Melinda Cooper (foto acima) registra o “intenso tráfico de ideias entre a biologia teórica mas recente e as retóricas neoliberais do crescimento económico”. Ela permite aos neoliberais combinar o desenvolvimento do setor biomédico, a mercantilização das ciências da vida, a reorientação da biologia para fins militares, as doutrinas reacionárias pró-vida e sobrevivencialista, o supremacismo branco, o discurso neo-conservador e um teologia protestante da dívida. O imperialismo americano é “a forma cultural” do capital”.
Isabelle Garo, Esquerda.net, Contratemps, 6 de Dezembro, 2020
Bioeconomia ou biocapitalismo?
Na base desta rápida apresentação, podemo-nos então interrogar: para que serve hoje em dia o conceito de biopolítica? Se é impotente para descrever adequadamente um estádio histórico determinado, não será apenas a expressão de um desespero político sublimado em metafísica última e em pathos erudito? Estará condenado a reconduzir, no final de argumentações similares, ao contornar de qualquer análise do capitalismo sem se dar ao trabalho de discutir as investigações existentes? A confrontação permanente de Foucault com Marx, e através dele com toda a alternativa socialista ou comunista, tinha continuamente dinamizado a sua investigação, constituindo a noção de biopolítica um dos dos seus marcos. O desaparecimento deste confronto dá lugar a um discurso que gira sem fim, vertiginosamente, em redor dos seus próprios pressupostos.
Por isso, será desejável simplesmente dispensar a noção de biopolítica reduzindo-a a uma conversa crepuscular? Porque ela não é sem sentido e ineficaz: se o que nela está errado é incitar à passividade, o seu mérito continua a ser de sublinhar a viragem assassina das políticas neoliberais e de alertar para a profundidade da destruição que elas impõem às nossas vidas e à natureza: ecocídio mas também femicídios e racismo, devastando a vida social, tornando mais evidente do que nunca a inclusão do mundo humano na natureza que ele transforma, tanto quanto a socialização que induz.
Mas, até para Hegel, as posturas das belas almas têm causas objetivas que convidam a ultrapassar o momento de pura lamentação. Estas causas devem atualmente ser procuradas nas crises interligadas do capitalismo, multiplicando-se umas através das outras. Se a pandemia sublinha o facto de que estas colocam, em última instância, a vida humana em jogo, são os processos em curso que é preciso perceber, as contradições e as brechas a abrir, as mediações e as transições a reconstruir no quadro das lutas de classes implacáveis do nosso tempo. A situação atual evidencia, não a vitória tendencial das lógicas de extermínio mas mais o endurecimento repressivo geral que acompanha a degradação do sistema de saúde pública depois de décadas de política neoliberal dedicadas a destruir e a mercantilizar os serviços públicos. Ora é esta dimensão que as análises biopolíticas contornam, incapazes de pensar a complexidade do Estado capitalista em ligação com a real relação de forças social e com a longa história conflitual que a sedimenta.
Outras abordagens que afirmam a centralidade da vida tentaram remediar estes defeitos. É o caso da temática bioeconómica, iniciada nos anos 1970 pelo economista Nicholas Georgescu-Roegen e que será retomado pelos defensores do decrescimento e da economia do desenvolvimento, como René Passet na França. Mas esta abordagem é igualmente re-explorada, em particular desde os anos 2010 e em ligação com a ascensão das preocupações ambientais, pelas instituições neoliberais e os seus promotores.
Pela sua parte, os teóricos liberais da bioeconomia tentam construir uma visão eufórica do capitalismo verde, baseado na transição tranquila entre o recurso a uma energia fóssil em vias de esgotamente e a utilização da biomassa renovável. A Comissão Europeia dotou-se de um “Observatório da Bioeconomia” e França, como outros Estados, declara-se desejosa de uma “estratégia bioeconómica”. O Clube de Roma foi um precursor na matéria, patrocinando junto do MIT, o prestigioso Massachusetts Institute of Technology, e divulgando a partir de 1972 o famoso relatório Meadows sobre “os limites do crescimento” e desenvolvendo o tema do “crescimento zero”, colocando acima de tudo em causa o crescimento demográfico nos países pobres. Se este relatório suscita então um vasto debate, fornecerá também a pretexto para que catastrofismo e conservadorismo alimentem laços estreitos, dando centralidade à questão da vida simultaneamente nos planos económico e ideológico.
A temática biocapitalista distingue-se desta abordagem. Dado o caminho seguido pela temática biopolítica clássica, que opunha ao marxismo uma outra conceção da história, é impressionante que várias dos analistas contemporâneos do biocapitalismo procurem de novo na obra de Marx as vias de uma crítica renovada da economia política. Desta forma, o investigador em antropologia e novas tecnologias, Kaushik Sunder Rajan, propõe definir-se como “co-produção” a relação entre as ciências da vida de um lado e a política económica do outro, lembrando que “as ciências da vida são sobredeterminadas por estruturas da economia política capitalista no seio das quais elas emergem”[44].
Explorando a coexistência entre as lógicas mercantil e especulativa das indústrias farmacêuticas e biotecnológicas nos Estados Unidos e na Índia, sublinha a diversidade económica e social interna ao capitalismo. Mas as especificidades nacionais do biocapital devem ser elas própria religadas às estratégias diferenciadas dos grandes grupos industriais no quadro de um biocapitalismo global. Este não anuncia assim “uma nova fase do capitalismo”[45], constituindo “alguma coisa mais do que a simples intrusão do capital num novo setor das ciências da vida”[46].
Varrendo as velhas acusações de reducionismo feitas contra Marx, acusações retomadas nomeadamente pela tradição filosófica do biopoder, Sunder Rajan sublinha a capacidade sem par do marxismo em analisar a forma como os fluxos capitalistas “são constantemente animados por interações múltiplas, estratificadas e complexas entre os objetos materiais e as relações de produção estruturais por um lado, e as abstrações por outro, quer se tratem de formas de discurso, de ideologia, de fetichismo, de ética ou de sistemas de crenças e de aspirações redentoras e ou nacionalistas.”[47].
Só que ele quer isolar a “metodologia” que pede de empréstimo a Marx de qualquer opção revolucionária [48].
A socióloga Melinda Cooper dá um passo mais à frente na direção de uma politização da análise do biocapitalismo, estudando a articulação entre o atual regime de acumulação capitalista por um lado, e as ciências e tecnologias da vida por outro, mas também a sua combinação, à primeira vista improvável, com a ideologia da direita evangélica americana. Ela mostra que num sentido contrário à coloração esquerdizante e contestatária destas temáticas no mundo em que surgiram no terreno filosófico francês e europeu, a literatura pós-industrial norte-americana que se desenvolveu na esteira do relatório Meadows, tal como a ascensão correlativa da noção de “bioeconomia” abriram a porta à política neoliberal iniciada por Ronald Reagan,
“uma política que combinou um anti-ambientalismo virulento com cortes orçamentais na saúde pública e um investimento federal massivo nas novas biotecnologias”[49].
Neste quadro, que é também o de uma política americana imperialista, Melinda Cooper assinala a existência de um “intenso tráfico de ideias entre a biologia teórica mas recente e as retóricas neoliberais do crescimento económico” [50]. Ela evidencia a construção ideológica que vai permitir aos neoliberais, sob a presidência de George W. Bush, combinar o desenvolvimento do setor biomédico e em particular da investigações sobre células estaminais provenientes de embriões congelados, a mercantilização das ciências da vida mas também a reorientação da biologia para fins militares, as doutrinas reacionárias pró-vida e sobrevivencialista, o supremacismo branco, o discurso neo-conservador e um teologia protestante da dívida, expressamente reajustada a este objetivo.
“O imperialismo americano (…) deve ser compreendido como a forma extrema, “a forma cultural” do capital”[51].
O recurso às categorias elaboradas por Marx permite-lhe pensar a articulação entre esta ideologia em reconstrução permanente e o dinamismo contraditório do capitalismo: “a vontade de ultrapassar os seus limites e de se deslocalizar no futuro especulativo é a própria definição dos movimentos do capital segundo Marx”[52].
Esta hegemonia neoliberal, obrigada à ofensiva permanente, sabe efetivamente ligar os seus discursos e práticas, acompanhando a ascensão de uma bioeconomia ao mesmo tempo globalizada e diferenciada, no quadro de uma lógica imperialista conflitual e em ligação com uma conceção do trabalho de produção e de reprodução pensados como custos a reduzir. Por isso a indústria farmacêutica europeia e norte-americana deslocaliza os seus ensaios clínicos em cobaias humanas para zonas onde as suas obrigações éticas são mais fracas, na Índia e na China em particular: “esta tendência à deslocalização do trabalho biomédico e clínico, tal como a emergência de mercados transnacionais de “doadores” de órgãos, de sangue, de tecidos e de óvulos, testemunha a nova divisão do trabalho, da vida e das mais-valias que são suscetíveis de se acumular no quadro de uma autência bioeconomia”»[53].
Concluindo, evoca sem precisar mais a emergência associada às “novas modalidades de contestação”[54].
Apesar dos seus limites, uma tal análise do biocapitalismo, rompendo com a metáfora vitalista assim como com a tese de um transplante imediato da política na vida, empreende o estudo das estratégias desenvolvidas pelos responsáveis neoliberais altamente conscientes dos interesses de classe que defende e manuseando uma arte consumada das mediações e do lobbying. A sua atividade e convicções violam em todos os aspetos as teorias da biopolítica: nos antípodas de um cuidado das populações, segundo a hipótese que consiste em tomar ingenuamente à letra a primeira versão do discurso neoliberal, mas longe de toda a lógica exterminadora, é o reforço da exploração e todas as formas de opressão que aí se combinam, que lhes surge como o único meio para escapar à crise do capitalismo, à fraqueza presente dos ganhos de produtividade e às ameaças que esta faz pesar sobre as taxas de lucro.
Esta lógica da mercantilização integral e da destruição das conquistas sociais anteriores inclui uma nova relação face aos saberes que chega até à falsificação das relações científicas ao ponto de, segundo o biólogo marxista Rob Wallace, “o desvio da ciência para fins político entrou ele próprio na sua fase pandémica”[55]. Nestas condições o surgimento do vírus torna-se mesmo, sob certos pontos de vista, uma verdadeira oportunidade concorrencial:
“no decurso desta espécie de guerra bioeconómia, a indústria agroalimentar pode prosperar enquanto as estirpes de gripe mortais provenientes das suas próprias atividades se propagam aos concorrentes menos potentes. Nenhuma teoria da conspiração é necessária: nenhum vírus foi concebido em laboratório, nenhum ato consciente de espionagem ou de sabotagem teve lugar. Trata-se aqui mais de uma negligência crescente face ao risco mortal que advém quando os custos da pecuária intensiva são externalizados”[56].
Por conseguinte, nos antípodas da teoria de tendências conspiracionistas de Agamben, a verdadeira potência da ideologia que acompanha este mundo ao contrário que é o capitalismo consiste não em mentir mas em produzir um discurso que apresente uma capacidade descritiva real, re-ajustando os pressupostos e as crenças dominantes aos factos, combinando este discurso a práticas e políticas concretas, que parecem, por sua vez, valida-los.
A Covid-19 é um exemplo perfeito da estratégia do choque teorizada por Naomi Klein, ocasião para acelerar as políticas neoliberais, estender o controlo e a repressão das classes populares e mobilizações sociais, reforçar fronteiras, atiçar o racismo e o nacionalismos, aumentar a dominação das mulheres e acelerar a destruição da natureza, enquanto a própria pandemia e o desastre sanitário associado são o produto direto destas mesmas lógicas capitalistas: desmantelamento avançado dos serviços públicos, extrativismo desenfreado, urbanização anárquica, desflorestação e destruição de habitats naturais das espécies patogénicas, extinção animal em massa, explosao do agro-negócio, sujeição das ciências, indústria farmacêutica focada nos lucros, etc.
Por detrás do caráter aparentemente natural da epidemia transparecem tendências de fundo do capitalismo contemporâneo financeirizado. A destruição da medicina pública é uma escolha, que a tornou incapaz de fazer face ao afluxo de doentes contribuindo para transformar rapidamente a propagão de um vírus, indiscutivelmente perigosos mas relativamente pouco letal, num desastre sanitário de grande amplitude.
Se, do desencadear da pandemia até à sua gestão, é o capitalismo que está em causa, como opor a uma lógica tão consistente e potente, apesar da sua crise radical, um projeto alternativo que não se fique por ser um contra-discurso ou as variações infinitas sobre o catastrofismo biopolítico, mas que saiba ele também ancorar-se concreta e estrategicamente nas práticas, nas lutas, nas formas de organização aptas a combater a destruição em curso? Dito de outra forma, como reconstruir num mundo digno desse nome as solidariedades existentes e persistentes?
Metabolismo e reprodução social
Não se trata então de acabar com a questão da vida mas de a redefinir e a repolitizar com a finalidade de intervir nas contradições mais vivas de uma sequência histórica e de que a pandemia sublinha e acelera, como se disso houvesse necessidade, o curso catastrófico. Sinalizar estas contradições não é deplorar uma tendência irresistível para a colonização do mundo e dos saberes sob a ação de um poder ou de tecnociências diretamente ramificadas sobre o ser vivo, deixando uma tal análise esmagar o espaço social e político da intervenção coletiva. Trata-se mais de confrontar como tal, teórica e politicamente, um capitalismo contemporâneo confrontado com a sua não-viabilidade crescente e com a contestação radical que ele ao mesmo tempo engedra e combate. A exploração de uma tal dialética, para além de todas as oposições sumárias e congeladas, é a condição da reconstituição de uma perspetiva política de transformação radical, cujo projeto constitui o princípio de análise do capitalismo proposto por Marx sob o nome de “crítica da economia política”.
Ora, interditando pensar as contradições reais no quadro de análise dialética, odiada por Foucault, a biopolítica e os seus derivados reconduziram e amplificaram a cisão de ascendência liberal que tende a cortar a política das relações de produção. Operador conceptual do longo contornar das questões da produção e da reprodução, esta abordagem contribuiu em primeiro lugar para recentrar a crítica sobre as questões da circulação e do consumo, depois fechando a análise nas formas aperfeiçoadas do “controlo”, que tomam por alvo os corpos individuais, antes de terminar como uma metafísica aterrorizante. Enquanto que a temática da biopolítica e do corpo pretendia exumar o nível político mais fundamental e mais radical, ela permaneceu nas formas de surgimento e manifestação das relações sociais, sem nunca proceder ao estudo das formas concretas de exploração e da dominação contemporâneas.
Mas, longe de uma biopolítica descritiva ou anunciadora do pior, como repensar uma vitalidade social tão tenaz quanto frágil, atravessada por possíveis e engrenando-se efetivamente nos fenómenos biológicos e naturais sobre os quais o capitalismo empreendeu a mercantilização integral, a fim de operar a reapropriação das nossas vidas sociais e sensíveis? É esta pista que exploram, por exemplo, os promotores da corrente “Structural One Health” que propõem uma abordagem histórico-materialista da etiologia religada a uma análise precisa do capitalismo contemporâneo, das suas cadeias mundiais e das suas consequências sociais e ecológicas[57].
Abordada sob este ângulo, a temática da vida surge redinamizada pelas lutas sociais e perspetivas estratégias que integra na sua abordagem. Dois eixos em particular devem ser reexplorados. O primeiro é o do trabalho vivo e da força de trabalho, permitindo reinvestir a questao da produção abandonada pelas temáticas biopolíticas. O segundo, em ligação com o precedente, é o da reprodução social, metabolismo de nível dois, que implica, retomar não a metáfora vitalista e os seus impensados naturalizantes mas a questão da unidade humanidade-natureza com objetivo de a reajustar aos desafios políticos mais vivos e efervescentes da nossa época.
Nos dois casos, trata-se de abandonar a oposição simples do dinamismo vital contra as estruturas mortíferas. Já que o capitalismo é ele mesmo um processo dinâmico e adaptativo – mesmo que só ganhe vida vampirizando a atividade social, segundo a fórmula de Marx –, estando estruturado segundo formas e instituições que asseguram a sua reprodução e regulação. Diferencia-se dos outros modos de produção devido à sua tendência de se apropriar tão completamente quanto possível da força de trabalho e tempo de vida e antecipar o futuro. A este respeito, as diversas análises do trabalho vivo enquanto lugar central de resistência à lógica capitalista, desenvolvidas pelos operaistas italianos, Toni Negri, pelos teóricos da Wertkritik ou ainda por Christophe Dejours, apelam a uma discussão que não tem lugar aqui.
Retomada como contradição histórica determinada, a alienação capitalista é lugar da luta entre uma aspiração à reapropriação das suas próprias capacidades humanas e o seu esmagamento mutilador. A questão é então muito estratégica e não metafísica: como, a partir desta aspiração, desencadear uma “revolução democrática do trabalho”[58], uma reapropriação das atividades humanas cujos resultados se encontram separados dos seus produtores e voltados contra eles, no terreno económico e político mas também cultural? Pensada desta forma, a questão da vida alarga-se à capacidade de invenção coletiva e revolucionária das formas adequadas à reorganização da relação sociedade-natureza, que constitui um metabolismo específico.
Esta noção de metabolismo, utilizada por Marx e renovada nomeadamente por John Bellamy Foster e outros[59], que fez nascer um debate muito rico sobre a “Metabolic Rift Theory” (a teoria da rutura da troca metabólica), permite ultrapassar a ideia de um simples face a face exterior entre homens e natureza. Abre caminho ao que poderia ser uma redefinição política e estratégica da vida em sentido amplo, como lugar da luta agora decisiva entre uma reapropriação democrática da nossa história coletiva ou então a sua devastação capitalista, ameaçando todas as formas de vida. Esta abordagem faz da luta de classes organizada o meio para reconectar a questão das necessidades sociais e da reprodução social, em sentido amplo, em combate contra o conjunto das dominações existentes, permitindo pensar a federação política das lutas, não como simples adição de conflitos esparsos, mas como colocação em rede de confrontos sociais, ligados a um modo de produção entrado na sua fase mortal de “capitalismo da catástrofe”.
É este desafio, tão considerável quanto urgente, que a atual pandemia e a ascensão concomitante da temática biopolítica faz brilhar, falhando em lançar luz sobre o emaranhado de causalidades e do seu enraizamento no trabalho social de produção e de reprodução da vida social por inteiro. O facto de que os migrantes, as pessoas racializadas, as mulheres, as classes trabalhadoras, o Sul global, sejam as primeiras vítimas desta crise, dito de outra forma que “a propagação da Covid-19 apresente todas as características de uma pandemia de classe, de género e racializada”, [60], como escreveu David Harvey, mostra que a biopolítica não é decididamente nem o nome do problema nem o da solução mas mais a intuição de desafios de dimensão sem precedentes.
As teorias da reprodução social situam-se precisamente no terreno é visado, sem o atingir, a noção de biopolítica, uma vez que funde e confunde registos ao invés de articular atividades no seio do modo de produção que lhes confere a sua unidade. Se nos situarmos no terreno da economia política como Marx a concebia, ou seja não reduzindo nunca a questão da produção apenas à sua dimensão económica, ela própria tantas vezes erradamente resumida na sua dimensão mercantil, a produção é inseparável da reprodução: a reprodução é a operação quase biológica e contudo fundamentalmente social de reconstituição da força de trabalho mas também de reprodução das próprias relações sociais, dia após dia.
Esta reprodução visa a perpetuação do trabalho assalariado enquanto tal e assim da própria força de trabalho, nas condições concretas e na medida exata em que “esta reprodução ou perpetuação constante do operário é a condição sine qua non da produção capitalista”[63]. Mas este processo é, por isso mesmo, o lugar de uma contradição essencial que faz confrontar-se a lógica capitalista de transformação da força de trabalho humana em pura e simples mercadoria e o facto, que Marx sublinha, que esta não é produzida como mercadoria mas apenas trocada como tal por aqueles que são dela portadores. Esta troca é o resultado de uma longa história da formação social capitalista que separa os trabalhadores dos meios de produção para os converter em assalariados.
Mudar a vida?
Se a “vida” do capitalismo e a vida imposta pelo capitalismo devem ser combatidas é precisamente porque elas carregam em si o seu caráter propriamente invivível e profundamente mortífero que as torna insustentáveis. Há que precisar desde já que está afirmação não decorre de um julgamento moral ou da confrontação desta forma de vida desviada de uma “vida verdadeira” que se revelaria uma crítica do tipo ontológico. Resulta desta crítica imanente e objetiva desenvolvendo ao mesmo tempo as contradições reais e as lutas conscientes que elas alimentam.
Nancy Fraser escreve que: “toda a forma de sociedade capitalista abriga uma “tendência à crise” ou uma “contradição” social-reprodutiva ancorada na profundidade. Por um lado, a reprodução social é uma condição de possibilidade de uma acumulação duradoura do capital; por outro lado, a orientação do capitalismo para a acumulação ilimitada tende a desestabilizar os próprios processos de reprodução social sbre os quais se apoia.”[64].
Esta contradição adquire uma dimensão política potencial, amplificada pela atual crise sanitária:
a proteção relativa da força de trabalho, através de decisões que abrandam ou mesmo param certos setores da produção, entra em relação complexa, conflitual, com uma lógica capitalista de precarização dos assalariados, que colocação em concorrência e de hierarquização social que combina racismo, sexismo e exploração.
Abrindo e fazendo crescer uma “crise de reprodução” específica mas inseparável da crise de conjunto do capitalismo, esta contradição explode e impõe justamente que se coloque a temática da vida no centro da análise. É o que tentam fazer algumas abordagens da teoria da reprodução social, desejosas de contribuir para a mobilização política anticapitalista: “a teoria da reprodução social visa antes de mais compreender como as categorias da opressão (como o sexo, a raça e o capacitismo) são co-produzidas simultaneamente com a mais-valia.”[65].
Para quem, neste quadro, se reivindique do marxismo, é na ligação direta com a questão da luta de classes que as questões contemporâneas da vida se esclarecem. Segundo Martha Gimenez[66], em conformidade com a ideia marxiana de que o modo de produção determina o modo de reprodução, é o controlo exercido pela classe capitalista sobre as suas próprias condições de reprodução e sobre as das classes laboriosas que determina em última instância as relações entre os sexos e o papel da família.
Mas este controlo é ele próprio contraditório: no capitalismo, o trabalhador despossuído dos meios de produção é proprietário da sua força de trabalho, que vende “livremente” e que mantém também “livremente”, cabendo esta manutenção à esfera privada, separada do mundo da produção social. Esta separação conduz a fazer da família nuclear e do trabalho doméstico assegurado pelas mulheres, o lugar central da reprodução da força de trabalho.
Atravessado por relações de dependência e de dominação que tomam a aparência de escolhas livres mas também as de uma dominação que seria estritamente masculina, o lar é o lugar onde se exerce e se traveste uma causalidade complexa, mostrando a ambiguidade ou mais exatamente a natureza propriamente dialética de todas as mediações reconfiguradas pelo capitalismo: como o Estado, como o saber, como a moeda, o lar está constituído como esfera separada que refrata e reproduz as relações sociais de produção que parecem à primeira vista ser-lhe exteriores, até radicalmente estranhas.
Assim, como todas as outras mediações, a estrutura familiar, o estatuto das mulheres e em particular as mulheres racializadas a quem são delegadas as tarefas domésticas sob a forma mercantilizada, mas também as sexualidades, são lugares de lutas específicas. Estas lutas, se concebidas de forma estreita, podem alimentar lógicas identitárias fechadas, mas também se podem tornar o lugar ativo de um tomada de consciência anticapitalista crescente, suscetível de colocar na ordem do dia, através da sua estruturação política e crítica, a perspetiva da abolição do capitalismo.
Deste ponto de vista, afirmar a centralidade das relações de produção capitalistas não menoriza as lutas feministas (ou anti-racistas), na sua ligação fundamental à questão ecológica, antes pelo contrário: esta afirmação consiste em reconhecer ao mesmo tempo a subordinação causal e a centralidade vivida como decisiva do trabalho reprodutivo que, em todos os seus aspetos, contribui, para forjar a força de trabalho como capacidade ou potência do indivíduo vivo, irredutível ao seu estatuto de assalariado e em luta por condições de vida conformes a esta essência social historicamente construída: “o trabalho humano está no coração da criação ou da reprodução da sociedade como um todo”[67].
Reciprocamente, reduzir as questões da reprodução às questões da produção achata e oculta a estruturação complexa das relações sociais capitalistas e, consequentemente, ignora os desafios globais das reivindicações e aspirações, sempre individuais sem deixar de ser íntimas. É precisamente neste ponto que uma figura de “vida verdadeira” se pode construir, que não tem nada de um sonho eternamente adiado para as calendas, nada também de um programa exterior aos mil conflitos reais nos quais estamos implicados. Viver melhor, viver verdadeiramente, desde já, é lutar e conseguir ao mesmo tempo metabolizar as nossas lutas em força política coletiva.
Isabelle Garo é filósofa especialista no pensamento de Marx. Co-dirige a revista Contretemps, faz parte da equipa de redação da revista Europa e é responsável pela coleção Lignes Rouges nas edições Amsterdam. Texto publicado na revista Contretemps. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.
[44] Kaushik Sunder Rajan, Biocapital – The Constitution of Postgenomic Life, Durham, Duke University Press, 2006, p. 6.
[45] Ibid., p. 277.
[46] Ibid., p. 283.
[47] Ibid., p. 20.
[48] Ibid., p. 7.
[49] Melinda Cooper, Life as Surplus: Biotechnology and Capitalism in the Neoliberal Era, Washington, University of Washington Press, 2015, p. 18.
[50] Ibid., p. 20.
[51] Ibid., p. 165.
[52] Ibid., p. 25.
[53] Ibid., p. 175.
[54] Ibid., p. 176.
[55] Rob Wallace, Big Farms Make Big Flu – Dispatches on Infectious Disease, Agribusiness, and the Nature of Science, New York, Monthly Review Press, 2016, p. 22.
[56] Ibid., p. 115.
[57] “Para os apoiantes da Structural One Health, a chave consiste em determinar como as pandemias na economia mundial estão ligadas aos circuitos dos capitais modificam rapidamente as condições ambientais”, John Bellamy Foster e Intan Suwandi, Le Covid-19, la crise écologique et le ‘capitalisme de catastrophe’(link is external), Contretemps, 24 de julho de 2020.
[58] Alexis Cukier, Démocratiser le travail dans un processus de révolution écologique et sociale(link is external), Les Possibles, 24, Verão de 2020, Attac.
[59] John Bellamy Foster, Marx écologiste, Paris, Editions Amsterdam, 2011.
[60] David Harvey, Covid-19: où va le capitalisme ? Une analyse marxiste(link is external), Contretemps, 7 de abril de 2020.
[61] Karl Marx, Le Capital, Livro I, Paris, PUF, 1993, p. 635.
[62] Ibid., p. 648.
[63] Ibid., p. 641.
[64] Nancy Fraser, Crisis of Care? On the Social-Reproduction Contradictions of Contemporary Capitalism, in: Tithy Battacharya (ed.), Social Reproduction Theory – Remapping Class, Recentering Oppression, London, Pluto Press, 2017, p. 63.
[65] Tithy Battacharya, Mapping Social Reproduction Theory, in: Tithy Battacharya (ed.), Social Reproduction Theory, éd. cit., p. 46.
[66] Martha Gimenez, Marx, Women and Capitalist Social Reproduction: Marxist Feminist Essays, Leiden, Brill, 2018, ch. 2.
[67] Tithy Battacharya, Mapping Social Reproduction Theory, éd. cit., p. 15.