada de um grande cuidado para evitar que qualquer desconforto acabe com a troca.
Eu vejo duas grandes vantagens [do face a face], facilmente transponíveis em termos de cultura política: a primeira é que as pessoas se cuidam ativamente durante uma interação, evitando o máximo de constrangimentos, aqueles possíveis embaraços, os erros e os fracassos que Erving Goffman analisou tão minuciosamente. As relações face a face geram igualdade e reciprocidade. São os rostos em relação aos outros rostos. A segunda vantagem é que a união social formada repousa apenas na mesma consideração que as pessoas têm por isso, e não na assunção de qualquer identidade com relação à raça, gênero, classe social, religião, etnia, etc. O face a face exclui a identificação. Os rostos existem apenas em um mundo social plural.
A qualidade de interação para ser enigmática é perfeitamente comum. Nós a procuramos e a encontramos na vida diariamente. Ao menos isso é desejável. Ela desliza em todas as trocas, incluindo as mais úteis. Casos que existem em estado puro são mais raros e pontuais do que aqueles em que são intercalados com interações cujo objetivo é o de obter resultado específico. Como havia explicado Malinowski, a função do contato na linguagem que é acompanhado de gestos e de afetos (tipo de comunicação intercorporal) e suas funções informativas não são separáveis: é somente quando uma “comunhão fática” é estabelecida, cuja função é “juntar, montar, conectar”, por intermédio da palavra incorporada, que é possível “passar” a informação.
Sem copresença é difícil se “engajar” (Goffman) em uma interação social. Da mesma forma, Michel Maffesoli mostrou claramente a importância da função tátil na comunicação. Durante uma troca os interlocutores associam espontaneamente o câmbio de informações e o fato de quererem metaforicamente tocar um ao outro [com gestos, trejeitos, movimento de mãos].
À vista disso, é enganoso opor, de um lado, tagarelice, fofoca e conversa de café, e todas aquelas ocasiões em que falamos “à toa”; e, por outro, a chamada comunicação racional, de troca de argumentos ponderados, em debate público e científico. Todos os estudos relacionados às trocas digitalizadas tem concluído que o fático foi perdido como forma de ajudar a “passar” a informação. Na falta de certa dose de conversa fiada e contato físico, as trocas racionalizadas perdem eficácia se tornam incompreensíveis.
Se pesquisadores do mundo todo se reúnem fisicamente em locais concretos, é porque o que acontece face a face, nos corredores e nas refeições, é tão importante se não mais, do que os momentos formalizados de comunicação, de publicação de artigos, de videoconferências e de apresentação de relatórios. Mesmo nas start-up, diante do entusiasmo dos gerentes pelo tele-trabalho que reduz consideravelmente os custos, começou-se a imaginar o que será dessas empresas sem suas lendárias baby-foots, seus bars à graines e suas noites de cerveja.
E quanto a uma medicina sem contato, que tem sido aclamada [por apostarem] que por meio dela vai se lutar contra a falta de médicos, assim como aperfeiçoar economias operacionais e constituir banco de dados sobre pacientes/doenças, será mesmo ela a medicina do futuro? A palpação de órgãos, o sigilo médico, o contato visual, a relação de confiança tão essencial para um paciente que está sempre mais ou menos ansioso. A saúde forjada em cooperação entre quem cuida e quem é cuidado está no coração da filosofia holística de Hipócrates, e nada disso passa através das telas.
Mesmo após várias pesquisas, e estatísticas big data, temos recebido boas notícias acerca de um entusiasmo geral pela comunicação , por outro lado, mais e mais sinais de socorro estão começando a perturbar o consenso estabelecido durante o período de confinamento. “Por falta de algo melhor”. Não, “o tele-trabalho não é para todo mundo”: após meses, os tele-trabalhadores expressam sensação de desgaste, ineficácia, tensão, estresse, burn-out. Os casos de comportamento tóxico e assédio por parte de um responsável que, por trás da tela, se sente todo-poderoso e de quem a confiança nos funcionários é corroída, pela falta de suporte que apenas o face a face é capaz de dar, se multiplica.
Isso não deveria durar. Os “riscos psicossociais” do tele-trabalho é um campo de estudo que deve crescer. Se o ensino à distância prestou um ótimo serviço, também fez muitas vítimas. Muitos estudantes desistiram, até 60% em escolas profissionais; os professores estão esgotados, e às vezes em vão. A distância entre o percurso digital e uma situação de copresença dentro de uma sala de aula é intransitável. Os diretores pleitearam uma reabertura de seus espaços em junho [na França], mesmo que breve, em nome da sociabilidade, do prazer de “encontrar os amigos e a amante", [em nome] do se encontrar novamente, do se despedir antes do verão [período de férias para os franceses], da importância de um ambiente físico para todos os membros da escola, a “comunidade”.
Gabriel Tarde havia salientado que para reinar sem encontrar nenhuma oposição, bastaria remover todos os lugares onde discutimos e instituir “o silêncio universal”. Nesta hipótese, “o próprio sufrágio universal seria impotente para demolir qualquer coisa (…) cafés, salões, lojas, qualquer lugar onde conversamos são verdadeiras fábricas de poder”, concluiu.
Embora ele tenha sido um dos primeiros pensadores da comunicação mundial, Tarde tem mais confiança na conversa face a face do que na leitura simultânea do jornal diário. Porque na ausência de conversas, as notícias de hoje inteligentemente transformadas podem muito bem alistar pessoas: elas não podem, por falta de serem comentadas e compartilhadas, apoiar o processo de formação de uma opinião pública real, o que lhe parecia o próprio objetivo da imprensa diária em países livres. Controlando a imprensa, mas também, e como prioridade, as liberdades de reunião, montagem, expressão, pequenas e grandes sistemas fascistas, paradoxalmente, concedem-lhes uma maior importância do que o resto de nós, que podem estar prontos, se não tomarmos cuidado, para sacrificá-la [a liberdade] no altar das tecnologias da informação e da comunicação.
O face a face [esse estar na presença] é um ecossistema geral em que todos encontram e tomam lugar. Sem ele, os lugares não são escolhidos e negociados, mas distribuídos e alocados unilateralmente. No extremo, o face a face não tem lugar em multidões e massas, pois são elas dispositivos de regimes autoritários e efeitos de uma arquitetura adaptada. Alguns administradores sabem que na ausência de interação face a face, o comprometimento e a cooperação individual ficam comprometidos.
Os indivíduos muito poderosos que representam os “grandes” interesses o sabem muito bem. Eles jamais tomariam uma decisão importante à distância. Para negociar um contrato, fazer uma aliança, selar um tratado, concluir a fusão de um negócio e efetivamente fazer lobby, as pessoas interessadas se movem, às vezes por uma distância muito longa, e sentam-se ao redor de uma mesa onde, para começar, lhes é servida uma boa refeição.
A apologia à comunicação virtual não é destinada às pessoas poderosas que, como Bill Gates, protege seus filhos das telas, para que façam delas usos limitados. Ela é remetida as massas compostas de gerações de estudantes comuns, funcionários cuja rentabilidade é questionada, inúmeros pacientes, mais e mais demandantes, homens e mulheres comuns, pessoas como você e eu cujos atos de decisão ou inovação dificilmente contam em relação ao seu comportamento de consumidor dócil e isolado. De modo traiçoeiro, é o simples prazer da companhia do outro, a partir do qual todo resto procede, que a “nuvem” de trocas à distância nos desloca. Como um barril de ópio [1], ofusca nossas mentes.
Joëlle Zask é professora de filosofia política na Universidade de Aix-Marselha/França. O artigo foi publicado originalmente em francês por AOC media – Analyse Opinion Critique, França, 16-06-2020. A tradução é de Daniela Aparecida Pacifico, socióloga e professora no Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Santa e Catarina (UFSC) e Ariana Bazzano de Oliveira, socióloga e pesquisadora-colaboradora do GETEPOL (Grupo de Estudos em Teoria Política), Universidade Estadual de Londrina - UEL.
[1] O ópio trata-se de uma mistura de alcaloides extraídos de uma espécie de papoula (Papaver somniferum), de ação analgésica, narcótica e hipnótica; contém aproximadamente 12% de morfina, alcaloide analgésico que é processado quimicamente para produzir heroína e outros sintéticos de uso medicinal, embora também negociados ilegalmente. O uso do ópio provoca euforia, seguida de um sono onírico; o uso repetido conduz ao hábito, à dependência química e, a seguir, a uma decadência física e intelectual. Em sentido figurado, Karl Marx, em a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, utiliza uma frase que entra para história referindo-se a religião como ópio do povo. (Nota das tradutoras)