Pela primeira vez, o resultado da eleição presidencial do Irã foi pré-determinado
Dostmohammad Punjabi, Carta Maior, 26 de junho de 2021ADASTRE-SE
Tem uma piada entre os iranianos que diz que o sistema político iraniano dever ser bem mais avançado que o dos Estados Unidos; meses antes da eleição estadunidense, milhões duvidavam sobre quem seria o vencedor, mas meses antes da eleição iraniana, todos estavam certos sobre quem seria o vencedor.
O Irã iniciou um processo eleitoral no qual o voto é pré-determinado e no qual a participação eleitoral provavelmente terá uma baixa histórica. O líder Supremo Ali Khamenei parece ter escolhido a dedo Ebrahim Raisi, um linha-dura que é chefe do judiciário, para suceder Hassan Rouhani na presidência.
Isso nunca aconteceu no Irã, e desde 1997 – quando Mohammad Khatami, um candidato reformista, conquistou a presidência – as eleições têm sido especialmente imprevisíveis e dramáticas. Khatami continuou a desafiar as adversidades ao ganhar outro mandato em 2001 contra candidatos conservadores. Quatro anos depois, um desconhecido apoiado por Khamenei chamado Mahmoud Ahmadinejad subverteu os acordos anteriores. Sendo um extremista de direita ostensivo, ele secretamente cultivava sentimentos anti-establishment. Enquanto isso, um movimento popular democrático chamado Movimento Verde, nascido na eleição de 2009, abalou o sistema por mais de um ano.
Em 2013 e 2017, outro candidato reformista, Hassan Rouhani, concorreu em uma plataforma que se uniu à ordem global, à desescalada e reversão de restrições sociais e religiosas. Ele derrotou facilmente os candidatos linha-dura que se organizaram contra ele, incluindo Raisi.
Em todas essas ocasiões, a mobilização popular e espontânea emergiu de baixo. O regime tolerou isso como o preço a ser pago pela manutenção da sua legitimidade e uma amostra de sua soberania popular.
Essas eleições passadas não foram completamente democráticas. As mulheres não podem se candidatar, e os candidatos devem ser avaliados por um processo no qual somente os chamados pela elite religiosa, em última instância, têm permissão para concorrer. Ainda assim, as eleições fornecem oportunidades para os dissidentes dentro do regime vociferarem suas opiniões e, até mesmo, serem eleitos.
A participação em massa no processo eleitoral tem sido a pedra basilar da República Islâmica desde o início. Em 1979, o eleitorado votou para abolir a monarquia. Esse é um legado do fundador da república, Ruhollah Khomeini, que estava determinado que desviar do seu modela significaria trair a sua visão. O líder supremo atual, Khamenei, até agora, seguiu a mesma fórmula. As eleições conferem tanto legitimidade e um dinamismo interno ao sistema, o que, provavelmente, prolongou o comando do clero contra as adversidades.
Pesquisas de opinião informais indicam que é esperado que a taxa de participação, que, normalmente, representa em torno de 70% do eleitorado, caia para baixo dos 35%, talvez chegando até os 20%.
Se é permitido que a eleição aconteça sob essas circunstâncias – sempre há a chance de Khamenei reverter o processo por decreto - um pilar do sistema clerical, nomeadamente seu elemento republicano, será permanentemente prejudicado. Quando os eleitores brigam com o establishment político, eles podem não ser facilmente atraídos de volta para as urnas eleitorais. Esse tipo de fissura, como enfatizou repetidamente o fundador da república, poderia pôr em perigo o regime islâmico à longo prazo.
QUEM É RAISI?
Raisi é um juiz clerical de 61 anos, que está, agora, pronto para alcançar o mais alto escalão do establishment teocrático na República Islâmica. Em escolas seminaristas, primeiro na cidade de Mashahd e depois na cidade sagrada de Qum, ele se tornou um seguidor devoto de um clérigo chamado Noorollahian que, depois, se tornou assistente do guardião do Iman Reza Shrine, um dos centros nervosos do regime clerical. Aos 23 anos, ele se casou com a filha do futuro líder da oração de sexta-feira da cidade de Mashahd, um clérigo linha-dura chamado Ahmad Alamolhoda. Tanto seu professor quanto seu sogro tiveram papéis importantes em sua ascensão meteórica no firmamento jurídico-clerical. Graças a essas conexões, bem como ao seu talento para a manipulação política, ele subiu entre os escalões do sistema jurídico com incrível velocidade. Começando como promotor assistente e inspetor das cortes revolucionárias nas províncias, ele logo se tornou um importante promotor em uma cidade há 30 milhas a oeste da capital. Aos 25 anos, Raisi encontrou seu caminho para Teerã, onde assumiu um posto como assistente do general promotor chefe das Cortes Revolucionárias, Ali Razini. Dois anos depois, em 1988, ele foi convidado para participar do chamado Comitê da Morte para elaborar sentenças capitais para milhares de prisioneiros políticos que se recusaram a renunciar às suas crenças políticas e ideológicas. Isso foi nos últimos meses da Guerra Irã-Iraque nos quais a sensação de medo e paranóia impregnou o regime inteiro.
Depois de se juntar ao Comitê da Morte, foi uma viagem tranquila até cargos mais altos como inspetor geral do Judiciário, promotor chefe do Tribunal Especial do Clero e, nos últimos três anos, juiz principal do Judiciário.
Mas até agora, as pessoas acreditavam que o Comitê da Morte era formado por apenas três juízes. Poucas pessoas sabem que Raisi era, na realidade, o quarto jurista, que presidia os procedimentos. Esse desenvolvimento surpreendente foi revelado em agosto de 2016 por meio de esforços da família de um clérigo dissidente morto chamado Ayatollah Hossein Ali Montazeri.
Em agosto de 2016, a família de Montazeri divulgou uma mensagem gravada de um encontro no qual o clérigo morto advertiu os membros do Comitê sobre seus delitos sangrentos. Ele disse, “a história nos condenará por isso, e os nomes dos responsáveis serão escritos na história como criminosos”. Raisi, rotineiramente, evita falar sobre as acusações, preferindo culpar Khomeini pelas ordens e minimizar seu próprio papel.
A escolha de Raisi como o líder do Irã – em uma época em que há rumores persistentes sobre a deterioração da saúde do líder supremo – é uma escolha enigmática. No lado positivo, seu histórico de luta incansável pelos interesses do establishment clerical o conecta ao vasto arranjo de facções e grupos que se encontram debaixo do guarda-chuva das forças Principistas ou Conservadoras. Uma série de retrocessos – incluindo a perda das eleições para os reformistas odiados, a traição de Ahmadinejad, o assassinato de Qasem Soleimani, o colapso econômico, e o acordo nuclear desagregador – desmoralizaram essas facções linha-dura nos últimos anos, e vêm buscando uma figura carismática unificadora como Raisi para restaurar a confiança em sua ideologia.
Além disso, nos últimos anos, Raisi e seu time formaram uma imagem dele como um batalhador incorruptível. A televisão estatal frequentemente transmite imagens de suas visitas à tribunais, fábricas fechadas, e lotes vazios, onde ele é visto falando contra a má conduta do governo. Em toda essa cobertura, ele tenta parecer despretensioso e incomodado pela injustiça. Às vezes, ele é visto ordenando novas decisões contra um julgamento passado. Em seu website, ele afirma que demitiu centenas de juízes e promotores públicos corruptos de acordo com a sua capacidade como chefe do Judiciário.
Ainda assim, o fato de que ele terá ganhado a presidência de um jeito não competitivo e desigual, certamente, manchará sua reputação com o eleitorado por anos.
Mir-Hossein Mousavi, líder do Movimento Verde, que está em prisão domiciliar há mais de 10 anos, expressou a sua solidariedade com as pessoas que estão boicotando a eleição. Chamando a eleição de “armação”, ele condenou “a total eliminação e destruição do republicanismo”.
Até mesmo os dois maiores grupos reformistas-clericais – a Sociedade Clériga Militante e a Sociedade dos Pesquisadores e Professores Teológicos – que sempre encorajaram as pessoas a votarem no passado, independentemente das condições antidemocráticas, não estão apoiando candidatos. Os Professores Teológicos chamaram a eleição de “superficial”. Em uma declaração divulgada pelo grupo em 26 de maio, alertaram que o Conselho dos Guardiães e “alguns elementos de fora” estão “propensos a criar uma ordem de uma só facção”.
Ao mesmo tempo, o histórico chocante de violação aos direitos humanos de Raisi – especialmente seu papel no assassinato de centenas de prisioneiros políticos no verão de 1988 – é um grande risco para ele e seus apoiadores. Não é inconcebível que o Tribunal Internacional de Direitos Humanos de Haia inicie um processo contra ele, ajuizado por advogados das famílias das vítimas, e o considere culpado.
O FIM DE UMA ERA?
Tinham muitos indicativos que os responsáveis pelas decisões haviam optado por um curso de ação definido pela forma semanas antes do anúncio da lista dos candidatos aprovados. Em 4 de maio, um porta-voz do Conselho dos Guardiães, a entidade encarregada de verificar candidatos, anunciou que havia mudado as regras de seleção, mesmo que para isso fosse necessária uma emenda constitucional. Então, alguns dias depois, outro porta-voz declarou, “bem, as pessoas, bem como as expectativas nacionais e políticas, sempre esperam ver uma grande taxa de participação eleitoral. No entanto, uma participação baixa não configura um problema para a credibilidade e legitimação das eleições”.
Finalmente, em 26 de maio, quando o Conselho dos Guardiães divulgou sua lista final de candidatos para a eleição de 2021, um nome, com exceção do atual vice-presidente e outros candidatos reformistas, estava faltando: Ali Larijani, porta-voz parlamentar em três mandatos, ex-secretário do Conselho Supremo Nacional, e conselheiro especial do líder supremo. Acreditava-se que Larijani era o único candidato que poderia ter derrotado Raisi. (três dos seis juristas no Conselho dos Guardiães haviam sido escolhidos por Raisi)
Não é surpresa que poucas pessoas aparecerão para votar em 18 de junho. Mesmo aqueles que acreditam que uma liderança monolítica tem uma melhor chance de tirar o país do atoleiro econômico, podem não votar; a vitória de Raisi já é pré-determinada.
O bloco eleitoral que vem evitando que o país se torne uma teocracia por completo – uma coalizão de estudantes, jovens, secularistas, e eleitores de classe média, que se uniram brevemente durante as eleições – está, agora, boicotando a eleição. Eles viram suas esperanças frustradas com a presidência reformista de Hassan Rouhani, cujo segundo mandato viu uma depressão econômica que devastou as condições de vida de dezenas de milhões de pessoas que eram os principais apoiadores dos reformistas. O dano foi tão grande que até mesmo se as sanções massivas impostas por Donald Trump fossem anuladas hoje, levaria anos para muitas pessoas reconstruírem suas vidas.
Além disso, duas enormes ondas de protestos realizados pelos desempregados e pelos trabalhadores pobres foram reprimidas de um modo exageradamente violento, alienando ainda mais os eleitores dos reformistas.
Com a perda da fé nos reformistas e a ausência de candidatos viáveis para desafiar o candidato oficial do establishment, foi um momento oportuno para acabar com o elemento republicano do regime. Essa ação teria incitado grandes ondas de protestos apenas três ou quatro anos atrás, mas foi recebida com um bocejo coletivo. De acordo com uma pesquisa feita por Mehdi Nasiri, ex-ativista e publicitário linha-dura, 70% das pessoas pesquisadas disseram que não participariam de qualquer tipo de eleição porque não viam razão para tal.
O CAMINHO PARA FRENTE
Sem quaisquer grandes desenvolvimentos, a tendência está aqui para ficar. De acordo com alguns especialistas, entre eles um sociólogo iraniano proeminente chamado Taghi Azad Armaki da Universidade de Teerã, a maioria dos iranianos quer reforma, e, com isso, mesmo uma administração linha-dura ocupando todos os três braços do governo será forçada a moderar seu radicalismo. “Eu acredito que os Conservadores terão que seguir o caminho reformista”, disse Armaki ao canal IRNA. “No entanto, se a eleição não se tornar polarizada, se torna monolítica e, com isso, transforma a crítica em oposição.” Como a maioria dos iranianos, Armaki não vê a eleição criando perigos imediatos para o regime, mas ele disse que vai tensionar o sistema.
Outro acadêmico da Universidade de Azad, que optou pelo anonimato, previu um futuro tenebroso para o Irã. Ele me disse que antecipou uma militarização mais profunda, aumento da repressão, e mais confrontos com outros países: “Se Raisi ganhar, o que parece bem provável, eu vejo um período curto de contenção e paz relativa seguido por uma séria deterioração das condições tanto domésticas quanto internacionais com consequências para todos”.
Publicado originalmente em 'The Nation' | Tradução de Isabela Palhares