Helena Martins, Le Monde diplomatique Brasil, 9 de junho de 2020
Confira com exclusividade a apresentação o e-book Desinformação: crise política e saídas democráticas para as fake news (Intervozes/Veneta). Organizado pela autora do texto a seguir, a jornalista Helena Martins, professora da UFC, ele investiga o fenômeno que mudou o cenário político mundial nos últimos anos, da eleição de Trump à de Bolsonaro. O livro traça um panorama amplo e aprofundado das fake news e apresenta o fenômeno da desinformação em toda a sua complexidade: discute o conceito e suas origens históricas, a relação sua com a crise política e as estratégias utilizadas em diferentes países para enfrentar o problema, além de apresentar propostas concretas para lidar com a questão no Brasil. O lançamento acontece nesta terça, dia 9 de junho, em uma live às 16 horas com a participação de Helena e do jornalista Leonardo Sakamoto. A transmissão será pela página de Facebook da Veneta e no canal de YouTube do Intervozes
Jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política têm más relações. Assim Hannah Arendt inicia o ensaio Verdade e política1, publicado originalmente em 1967. No texto, discute a tensão entre esses dois elementos, questionando se é da essência da verdade ser impotente e se está na essência do poder o ato de enganar. A filósofa pergunta se é sempre legítimo dizer a verdade, quais são os fundamentos desta e a extensão do impacto de uma profusão de mentiras. Em um texto que parece falar ao tempo presente, adverte: o resultado da substituição coerente e total da verdade pela mentira (desinformação) não é que as mentiras passam a ser aceitas como verdades, nem simplesmente que a verdade passa a ser difamada como mentira, mas a destruição do próprio sentido que usamos para nos orientar no mundo.
No Brasil e em diversas outras nações, temos assistido, muitas vezes incrédulos, a presidentes que se valem da estratégia da mentira para governar e aplicar medidas que vão de encontro aos interesses das maiorias sociais. Eles não pregam no deserto. Suas teses, ainda que contrariem não apenas o bom senso, mas também a comprovação científica e mesmo a experiência da realidade vivida, ganham adesão nas redes e nas ruas. O debate público, nessas circunstâncias, tangencia o limite do inviável. Muros parecem ter sido erguidos dentro dos grupos mais íntimos, como famílias e turmas de colégio ou trabalho. A reescrita da história nos obriga a voltar frequentemente ao passado, tanto para evitar o apagamento ou a distorção dos fatos quanto para disputar o futuro. Afinal, não há como pensá-lo se não soubermos coletivamente de onde partimos.
Essa crise social e comunicacional chega até a maior parte das pessoas a partir do que tem sido chamado de notícias falsas ou, no termo em inglês, fake news. A expressão caiu no uso popular, sobretudo após a corrida presidencial norte-americana de 2016, quando o então candidato Donald Trump a utilizou para referir-se às notícias negativas produzidas sobre ele pela mídia tradicional. Trump, por sua vez, foi acusado de produzir e difundir desinformação, o que mais tarde ficou comprovado na investigação sobre o uso de dados pessoais colhidos no Facebook pela empresa Cambridge Analytica, com o objetivo de definir perfis e direcionar a propaganda do candidato republicano. Notícia falsa, ou fake news, foi considerada a “expressão do ano” em 2017 pela editora britânica Collins. Segundo o jornal The Guardian, as menções ao termo aumentaram 365% naquele ano. Entre os brasileiros, ele se tornou indissociável da reflexão sobre a conjuntura política, e mesmo cotidiana, após a disputa eleitoral de 2018.
O desejo de compreender o que ocorre no ambiente comunicacional contemporâneo – e a dimensão política disso – guia nossos esforços neste livro. Optamos por não usar aqui a expressão fake news, pois entendemos que ela não é capaz de explicar o problema para além de sua aparência. Na tentativa de superar esse limite, pesquisadores, instituições e grupos da sociedade civil, entre os quais o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, têm optado por adotar o conceito de desinformação, com o qual se busca ressaltar a intencionalidade na produção e na propagação de informações falsas, equivocadas ou descontextualizadas para provocar uma crise comunicacional e, assim, obter ganhos econômicos e/ou políticos.
Nessa perspectiva, a questão da intencionalidade é central. Ela traz à tona agentes e interesses que muitas vezes permanecem ocultos. Assim como observou Hannah Arendt, ao falar dos pensadores que se debruçaram sobre o antagonismo entre verdade e política, ainda parece nos escapar a ideia de que “[…] a mentira organizada, tal como a conhecemos hoje, pudesse ser uma arma apropriada contra a verdade”. Ao deixar de perceber essa instrumentalização, podemos perder de vista a dimensão do problema, suas motivações e impactos. Ao tomar esses elementos em conjunto, caminhamos para observar, nos termos da filósofa, que “o que está em jogo aqui é essa própria realidade comum e efetiva, tratando-se verdadeiramente de um problema político de primeira ordem”. Uma questão que, portanto, não estava (como não está) restrita ao plano do discurso, já que “a mentira organizada tende sempre a destruir tudo o que decidiu negar, ainda que só os governos totalitários tenham conscientemente adotado a mentira como primeiro passo para a morte”, nos termos de Arendt. Seu alerta não poderia ser mais preciso.
Nesse sentido, é preciso tornar evidente o fato de que a desinformação está conectada ao objetivo de provocar dissonâncias e desarranjos informacionais e institucionais, que é essencialmente político. Assim, converte-se em arma de determinados grupos, sobretudo extremistas de direita, que, em meio à crise profunda em que nos encontramos, valem-se do estratagema para amedrontar, confundir ou ludibriar a população. O fenômeno da desinformação sofre um esvaziamento analítico quando é resumido à questão da “notícia falsa” e confundido com outras formas de distorção dos fatos, como a sátira e a paródia, ou com conteúdos identificados a determinadas posições ideológicas. A desinformação também não se confunde com a ocorrência de erros na produção e divulgação de informações pela mídia. Quando se igualam processos tão distintos, deixa-se de apontar detalhes e questões que precisamos ter em vista para compreender e atuar em relação a esse cenário.
Importante sublinhar que a desinformação não é um problema totalmente novo. O que temos, agora, são novas formas de operá-la, que estão relacionadas à difusão rápida e generalizada que as mídias digitais possibilitam. A história da mídia brasileira, aliás, demonstra nitidamente que a questão tem raízes mais antigas. Casos de manipulação, inclusive em contextos eleitorais, são bastante conhecidos no país. Em 1982, por exemplo, a Rede Globo divulgou números fraudados durante a apuração das eleições para o governo do estado do Rio de Janeiro, no caso que ficou conhecido como Proconsult2. Nas eleições presidenciais de 1989, a mesma emissora apresentou uma edição tendenciosa de seu debate entre os candidatos Fernando Collor de Melo e Luiz Inácio Lula da Silva, que foi apontada como crucial na definição do resultado do pleito. Mais recentemente, em 2010, deu ampla cobertura a uma suposta agressão contra o então candidato tucano à presidência da República, José Serra – com direito a contratação de perito para análise de imagens –, endossando que ele fora atingido com um “objeto contundente”, quando, na verdade, tratava-se de uma “bolinha de papel”, como o episódio acabou ficando conhecido3.
A relação entre verdade, mentira, política e meios de comunicação, especificamente, não escapou à análise de Arendt, que acompanhava, na segunda metade do século XX, a transformação na esfera pública que derivava do crescimento dos meios de comunicação de massa, com a progressiva centralização, em torno deles, da capacidade de formar opinião. Ao comentar a fabricação de imagens e a possibilidade de negar ou negligenciar fatos conhecidos que atentassem contra elas, avaliou que “[…] à diferença do que se passava com um retrato à moda antiga, não se espera que uma imagem torne mais agradável a realidade, mas que dela ofereça um substituto completo. E esse substituto, devido às técnicas modernas e aos mass-media é, certamente, muito mais acessível do que alguma vez o foi o original”.
O trecho sugere que a mentira organizada passa a se beneficiar dos meios de comunicação, dada a capacidade destes de difundir imagens para o conjunto da população. É por isso que o poder de propagar ideias ou, especificamente, promover o que chamamos de desinformação deve ser relacionado à propriedade dos meios de comunicação e ao uso de sua capacidade de projetar sentidos para a sociedade, especialmente em contextos como o do Brasil, onde a concentração é alarmante. Além disso, as mudanças nas comunicações nas últimas décadas, sobretudo com a disseminação das novas tecnologias e da internet, trazem à tona outras problemáticas, como a disputa entre agentes novos e antigos. Diante da dispersão da audiência para outros canais e plataformas, os mesmos meios que, ao longo da história, silenciaram e enquadraram fatos e sujeitos para atender a seus interesses tentam hoje emplacar a ideia de que são porta-vozes da verdade, na tentativa de retomar o controle da audiência e, assim, manter sua hegemonia.
A relação entre desinformação e internet precisa ser olhada também de outro ângulo. Em primeiro lugar, devemos considerar que meios e tecnologias de comunicação e informação não são apenas ferramentas ou canais por meio dos quais determinadas mensagens passam de um emissor para um receptor. Desde o advento da TV e também com a internet, eles se tornaram o lócus principal do debate público, já que conformam ambientes nos quais sujeitos cada vez mais diversos opinam e discursam. Dispositivos como os smartphones estão presentes o tempo todo em nosso cotidiano, garantindo acesso a informações que nos ajudam a formar opiniões, bem como mecanismos para projetá-las de forma rápida e fácil. Os meios de comunicação, ademais, mudam o que entendemos por tempo e espaço, dois elementos fundamentais em nossa percepção de nós mesmos e do mundo, do público e do privado. Transformam nosso sistema de referências e nossos comportamentos individuais e coletivos. Produzem subjetividades e cultura.
Devemos considerar ainda que os diferentes meios possuem lógicas específicas de funcionamento, financiamento e produção de audiência, e que estas merecem ser observadas, se quisermos compreender fenômenos como a desinformação. A televisão, por exemplo, é indissociável da ideia de massa, ao passo que as mídias digitais favorecem a individualização, a singularização. Se a TV buscava atingir amplos grupos de cidadãos, por ela convertidos em consumidores, as novas pretendem singularizá-los. Não obstante, os diferentes meios compartilham, em geral, elementos comuns: são hegemonicamente organizados por instituições empresariais que têm interesses próprios, cumprem funções de legitimação do sistema e promoção de mercadorias, estão inseridos em complexas relações de poder, que impactam, inclusive, o desenvolvimento e a adoção de tecnologias. Todos esses elementos contribuem para configurar a desinformação que vemos hoje.
Para os fins desta introdução, cabe ressaltar que, conforme a rede mundial de computadores se popularizava, muitos imaginaram que ela vinha para superar essa lógica de controle da informação – o poder de alguns poucos grupos econômicos de impor narrativas e, em alguns casos, desinformar. A ampliação de fontes de informação garantiria o exercício da liberdade de expressão a outros sujeitos, no novo ambiente de debate público. Pesquisadores trataram do tema com entusiasmo, refletindo sobre exemplos reais – como a articulação de movimentos sociais a partir da rede e o desenvolvimento de espaços de deliberação política online. Manuel Castells4, uma referência nessa linha de pensamento, defendeu que as tecnologias baseadas na microeletrônica, no desenvolvimento dos computadores e nas telecomunicações, no contexto da crise do capitalismo e da emergência de movimentos sociais e culturais, estavam levando à constituição de uma nova estrutura social – a “sociedade em rede” – e à emergência de uma cultura marcada pela virtualidade real. Para ele, tratava-se de um processo tão profundo que ocasionaria a passagem da Era Moderna para a Era da Informação. Pierre Lévy5, por sua vez, viu no novo cenário a possibilidade de uma construção coletiva do conhecimento, a partir da reunião de saberes particulares no que chamou de ciberespaço.
Na última década, ao contrário da conformação de um mundo mais horizontal, participativo e repleto de informações e conhecimentos compartilhados, vimos a lógica comercial avançar sobre a rede. Foram erguidos verdadeiros jardins murados, baseados em regras de propriedade intelectual ou no condicionamento do acesso ao pagamento para a obtenção de serviços. Organizaram-se monopólios digitais, de acordo com o conceito de Valente6, reunindo características como: 1. forte domínio de um nicho de mercado; 2. grande número de usuários, que pagam ou não pelos serviços; 3. operação em escala global; 4. espraiamento para outros segmentos, além do original; 5. atividades intensivas de uso de dados pessoais coletados; 6. controle de um ecossistema de agentes que desenvolvem serviços e bens mediados por suas plataformas e atividades; e 7. estratégias de aquisição ou controle acionário de possíveis concorrentes.
Diante desse quadro, como sintetizou Rafael Evangelista, duas palavras permeiam hoje o debate sobre o presente e o futuro da democracia: desordem e desinformação. Não se trata de um contexto qualquer, mas de um momento de notório domínio de grandes plataformas, como Google e Facebook, que concentram audiência, financiamento publicitário, informações e poder. Esses conglomerados “tornaram-se gigantescos grupos de mídia, de informação e comunicação, responsáveis maiores pelo acesso filtrado do globo ao sistema de notícias e de conhecimento, ao contato que temos com a realidade do mundo para além de nossas experiências pessoais”, enfatiza o pesquisador.
O serviço central oferecido pelas plataformas digitais é colocar seus usuários em contato com outros “lados”, como anunciantes e possíveis compradores. Nesse modelo, a reunião de muitos usuários é fundamental, pois é o volume que confere importância à plataforma e atrai para ela diferentes agentes. É por isso que muitos dos serviços que elas oferecem parecem gratuitos, incluindo as redes sociais. Não pagamos para estar nelas, o que facilita a reunião de pessoas e empresas. Mas isso não quer dizer que não haja monetização. A fim de promover uma troca efetiva entre esses lados, uma das características das plataformas digitais é o uso de dados pessoais. A partir desse uso é que recebemos sugestões de livros, passagens aéreas e outros produtos e serviços, semelhantes aos que já adquirimos ou que pretendemos adquirir. As informações dos usuários são comercializadas e garantem lucro às corporações.
O que tem isso a ver com desinformação? Tanto a demanda pela produção constante quanto o tratamento de dados têm se pautado por uma ética de mercado. Interessa às plataformas e às demais empresas envolvidas nos diversos negócios associados a tais práticas que os usuários se mantenham permanentemente conectados, clicando para produzir informações sobre eles mesmos e os outros. Informações que, posteriormente, serão processadas por grupos que as usarão para, entre outras possibilidades, oferecer anúncios ou conteúdos políticos. Como explica Morozov7, o “modelo de capitalismo ‘dadocêntrico’ adotado pelo Vale do Silício busca converter todos os aspectos da existência cotidiana em ativo rentável”:
“O modelo de negócios da Big Tech funciona de tal maneira que deixa de ser relevante se as mensagens disseminadas são verdadeiras ou falsas. Tudo o que importa é se elas viralizam (ou seja, se geram números recordes de cliques e curtidas), uma vez que é pela análise de nossos cliques e curtidas, depurados em retratos sintéticos de nossa personalidade, que essas empresas produzem seus enormes lucros. Verdade é o que gera mais visualizações. Sob a ótica das plataformas digitais, as fake news são apenas as notícias mais lucrativas.”
O pesquisador acrescenta que fatores tecnológicos das plataformas digitais permitem a rápida proliferação de conteúdos falsos, transformando aquilo que é mais acessado em verdade. Essa leitura é confirmada por estudo do Instituto de Internet da Universidade de Oxford 8 que analisou setenta postagens noticiosas no Facebook, no contexto das eleições para o Parlamento Europeu em 2019, e concluiu que conteúdos desinformativos, falsos ou descontextualizados são compartilhados, curtidos e comentados até quatro vezes mais do que matérias informativas.
Em outras palavras, a desinformação é lucrativa para o modelo de negócios das plataformas digitais. Evidenciando essa situação, um estudo do Índice Global de Desinformação (GDI, na sigla em inglês), entidade que acompanha o alcance e os efeitos da desinformação no mundo, apontou que a receita gerada por publicidade programática – prática que consiste em usar softwares para comprar e vender espaço publicitário na web – de 20 mil sites classificados como “desinformadores” pelo GDI alcançou US$ 235 milhões. Para chegar à estimativa, considerou-se uma média de remuneração de US$ 0,70 para cada mil cliques. O maior serviço de mídia programática do mundo é do Google. A empresa está em 70% dos sites de desinformação, acumulando US$ 86,7 milhões. AppNexus e Criteo têm bem menos que 10% do mercado, mas alcançaram receitas de US$ 59,3 milhões e US$ 53,2 milhões, respectivamente9, o que mostra que recebem proporcionalmente mais investimentos por parte de quem busca desinformar.
As plataformas digitais se inserem em um contexto particular da sociedade contemporânea, em que as novas tecnologias desempenham um papel cada vez mais importante na própria dinâmica do sistema capitalista ao permitir, por exemplo, a produção de dados – que, como se sabe, vêm sendo considerados o “novo petróleo” da economia. Dados da Forbes de maio de 2019 mostram que as cinco marcas mais valiosas do mundo são todas corporações do setor de tecnologia. Apple (avaliada em US$ 206 bilhões), Google (US$ 167,7 bilhões), Microsoft (US$ 123,5 bilhões) e Amazon (US$ 97 bilhões) ocupam as quatro primeiras posições. Todas ampliaram seu valor em mais de 20% em um ano. A quinta é o Facebook, que passou por retração entre 2018 e 2019. A empresa foi a única entre as dez maiores a sofrer desvalorização, alcançando US$ 88,9 bilhões, 6% menos que em 2018. Denúncias de atuação política, uso ilegal de dados pessoais e proliferação de desinformação foram alguns fatores determinantes nessa queda. Há dez anos, essa lista era liderada por petrolíferas e bancos. O setor de informação, portanto, está hoje no centro da disputa pelos rumos da economia mundial.
Diante desse quadro, a problemática levantada por Arendt sobre a influência dos meios de comunicação merece ser atualizada, se quisermos entender as disputas em torno da produção de sentidos no contexto das tecnologias digitais. Além da estrutura das plataformas e de seus modelos de negócio, para tentar entender as reações à desinformação por parte de pessoas que recebem conteúdos via rede, também é preciso destacar a passagem de uma lógica de recepção maciça para uma mais segmentada, citada anteriormente a partir da perspectiva das instituições midiáticas. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han10 reflete sobre o tema e afirma que, no lugar da massa – formada por indivíduos diluídos em um grupo social comum e associada a instituições também maciças, como sindicatos e partidos políticos –, temos hoje um “enxame digital” de indivíduos singularizados e que, convidados ao constante exercício narcisista da individualidade nas redes – em um contexto marcado pelo ultraliberalismo e pelo ataque a qualquer ideia de coletividade –, não desenvolvem um sentido de “nós”. Esse enxame fica mais suscetível a campanhas difamatórias ou de desinformação, em geral na internet, e sua descarga emocional é incapaz de produzir resistência efetiva. “A solidariedade desaparece. A privatização avança até a alma”, ele escreve.
Segundo o autor, o cenário de desmediatização da comunicação, que pode ser explicado como superação da necessidade de intermediários para o acesso a informações, como grupos de mídia tradicionais, também se estende à política, encerrando a era da representação, o que, de acordo com sua explicação, atinge a democracia representativa em cheio. Ocorre que a ausência de mediação a que ele se refere é apenas aparente. Há toda uma nova estrutura de mediação social controlada por poucos grupos privados de origem estadunidense e que é ainda mais opaca que a anterior. Os algoritmos, elementos centrais dessa nova estrutura, são desenhados para reforçar certas tendências comportamentais – e políticas. Eles definem o que vemos ou não, quais conteúdos devem ser recomendados à audiência, que, por sua vez, está alienada dessas decisões. A liberdade na rede, que a ideologia do Vale do Silício tanto alardeou, consiste em uma tese que serve para questionar as instituições tradicionais, inclusive da comunicação e da política, ao mesmo tempo que omite as determinações e transformações nesse ambiente e na sociedade em geral.
Voltando a Hannah Arendt, a filósofa entendia que, em um contexto de massificação da comunicação, a liberdade de opinião não bastava para restaurar a possibilidade de verdade, sendo ela mesma “[…] uma farsa se a informação sobre os fatos não estiver garantida e se não forem os próprios fatos o objeto do debate”. Mais uma vez, a questão é pertinente ao nosso tempo, quando são comuns os ataques aos direitos à informação, à liberdade de expressão e à comunicação. O fato de haver um ambiente aberto onde podemos postar fotos, vídeos e textos na hora que desejarmos não significa que estejamos vivendo uma liberdade de expressão plena, e nem muito menos que exista comunicação efetiva entre nós. O excesso vira falta – de diálogo, compreensão, tempo para refletir.
Isso para não falar na supressão direta da liberdade, o que vemos em ações de censura por parte de Estados e plataformas digitais, que também se prestam a práticas de vigilância. Afinal, tudo o que fazemos nesses ambientes tem sido registrado e pode ser utilizado por corporações e governos.
Estão postas aí muitas das problemáticas enfrentadas por diversos países hoje, e que pretendemos abordar no livro Desinformação: crise política e saídas democráticas para as fake news. No momento em que o finalizamos, o mundo enfrenta a pandemia do coronavírus, que traz à tona questionamentos sobre a lógica que tem guiado a globalização neoliberal, bem como problemas relacionados às comunicações e que constam nos textos da obra, entre eles: a desigualdade no acesso à internet, o funcionamento opaco das plataformas digitais, a desinformação e a proliferação de tecnologias de vigilância. Na China, país que já utiliza diversas tecnologias para controlar a população, scanners termais foram instalados nas estações de trens das principais cidades com o intuito de identificar aqueles que os atravessam e apresentam febre. Não há possibilidade de se negar a ter seu corpo invadido. Um software é utilizado para enviar as informações sobre a saúde da população para o governo. Lá também proliferam práticas de reconhecimento facial por câmeras espalhadas nas cidades, o que tem até motivado concorrência entre empresas que disputam qual consegue ter maior capacidade de reconhecimento em casos de pessoas que usam máscaras. O uso da máscara, aliás, é igualmente monitorado por drones. Drones que também são usados na capital da Espanha, Madri, para emitir mensagens para os cidadãos apelando para que fiquem em casa. Em vários países, inclusive no Brasil, governos fazem contratos com operadoras de telefonia e outras empresas para que estas informem sobre a circulação da população.
A imposição do distanciamento social tornou as atividades ainda mais mediadas pela internet, que segue sem estar acessível a todas as pessoas. Quanto à circulação das informações, os problemas também se multiplicam. Nas redes sociais, regidas por uma arquitetura que facilita a propagação da desinformação, seja porque conteúdos desse tipo geram mais cliques ou porque são pagos por grupos que atuam politicamente para desinformar a sociedade – vale lembrar que o próprio presidente Jair Bolsonaro contribuiu para isso ao afirmar que o surto era “muito mais fantasia” –, proliferam notícias falsas. Exemplo disso, no Irã, um dos países mais atingidos pelo vírus, dezenas de pessoas morreram intoxicadas após beber álcool adulterado, acreditando num boato que dizia que isso poderia eliminar a doença. No Brasil, no fim de fevereiro, quando a pandemia apenas anunciava seu impacto no país, o Ministério da Saúde divulgou que, entre 6.500 mensagens que a pasta recebeu e analisou entre 22 de janeiro e 27 de fevereiro, 90% eram relacionadas ao novo vírus. Do total ligado ao coronavírus, 85% eram falsas. Na primeira semana de abril, o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta disse que as “fake news subiram mais do que número de casos” da doença. Inclusive uma conta falsa em seu nome foi denunciada por ele.
Para contornar a situação, o Ministério adotou um selo para identificar esse tipo de conteúdo e também criou um canal telefônico para dialogar com a população. Agências de checagem, por sua vez, uniram-se para combater a desinformação, a exemplo do projeto Coronavirus Facts Alliance, rede de colaboração formada por mais de uma centena de organizações de quarenta países. Outras reações a esse cenário são controversas. Quando a doença se instalou e o presidente brasileiro, contrariando recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicou mensagens no Twitter estimulando que as pessoas não ficassem isoladas, a rede retirou o conteúdo do ar, antes mesmo de uma determinação judicial, alegando contrariar suas regras. No mesmo sentido, Facebook, Instagram e YouTube apagaram um vídeo publicado pelo pastor Silas Malafaia no qual ele afirma que a quarentena para combater o coronavírus no país “é uma farsa”. A postura pode parecer importante à primeira vista, mas esse tipo de moderação também pode ser entendida como uma censura privada, pois movida por critérios que são apenas das plataformas e que não foram definidos e acompanhados pela sociedade e suas instituições. Essas mesmas plataformas, por outro lado, não proibiram a monetização de conteúdos sobre a pandemia, afinal, mesmo em tempos tão difíceis, buscam lucrar.
Toda essa situação mostra a urgência do debate aqui proposto, o qual não se resume ao problema da instrumentalização de inverdades, que é o que muitas vezes é ressaltado quando falamos nas chamadas notícias falsas. A questão mais complexa, e que deve ser enfrentada para se entender o tempo presente, é a relação entre o ambiente comunicacional e a organização de sociedades como a nossa.
Ainda que seja muito difícil tratar de um tema no momento exato em que desponta como um problema, sem o distanciamento da história e sem as possibilidades que ele oferece de produzir e obter dados e análises retrospectivas, buscamos nesse livro aprofundar essa discussão e dar passos a fim de propor saídas para esse cenário de desinformação. Nesse sentido, três capítulos abordam perspectivas diferentes, ainda que relacionadas, do problema. O capítulo inicial, de autoria de Bruno Marinoni e Vanessa Galassi, apresenta, em primeiro lugar, visões sobre o termo notícias falsas ou fake news, propondo uma elaboração do conceito de desinformação. Em seguida, os autores tratam das particularidades da desinformação no contexto atual, tendo em vista sua operação no ambiente digital e sua relação com o momento presente do regime capitalista. Por fim, analisam como a desinformação representa, em si, um ataque à liberdade de expressão e aos direitos à informação e à comunicação.
O segundo capítulo, escrito por Eduardo Amorim e Ramênia Vieira, aborda a desinformação como estratégia política, a partir da análise de casos como as eleições presidenciais norte-americanas de 2016, o referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, no mesmo ano, e a disputa presidencial no Brasil em 2018, além de outras expressões da difusão dessa prática, como visto no Uruguai em 2019. Ao detalhar como a desinformação ocorreu em cada uma dessas situações, os autores apontam as características do ambiente digital que se relacionam com o fenômeno; também pontuam, na história do Brasil, exemplos que mostram como a produção da desinformação, longe de ser novidade, reflete a batalha pelo controle da informação, que ganha contornos particulares em diferentes contextos.
No terceiro capítulo, Ana Carolina Westrup enfrenta o desafio de propor medidas concretas de combate à desinformação. Para tanto, além de retomar as características centrais do fenômeno em sua forma contemporânea, a autora problematiza saídas – insuficientes ou mesmo equivocadas – que têm sido apresentadas pelo Congresso Nacional, Poder Judiciário, plataformas e outros agentes. Então, apresenta soluções que passam pela adoção de medidas antidesinformação por Estados, empresas, meios de comunicação e organizações da sociedade civil, e que dizem respeito ao combate contra a concentração da mídia, à proteção de dados pessoais, à melhoria no fluxo informacional, à limitação da modulação algorítmica, à contenção do alcance e da velocidade de propagação da desinformação e à promoção da educação para a mídia. Por fim, lista proposições para diferentes agentes.
O livro dá continuidade a uma série de iniciativas do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e de outros grupos da sociedade civil, que têm alertado sobre a complexidade do fenômeno da desinformação e a extensão de seus impactos. O coletivo participou de dezenas de audiências públicas e outros fóruns convocados pelo Congresso Nacional, onde, nos últimos anos, proliferaram projetos de lei sobre o tema. Incidiu nas discussões e medidas propostas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no processo das eleições de 2018; participou de consulta pública organizada pela Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/RELE); contribuiu com oficinas e seminários do Comitê Gestor da Internet no Brasil sobre o tema e atuou no Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), participando da elaboração da Recomendação n. 4, na qual foram apresentadas medidas de combate às chamadas notícias falsas e para a garantia do direito à liberdade de expressão.
Além disso, a fim de contribuir com o debate público sobre o tema, encampamos diversas iniciativas de produção de informação sobre ele, entre as quais merecem destaque a parceria com o portal Congresso em Foco, que resultou na coluna Eleições & Desinformação, por meio da qual foram divulgadas diversas análises sobre o problema ao longo do pleito de 2018, e a elaboração da cartilha Desinformação: ameaça ao direito à comunicação muito além das fake news, em 2019, em que procuramos destacar alguns dos aspectos mais relevantes para a compreensão do fenômeno e para buscar soluções para confrontá-lo.
Escrito por pesquisadores/as e integrantes do coletivo, o livro reflete muitos dos debates que temos promovido, ainda que os textos também carreguem as marcas da abordagem de cada um, expressas em vieses e na escolha da literatura. Nosso agradecimento aos/às demais associados/as do Intervozes que participaram de sua elaboração, até mesmo contribuindo diretamente nos textos: Bia Barbosa, Flávia Lefèvre, Jonas Valente, Marina Pita e Olívia Bandeira. Esperamos que essa contribuição seja útil para o debate e formulação de propostas antidesinformação concretas por parte dos diversos agentes envolvidos e afetados por ela. Também desejamos que as lacunas deste trabalho possam ser superadas coletivamente nos muitos encontros e diálogos que esperamos que este livro fomente. Boa leitura!
Helena Martins é jornalista, doutora em Comunicação pela UnB, professora da Universidade Federal do Ceará e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.
A partir de junho, serão realizados debates ao vivo sobre cada um dos tópicos abordados no livro com seus respectivos autores e convidados. Veja o calendário:
16 de junho, às 16h: Desinformação, capitalismo e pandemia: o caso do PL Fake News
Sergio Amadeu: sociólogo, professor da UFABC e ativista da liberdade na rede
Vanessa Galassi: jornalista e integrante do Intervozes
Rodrigo Murtinho: jornalista, pesquisador e diretor do ICICT/Fiocruz
23 de junho, às 16h: Desinformação como estratégia política
Eduardo Amorim: jornalista e integrante do Intervozes
Ramênia Vieira: jornalista e integrante do Intervozes
João Guilherme dos Santos: pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD)
Mauro Porto: professor da Tulane University (EUA)
30 de junho, às 16h: Saídas democráticas para a desinformação
Ana Carolina Westrup: publicitária e professora da UFS
Bia Barbosa: jornalista e integrante da Coalizão Direitos na Rede
Gabriela Almeida (a confirmar)
7 de julho, às 16h: Saídas para a desinformação: educação midiática para além das salas de aula
A definir
1 ARENDT, Hannah. “Verdade e política”. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2016.
2 A operação objetivava favorecer Moreira Franco, candidato alinhado ao governo militar. A empresa Proconsult fez a totalização dos votos, que eram dados em cédulas de papel. À Globo coube a divulgação do resultado manipulado. A Rádio Jornal do Brasil fez uma contagem paralela e a divulgou, o que levou à interrupção do esquema. Por fim, Leonel Brizola foi eleito com 34,2% dos votos válidos. Moreira Franco ficou com 30,6%.
3 O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva denunciou em entrevista que “venderam o dia inteiro que esse homem tinha sido agredido” e qualificou de “mentira descarada” a reação do candidato José Serra. A situação foi esclarecida após a Folha de S.Paulo publicar um vídeo que mostrava que Serra fora atingido em dois momentos: por uma bolinha e, depois, por um rolo de adesivos. A Globo solicitou o vídeo e contratou perito para verificar sua autenticidade. Depois, teve que voltar atrás no discurso da agressão contra o candidato e mostrar o que realmente havia ocorrido. A própria Globo detalha o caso em: https://memoriaglobo.globo.com/acusacoes-falsas/caso-da-bolinha-de-papel/.
4 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Vol. 1. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
5 LEVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2009.
6 VALENTE, JCL. Tecnologia, informação e poder: das plataformas online aos monopólios digitais. (Tese de Doutorado em Sociologia) Universidade de Brasília, Brasília, 2019.
7 MOROZOV, E. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu, 2018, p.11.
8 MARCHAL, Nahema et al. Junk News During the EU Parliamentary Elections: Lessons from a Seven-Language Study of Twitter and Facebook. Oxford University, 2019. Disponível em: https://comprop.oii.ox.ac.uk/wp-content/uploads/sites/93/2019/05/EU-Data-Memo.pdf.
9 How is Disinformation Gaming Ad Tech? GDI, 2019. Disponível em: https://disinformationindex.org/wp-content/uploads/2019/09/GDI_Ad-tech_Report_Screen_AW16.pdf.
10 HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Trad. Lucas Machado. Petrópolis, Vozes, 2018.