As eleições de 2024 terminaram com um gosto amargo para a esquerda. Embora a imprensa burguesa faça intensa campanha sobre o balanço, afirmando que seria o “centro democrático” o maior vencedor do pleito, a política e as alianças do mal chamado “centrão” expressam na realidade um fortalecimento da direita associada centralmente ao PL e demais partidos hegemonizados pelo bolsonarismo. As poucas vitórias relevantes da esquerda se deram por margem estreita, e aparecem como exceção no cenário nacional.
Diante desse resultado, abriu-se na esquerda um momento de discussão e reflexão sobre os motivos da derrota e quais as tarefas que temos diante de nós. Consideramos esse um debate saudável e que deve ser valorizado. Como não poderia deixar de ser, no entanto, sempre há nesse tipo de discussão aqueles que veem na derrota a possibilidade de “desmascarar” os líderes e direções “traidores”, como se a derrota e a frustração gestassem grandes vitórias futuras para nosso campo. Não é este o diálogo que valorizamos. Escrevemos esse editorial como contribuição ao debate entre aqueles e aquelas comprometidos com as batalhas que demos, e com a elaboração coletiva sobre as lições e tarefas que temos diante de nós.
1. A convergência entredireita e extrema-direita foi quem venceu em 2024
Apesar dos esforços da imprensa em suas manchetes e comentaristas, qualquer análise rápida sobre os resultados eleitorais deste ano dá dimensão da dinâmica regressiva que enfrentamos. PSD, União Brasil, MDB e PP – que nunca foram outra coisa senão partidos fisiológicos, mas sempre de direita – elegeram respectivamente 891, 591, 864 e 752 prefeituras, totalizando quase 4 mil governos municipais sob seu comando. O PL, partido de Bolsonaro, e o Republicanos, partido de Tarcísio de Freitas, estão entre os que tiveram maior crescimento – 47% e 106%, respectivamente, totalizando juntos 957 prefeituras. Nos pleitos legislativos, o cenário se repete: ampla maioria do chamado centrão; e as legendas bolsonaristas entre as que mais cresceram, com o PL aumentando em 42% suas bancadas municipais e o Republicanos em 78%.
Entre as forças de esquerda e, mais amplamente, do campo progressista, o resultado é quase o inverso. Embora PT e PSB tenham ampliado suas prefeituras e bancadas municipais, PSOL, PDT, PCdoB, REDE e PV tiveram, no geral, diminuição relevante em seus resultados eleitorais.
Um fator relevante nesses resultados, sem dúvida, foi o peso da máquina. Este ganhou um reforço ainda maior com as emendas pix – forma de repasse de recursos federais implementada por Arthur Lira, diretamente para as prefeituras e sem nenhuma transparência. Os partidos que mais repassaram esses valores no último ano são os que tem as maiores bancadas no Congresso e que conquistaram os maiores números de prefeituras no primeiro turno. Entre os 112 municípios que mais receberam emendas pix, onde os mandatários tentaram a reeleição, foram vencedores em 105 – impressionantes 93,7%. O índice de reeleição foi o maior da história, um evidente desdobramento desta nova e poderosa ferramenta.
O que chama mais atenção, no entanto, são as alianças entre o “centrão” e os partidos do campo mais diretamente bolsonarista, isto é, uma dinâmica de convergência entre estes setores. Contabilizadas as vice-candidaturas eleitas, o PL é o partido com maior participação em prefeituras das capitais: 4 prefeitos e 5 vices. PSD e MDB, que fizeram 5 capitais cada, elegeram 2 e 1 vice, respectivamente. Dos 5 vice-prefeitos do PL, três são em aliança com o MDB (São Paulo, Porto Alegre e Boa Vista) e dois com o PSD (Florianópolis e Curitiba). O cenário se completa com as vitórias importantes do PL em Aracaju e Maceió, capitais do Nordeste onde até agora não tinha penetrado, e Cuiabá e Rio Branco. A vitória apertada do PT em Fortaleza, por cerca de 10 mil votos, e a vitória expressiva do PSB em Recife, apenas atenuam as 16 capitais governadas pelo centrão e as 5 pelo bolsonarismo.
Desse ponto de vista, o que podemos observar é, sim, uma vitória da direita tradicional nessas eleições de 2024. Mas essa vitória se deu, em grande medida, por suas alianças inequívocas com o bolsonarismo, setor com maior crescimento no pleito. Nesse sentido, o resultado de São Paulo é exemplar. Nunes do MDB foi o vencedor, mas só pôde vencer com o apoio de Tarcísio de Freitas (Republicanos), quem assumiu a direção da campanha desde as semanas iniciais do primeiro turno e é, politicamente, o maior vencedor de fato da disputa. Não à toa já se articula a possibilidade de sua candidatura presidencial em 2026 em uma grande frente única da direita, despida da instabilidade de Bolsonaro, contra a esquerda. Não
à toa, dois dias depois do segundo turno, Tarcísio consegue realizar o leilão que privatiza as escolas públicas no estado de São Paulo. Embora Bolsonaro enquanto figura não tenha exatamente brilhado nas eleições, seu campo e seu imaginário políticos saem fortalecidos e com novos horizontes para retornar ao poder.
2. A disputa em São Paulo
No centro das polêmicas sobre balanço e tarefas da esquerda estão as eleições em São Paulo, maior cidade da América Latina e de todo o hemisfério sul, em que Guilherme Boulos do PSOL encabeçava a chapa para a prefeitura. Há quem diga que a linha X teria mudado tudo, outros que a linha Y, e há quem diga que nada teria feito diferença. Pensamos que o essencial não é discutir se ou como seria possível inverter o resultado, em que Ricardo Nunes teve um milhão de votos a mais que Boulos. De fato, não nos parece que a tática mais para um lado ou para o outro teria possibilitado uma vitória eleitoral. O mais importante, acreditamos, é tirar as devidas lições sobre o processo para que possamos corrigir as rotas para um longo embate contra a extrema-direita.
Há, nesse sentido, um erro de partida. Acreditou-se que, por Lula ter vencido as eleições em São Paulo em 2022 e Boulos ter ido ao segundo turno em 2020, entrávamos na disputa eleitoral com razoáveis chances de vitória. A tática desenvolvida partiu dessa premissa, equivocada, e seu resultado não poderia ser outro. Considerando que o voto de esquerda já estaria ganho, a campanha dedicou-se, desde o seu início, a disputar o eleitorado de “centro”, avesso ao bolsonarismo e que votou em Lula em 2022. Foram diversos gestos nesse sentido, que não vale a pena serem recuperados. A tática foi tentar, de um lado, apresentar um Boulos menos “radicalizado” ou “mais preparado” para esse eleitorado e, de outro, colar a imagem de Nunes à de Bolsonaro.
Duas dificuldades se impuseram sobre essa tática. A primeira, o fato de que foi Tarcísio, o bolsonarista com talheres, e não Bolsonaro, o principal fiador de Nunes. A segunda, mais relevante, foi o fenômeno Pablo Marçal – que expressou e mobilizou um bolsonarismo mais ideológico e radicalizado, ainda que com tintas próprias –, que dificultou mais ainda a identificação de Nunes como candidato deste setor, mesmo com o apoio oficial de Bolsonaro e do PL. Por fim, devido às peculiaridades da condução da campanha em uma frente com o PT, um controle excessivo sobre as iniciativas de mobilização dificultou que houvesse espaço para o envolvimento do ativismo mais amplo.
Com as dificuldades de fundo devidas ao erro inicial de caracterização, e com as dificuldades imediatas impostas por um cenário imprevisto, enfrentamos um primeiro turno dramático. Atacado pela direita em todas as frentes, incluindo mentiras grotescas, Boulos foi ao segundo turno contra Nunes por uma pequena vantagem em relação a Marçal.
No segundo turno, o apagão do primeiro final de semana praticamente não reduziu a vantagem de Nunes. Ao contrário, Nunes e Tarcísio responderam com exigências ao governo federal pela ruptura do contrato com a ENEL. Lula se distanciou do tema e, assim, limitou a capacidade de resposta da esquerda. A semana seguinte transcorreu sem maiores mudanças, e chegamos à terceira e última semana de campanha sem grandes motivos para otimismo.
Há que se dizer, no entanto, que foi nesse momento de maior dificuldade que Boulos provou e reafirmou seu papel de liderança na esquerda. Quando todas as dificuldades se impuseram, manteve-se firme e recalculou a rota. Fez uma última semana impecável, com debates na rua com a população, dormindo a cada dia em uma região da cidade e tendo uma postura firme sobre temas importantes para nosso campo. Deu o exemplo lutando até o final e nas piores circunstâncias. O ativismo da cidade se mobilizou, o clima na campanha mudou e conseguimos, apesar da ampla vantagem de Nunes, terminar a campanha de cabeça erguida para o futuro. Diante dos desafios que temos pela frente, isso está longe de ser um detalhe.
3. Primeiras conclusões
A pergunta central a ser respondida pela esquerda é por que, mesmo com a eleição de Lula em 2022 e uma melhora objetiva nas condições de vida da classe trabalhadora e dos mais pobres, as ideias reacionárias parecem seguir ganhando força. A hipótese que compartilhamos é que esses fatores, até aqui, se expressaram pouco ou quase nada na consciência da massa – que segue hegemonizada pelo imaginário da extrema-direita.
Isso não se deve apenas às dificuldades que a relação de forças de 2022 já revelava, com um Congresso Nacional muito à direita. Se deve ao fato de que esses avanços apenas se consolidam se há também uma disputa ideológica, sobre a consciência da massa. Nesse terreno, é preciso reconhecer que o governo Lula, ferramenta mais poderosa à disposição nesse sentido, pouco conseguiu avançar. Além de refém do centrão no Congresso, o governo é refém de sua própria estratégia de não-enfrentamento, dificultando mesmo sua sobrevivência diante da conjuntura.
Assim, a vitória de Lula em 2022 aparece mais como uma exceção que como uma inversão na dinâmica política do país. Desse ponto de vista, a unidade em torno de Lula segue sendo necessária para impor freios ao avanço do neofascismo. Precisaremos seguir defendendo o governo contra a direita e extrema-direita – mais ainda agora, diante do resultado eleitoral que as fortaleceu. Mas é preciso também uma disputa mais intensa à esquerda de Lula, para que tenhamos condições de incidir sobre o governo e a relação de forças. Sem uma força pressionando em sentido contrário, a única deriva possível do governo será cada vez mais ao centro.
Desse ponto de vista, o PSOL tem o desafio de encontrar melhor seu lugar na conjuntura brasileira. Com um perfil mais nítido e uma batalha mais intensa pelos temas que nos são caros, no enfrentamento à agenda neoliberal e à emergência climática, dando maior centralidade à luta ideológica e à acumulação de forças para nosso campo, e com a altivez e liberdade de iniciativa necessários para encantar uma perspectiva de futuro. Nossos resultados eleitorais só poderão melhorar como consequência disso, e não o contrário.
4. A extrema-direita e uma hipótese para combatê-la
Uma tese recorrente na esquerda é a ideia de que a extrema-direita cresceria porque dialogaria com um sentimento, supostamente massificado, de revolta “contra o sistema”. A fraseologia “radical” da extrema-direita, segundo os defensores dessa visão, capturaria de maneira regressiva um sentimento objetivamente progressivo porque a esquerda teria deixado de fazê-lo. É a tese do “antissistema”, que remonta à chamada teoria da ofensiva no começo do século XX, mas que bebe também de elaborações políticas mais recentes e alheias ao campo do marxismo.
Discordamos dessa leitura. O sentimento mobilizado pela extrema-direita não tem nada de “antissistema”, pelo contrário. O que se mobiliza é o ressentimento dos mais desamparados em relação àqueles e àquelas que preservam algum nível de proteção social. A ideia de que direitos seriam privilégios, obstáculos no caminho da meritocracia, e que o justo seria a guerra de todos contra todos pela sobrevivência social. O discurso “disruptivo” da extrema-direita estimula e constrói, portanto, um conteúdo político: não existe de maneira abstrata na luta de classes.
Ainda assim, é preciso dedicar nossa reflexão também à compreensão dos motivos do sucesso da extrema-direita em nosso tempo. Que há uma ofensiva generalizada desse projeto a nível mundial é evidente. São condições históricas favoráveis para o desenvolvimento desse setor. Mas importa compreender sua forma de construção, suas prioridades políticas, a combinação de suas táticas e sua estratégia para lutar pelo poder.
Em primeiro lugar, nesse sentido, há um fator mais estruturante. Identificando o esgotamento do modelo de desenvolvimento capitalista mundial vigente dos anos 1990 até aqui, a extrema-direita tem um projeto bem definido. É um projeto perigoso, antipopular, que aprofunda as violentas contradições do capitalismo e se baseia na intensificação da exploração e opressão da classe trabalhadora, mobilizando cada vez mais divisões em seu interior. Mas é um projeto coerente com sua visão de mundo reacionária. Por pior que ele seja, a extrema-direita tem um programa.
Some-se a isso um trabalho intenso de construção prática e teórica desse programa. Sua visão de mundo é propagandeada e agitada incansavelmente em todas as frentes – com cursos de formação presenciais e online, um amplo ecossistema nas redes sociais, etc. Investem, e com sucesso, na formação de uma coluna cada vez maior de ativistas e quadros em torno de seu programa. Em termos práticos, com o apoio dos cultos e denominações reacionárias, constrói um enraizamento social e territorial muito sólido entre os setores populares. Assim, gostemos ou não, possui um ativismo orgânico superior ao de qualquer outra força política no país: mais militante, mais ideológico, mais mobilizado.
Finalmente, a extrema-direita conduz sua luta política com uma perspectiva permanente de acumulação de forças. Tem conseguido transformar derrotas imediatas em força para os embates posteriores. Em resumo, tem tido sucesso na luta de médio e longo prazo por hegemonia social, política e ideológica no Brasil. E tem conseguido isso porque combina a defesa de seu programa com enfrentamento ideológico, mobilização e enraizamento social.
Desse ponto de vista, a conclusão que setores do PT e o PSB têm divulgado, segundo a qual seria necessário um giro mais ainda ao centro, é altamente perigosa e apenas prepara novas derrotas. Pensamos que o único caminho para enfrentar e derrotar a extrema-direita é justamente nessas mesmas frentes: programática, social, ideológica, acumulando forças em torno de nosso projeto e visão de mundo. É preciso recuperar o melhor da tradição da esquerda para um longo combate contra a extrema-direita.
Nesse sentido, as eleições são batalhas muito importantes para a disputa da conjuntura – mas insuficientes, como vimos neste 2024, se não forem acompanhadas de um intenso trabalho de acumulação de forças. Diante das dificuldades que o governo Lula tem encontrado nesse sentido, acreditamos que esse deve ser o lugar do PSOL na esquerda: reconstruir um programa coerente, reencantar as novas gerações, disputar uma visão de mundo e acumular forças em uma luta de longa duração contra nosso maior e principal inimigo.
5. Sobre balanços e perspectivas
É sob esses marcos que fazemos o balanço das eleições de 2024. A extrema-direita saiu vencedora não só porque teve vitórias eleitorais – mas porque mesmo onde não venceu, acumulou força para seu projeto. Suas divisões no processo não significaram uma fragmentação, mas o fortalecimento de seu horizonte para retornar ao poder.
No mesmo sentido está o erro de caracterização nas eleições de São Paulo. Subestimamos a extrema-direita e superestimamos o impacto da melhora nas condições de vida sobre a consciência da população, e desenvolvemos uma tática conforme a essa premissa equivocada. Mais importante, ao iniciar a disputa priorizando o voto “de centro”, subestimamos a necessidade de mobilização e coesão do ativismo progressista em nossa campanha. Os votos poderiam de fato estar consolidados, mas sem um engajamento apaixonado será muito difícil virar o jogo na relação de forças, que dirá acumular força para o
futuro. A mobilização e o diálogo com o ativismo deve ser uma prioridade constante em qualquer cenário eleitoral: essa é a força que temos e que devemos acumular sempre em primeiro lugar.
Por tudo isso, acreditamos que o PSOL não deve mudar sualocalização na relação com o governo. Lula é necessário e o cerco reacionário contra o governo se fechou mais com o resultado das eleições municipais. O governo precisará continuar sendo defendido, porque é atacado pelo que tem de melhor.
O ajuste a ser feito do ponto de vista político é sobre o papel que o PSOL tem a cumprir nessa frente. Com altivez na defesa de seu programa, orientando suas disputas pelo critério da acumulação de forças para a esquerda, reconstruindo uma visão de mundo e transformando essa visão em força material. O governo é pressionado por todos os lados – e devemos intensificar também a pressão pelo nosso lado.
Estamos em uma guerra de trincheiras que pode definir o que serão os próximos 20 anos, no Brasil e no mundo, e da linha de frente não sairemos. A unidade de nossas forças segue sendo fundamental para fazer frente ao inimigo. Agora, é hora de cuidar também de nossas linhas de abastecimento, no sentido político, material e humano. Dar forma à nossa visão de mundo, fortalecer nossas colunas militantes, acumular forças para recuperar a hegemonia, que está mais que sob risco. Os próximos anos serão duros. Essas são as tarefas que acreditamos ter pela frente.
Executiva Nacional da Insurgência