Well Leal, militante da Insurgência Roraima. 26 de janeiro de 2022.
É sempre assim. Ligamos a televisão nas notícias nacionais, a maioria das matérias são feitas sobre lá. Nas novelas, quando aparecemos, somos os exóticos engraçados.
Aparecemos na mídia poucas vezes, geralmente para contar as atrocidades que vivemos no dia a dia. A economia gira por lá, a produção cultural de grande porte vem de lá, a produção acadêmica vista como relevante e legitimada vem de lá. Na política da esquerda nacional, apesar do nome, e de alguns dizerem: “queremos o difícil: o contra hegemônico, mudar a cultura política, mudar o sistema”, será que ainda continuamos reproduzindo isso na nossa prática política atual?
Existe, de fato, uma hierarquização de importância de lutas sendo colocada em pauta pela esquerda nacional. As lutas urgentes que recebem a atenção dos principais meios de comunicação (inclusive os de esquerda) são aquelas localizadas no Centro-Sul do Brasil.
Os problemas que assolam o Norte e o Nordeste, quando mostrados, são naturalizados e negligenciados. Nossas direções políticas vêm de lá. Os acúmulos tidos como válidos vêm de lá. Nossa forma de tocar luta busca mimetizar a forma como se faz por lá. Estamos seguindo um caminho completamente oposto ao que dizemos seguir. Se queremos que a nossa posição enquanto esquerda socialista emancipatória seja respeitada, precisamos levar à mesa o debate sobre regionalismo. Precisamos que o centro da luta política não seja um, mas vários. Que o nosso centro de luta seja o local onde vivemos e fazemos política.
Antes de pensar sobre nossa prática e centralidade política, é preciso evidenciar e explicar um pouco sobre como o sistema capitalista se baseia em noções de desigualdade e concentração para garantir sua dinâmica. Antes de vermos a necessidade contínua de perceber e garantir a perpetuação das desigualdades como natural, algo que o liberalismo e o neoliberalismo fazem com maestria, aliás, e garantir a centralização das opiniões, das decisões não pode ser visto apenas como sinônimo de organização mas sim um reflexo de como o sistema capitalista se organiza. Para garantir o lucro, a sobreposição de um sobre outro é preciso que um seja superior ao outro, é necessário a perpetuação de um sobre o outro. Para o lucro, é preciso uma concentração e acumulação do trabalho, a mais valia aliás surge pelo controle dos meios de produção. O controle exercido pelo poder.
No Brasil, a maior concentração populacional está no Sudeste, e nosso centro econômico, onde a ótica e modus operandi burguês perdura com mais ênfase, se localiza em São Paulo. Centro econômico significa, no capitalismo, o local onde o capital gira, dá lucros; onde as decisões importantes são tomadas. Assim como em escala mundial temos Paris, Londres, Frankfurt, Hong Kong como centros econômicos, a capital paulista é o nosso. Tal como Frankfurt é vista como o coração econômico da Europa, e Nova York o centro econômico mundial. São nesses locais que a mesa de negociações do sistema é posta de fato, e é esse modelo de centralização que consolida a dinâmica dos 99% não sendo ouvidos nas decisões sobre suas vidas..
É necessário, de fato, puxarmos um debate sobre regionalismo duplo: interno e externo. Internamente, para falar sobre como nos portamos enquanto regiões culturalmente distintas dentro do Brasil, com destaque para os estados que seguem oprimidos no modelo político da esquerda brasileira. E externamente para nos colocarmos como país que sempre é visto como “Sul do mundo”, subserviente aos interesses do imperialismo nortista. Somos os experimentos daqueles que não nos compreendem. E, assim como John Reed evidenciou na Revolução Russa, somente nós, brasileiros, somos capazes de compreender e estudar, em sua totalidade, os fenômenos políticos brasileiros. A nossa compreensão cabe somente a nós.
Se Nova York está como centro do sistema econômico, é na Europa que se encontra a centralidade do pensamento moderno e pós-moderno ocidental. Afinal, nossas universidades bebem teorias formuladas e pensadas onde? O estruturalismo e pós-estruturalismo, assim como o marxismo e a New Left teórica se constituíram e se legitimaram em que universidades? Ainda que essas teorias sejam formuladas com exemplos tirados do mundo descentralizado (como a teoria dos Campos de Bourdieu, pensada através da observação na Argélia, ou os exemplos dados por Durkheim em as Formas Elementares da Vida Religiosa). Somos, afinal, o objeto, as cobaias, o diferente. Somos o complemento que está aí para contribuir para a formulação de pensamento. Nosso pensamento é objeto deles e não sujeito das teorias formadas. Quem conhece mais a fundo as Teorias Queer tem ouvido com frequência nos últimos anos a “descoberta” de que muitas das formulações já eram pensadas na América Latina. Entretanto, a “queer” é norte-americana e fundamentada pelos pensadores franceses. Logo, tratada como a mais importante a nível mundial. Aliás, há de se perceber a ida da recente construção do pensamento ocidental teórico para os Estados Unidos. Não à toa acompanhando a centralidade econômica.
A percepção da dinâmica do capitalismo e do acompanhamento teórico centralizado em um ponto atrapalha a compreensão da dinâmica e da complexidade social, de fato. Mas isso não significa que a solução para isso seja deslegitimar toda a produção e pensamento advindo desse contexto. Afinal, o marxismo e o anarquismo pensados na Europa não são inúteis para pensar variadas situações sociais em que vivemos cotidianamente, mesmo que elas não supram a totalidade de nossas realidades sócio-culturais. Afinal, como poderia o marxismo explicar a dinâmica dos indígenas dentro do nosso sistema social com profundidade? Os processos dos preconceitos sociais que vivemos com descendentes de escravos em nossa realidade?
É notável observar que sempre fomos tratados como secundários no palco da política mundial, o grande experimento da esquerda social-democrata (que se revelou social-liberal) latinoamericana. Após vários processos golpistas e antidemocráticos, a produção acadêmica deixa de nos considerar importantes. Estamos condenados a sermos observados como mais um país em que a extrema direita tomou o poder, tal qual a Turquia e até mesmo a Áustria. As grandes ações e expectativas para o futuro estão momentaneamente deixadas de lado diante de tal cenário avassalador em que nos encontramos. Nossas instituições democráticas estão mais enfraquecidas do que nunca, nossos líderes democraticamente eleitos completamente desmoralizados.
É tradição de uma esquerda que sempre acompanhou lado a lado o debate marxista focado no aspecto econômico um consequente acompanhamento dos locais em que o sistema econômico seja mais consolidado e mais forte. Ainda que tenhamos tido revoluções socialistas no século XX justamente em locais onde o sistema não era desenvolvido e forte como um todo, como Cuba, Angola, Rússia, China etc. Assim como a produção intelectual e cultural acompanha a centralidade econômica, a política da esquerda tem seguido o mesmo caminho. É nítido que isso não se trata de um pacto explícito e intencional, onde todas as pessoas da esquerda sentam e dizem ”vamos atuar e pensar politicamente apenas onde o capital é mais forte”.
O militar e o atuar politicamente mais percebidos e legitimados são os mais possíveis e incentivados dentro dos espaços da classe média, e é justamente dentro dos espaços de centralidade econômica que essa classe média é maior. É um erro achar que essas militâncias mais legítimas são as únicas. Nas margens da sociedade, existem lutas cotidianas, lutas não vistas, não organizadas em óticas “conhecidas” midiaticamente, lutas em locais onde as desigualdades são maiores e com uma pequena classe média.
Trata-se de uma ilusão dada pelas condições do sistema capitalista de que são nesses locais de centralidade política que as coisas do país acontecem, que as outras situações dadas ao redor do país são complementos e consequências dadas. Esse sentimento que se evidencia na época eleitoral, em que as “as margens complementares” decidem os rumos do país e causam revolta de sudestinos que pedem a morte dos nordestinos e nortistas. O petismo soube ver isso com lucidez, viu as margens do país como oprimidos e os incluiu em sua política, o seu sucesso e permanência se devem ao fato de serem ouvidos, vistos e ter demandas aceitas por essa população historicamente marginalizada. O petismo nessas margens perdura. Temos discordâncias de como elas foram dadas via consumo e ideologia neodesenvolvimentista, mas precisamos aprender essa dinâmica tão cara e fraca na esquerda coerente nacional.
Afirmamos representar os setores oprimidos e pautar as opressões, ao mesmo tempo que temos dificuldades históricas de incluir indígenas em nossa pauta, então quais são nossas estratégias para alterar esse processo? Assim como a negritude e as mulheres não são complementos das pautas, e sim um dos centros que se imbricam nas lutas anticapitalistas, é preciso ver o nordeste e o norte como espaços regionais marginalizados dentro do sistema e que necessitam ser ponto não complementar mas sim ponto fundamental e central das dinâmicas políticas nacionais. Pensar a política do centro para as margens é reproduzir a dinâmica da desigualdade instruída pelo sistema, é aumentar a verticalidade da política. Um dos grandes problemas não percebidos é ver que quem está em cima geralmente é reflexo de posições dadas pelo sistema patriarcal, branco e regionalmente formado como reflexo das condições econômicas dadas em sua região, e posição de classe. É um erro tratar isso como essência e comparar um rico nordestino com um pobre do Rio de Janeiro, tal como um erro comparar um negro heterossexual com um homens trans branco de classe média. As dinâmicas são complexas e situacionais, assim como as relações regionais.
Ante o exposto, fica evidente a necessidade de emancipação coletiva que precisamos buscar enquanto sujeitos que tocam a luta política no Norte e no Nordeste do Brasil. Basta de sermos tratados como os estranhos, os diferentes e os subservientes. Contra a estrutura regional tal qual ela se encontra no momento, o socialismo que reconheça “um mundo onde caibam vários mundos” e as nossas necessidades enquanto sujeitos centrais da nossa própria luta.
* Well Leal é sociologo e militante da Insurgência e do PSOL em Roraima.