Enquanto as previsões do Banco Mundial apontam para o crescimento da pobreza extrema pela primeira vez em 20 anos, com até 150 milhões de pessoas a viver com 1,61 euros por dia, os multimilionários tiveram ganhos históricos este ano, com algumas fortunas a ultrapassar os 200 mil milhões de dólares.
Esquerda.net, 20 de dezembro de 2020
Num ano marcado por crises, aumento do desemprego e falência de muitas empresas, nem todos sentiram na pele os impactos devastadores causados pela pandemia de covid19 na economia mundial. Se as previsões do Banco Mundial indicam que a pobreza extrema aumentará pela primeira vez mais em 20 anos, os multimilionários, os mais ricos entre os mais ricos de todo o mundo, tiveram ganhos históricos em 2020, com alguns a ver a sua fortuna pessoal ultrapassar os 200 mil milhões de dólares e a ingressarem na categoria de “centibilionários”. Que a crise não é igual para todos já se sabia, mas 2020 veio mostrar que na saúde e na doença também não.
Na saúde e na doença
Logo em janeiro, quando o mundo começava a ouvir falar da pandemia através de notícias de surtos na China, o número de voos em jatos privados subiu em flecha. Para evacuar os seus altos quadros, as multinacionais com presença no sudoeste asiático recorreram a jatos privados para estes não se cruzarem com os restantes passageiros nos voos comuns. O mesmo foi feito pelas famílias milionárias a viver na região.
Muito rapidamente a tendência espalhou-se por outras partes do globo. “Cada vez mais, estamos a assistir a clientes que procuram voos privados entre uma variedade de destinos globais de forma a evitar exposição a multidões nas cabines dos aviões comerciais e nos terminais dos aeroportos”, dizia em março Adam Twidell, presidente executivo da PrivateFly, ao jornal Guardian.
E numa altura em que os testes eram um bem escasso, maioritariamente disponível nos serviços públicos de saúde, os milionários tentavam pagar por ter acesso a estes nos serviços privados ou optavam por se deslocar até outros países para a eles acederem.
Enquanto isso, as desigualdades entre países na resposta à covid começavam a ser óbvias. Enquanto as economias mais avançadas dispunham de mecanismos de mitigação dos impactos económicos – por exemplo, a atuação dos bancos centrais na injeção de liquidez nos mercados que permita conter o pânico dos investidores e facilitar as condições de financiamento dos Estados (evitando que os juros da dívida pública disparem) – os países em desenvolvimento não tiveram semelhante sorte.
Já a ambição do Banco Mundial de erradicar a pobreza extrema até 2030 caiu por terra. Segundo as suas previsões, a pobreza extrema aumentará pela primeira vez em vinte anos, empurrando "mais 88 a 115 milhões de pessoas para a extrema pobreza este ano, com o total a chegar aos 150 milhões em 2021, dependendo da severidade da contração económica". Considera-se que alguém está em situação de pobreza extrema quando vive com um rendimento abaixo de 1.90 dólares (1.61 euros) por dia.
Taxem-nos, por favor
Ainda em meados do ano um grupo de milionários, entre os quais constavam um dos fundadores da marca de gelados Ben and Jerry’s e os herdeiros de Walt Disney, publicavam uma carta aberta apelando ao aumento de impostos sobre os mais ricos de forma a ajudar a financiar a luta contra a pandemia.
“Temos dinheiro, muito dinheiro. Dinheiro que é extremamente necessário agora e que vai continuar a ser necessário nos próximos anos, à medida que o mundo recupera desta crise”, diziam os "milionários pela humanidade".
“Por favor. Taxem-nos. Taxem-nos. Taxem-nos. É a escolha certa. É a única escolha”. Não consta que os seus apelos tenham sido atendidos.
Este apelo, inédito, foi tão mais surpreendente quanto a publicação em julho de um relatório do banco suíço UBS que indicava que mais de três quartos das pessoas mais ricas do mundo tinham declarado um aumento da sua riqueza pessoal. E se em alguns casos as fortunas destas pessoas cresceram dentro do previsto para um ano normal sem uma crise mundial, noutros as fortunas cresceram muito acima do previsto.
Segundo o banco, estes resultados explicam-se pelo facto de os super-ricos terem dinheiro suficiente para “acolher e gerir o risco como nenhum outro investidor” e serem mais “disciplinados”, uma vez que “mantiveram os seus planos” apesar dos efeitos económicos da crise pandémica. Ao mesmo tempo, sabia-se que eram os mais pobres os mais atingidos pela crise.
Mas de facto a distribuição de rendimentos e a riqueza de um país são um de vários fatores que explicam as diferentes respostas à crise pandémica e a sua respetiva taxa de mortalidade.
Ganhos milionários
A Reserva Federal dos Estados Unidos da América causou uma subida do mercado bolsista quando anunciou as suas decisões sobre inflação e com o compromisso de manter taxas de juro congeladas a longo prazo, causou uma subida do mercado bolsista, algo diretamente relacionado com o crescimento das fortunas multimilionárias, sobretudo das relacionadas com empresas tecnológicas. Numa única semana de agosto, os 500 mais ricos do mundo estavam 209 mil milhões de dólares mais ricos do que nos oito dias anteriores.
Só Jeff Bezos, fundador da Amazon, viu a sua fortuna crescer mais 84,9 mil milhões de dólares este ano, duplicando o dinheiro que registara em 2017 e alcançando o valor total de 200 mil milhões de dólares. Enquanto isso, Bezos pedia donativos para pagar as baixas de alguns dos trabalhadores da Amazon, empresa conhecida pelo atropelo dos direitos laborais e pela isenção de impostos de que goza nos EUA. Quando alguns trabalhadores denunciaram as parcas condições de segurança sanitária nas instalações da empresa, o homem mais rico do mundo reagiu despedindo-os.
Também o patrão da Tesla, Elon Musk, atingiu um patamar de riqueza da ordem dos 76,1 mil milhões de dólares, fazendo uma entrada direta para o pequeno clube dos “centibilionários”, ou seja das pessoas cuja riqueza supera os cem mil milhões de dólares. A par de Musk só constam nesse grupo outras três pessoas: Jeff Bezos, Bill Gates e Mark Zuckerberg. Todos juntos têm uma riqueza de 540 mil milhões de dólares.
“A economia bilionária foi potenciada pelos responsáveis políticos, que agora estão parados na garantia de apoios à economia real”, explicava em setembro Chuck Collins, diretor do Programa de Desigualdade do Institute for Policy Studies e coautor do relatório Billionaire Bonanza 2020.
“A diferença é gritante entre os lucros para os multimilionários e a miséria económica generalizada nos EUA. Claramente, as prioridades dos políticos eleitos em Washington estão completamente ao contrário”, declarou.
Coincidentemente, 2020 foi também o ano em que se registaram doações recorde para as eleições federais dos EUA, num aumento de 50% face aos valores de 2016. E vieram, sobretudo, dos super-ricos.