No seu livro Les sentiments du capitalisme, a socióloga Eva Illouz afirma que “os sentimentos não são ações em si mesmo, mas a energia interior que nos leva a agir e que dá aos nossos atos a sua “tonalidade” e as suas “cores” particulares. O sentimento pode ser definido como o polo energético da ação”.
Nesse livro, a socióloga pretende traçar os contornos do que chama “capitalismo emocional”, que é aquilo que define como uma cultura em que as práticas e os discursos econômicos se influenciam mutuamente.
É esta constatação que a leva, na introdução do livro Porquoi l'amour fait mal, a analisar as alterações “na organização social do sofrimento amoroso” e a afirmar: “os sofrimentos no amor são hoje atribuídos somente ao indivíduo, à sua história privada, e à sua capacidade de se saber apresentar ele mesmo. Precisamente porque vivemos numa época em que a ideia de responsabilidade individual reina como mestre, é que a vocação da sociologia continua essencial. Da mesma maneira que era audacioso, no fim do século XIX, afirmar que a pobreza não era fruto de uma moralidade duvidosa ou de uma fraqueza de caráter, mas resultado de um sistema de exploração econômica, é neste momento urgente defender que o fracasso das nossas vidas privadas não é – ou não é somente – o resultado de atitudes psicológicas erradas, mas que as vicissitudes e infelicidades nas nossas vidas amorosas são produto das nossas instituições”.
Para a autora, as relações amorosas não podem ser explicadas fora do capitalismo, em que aquilo a que chamamos amor foi profundamente transformado: “a economização das relações sociais e a onipresença dos modelos econômicos na formação do eu e das suas emoções (…), a gramática cultural do capitalismo, penetrou massivamente no domínio das relações amorosas heterossexuais”.
Illouz defende, no seu último trabalho La fin de l'amour, que a “incerteza afetiva que reina nos domínios do amor, do romance e do sexo é, do ponto de vista sociológico, uma consequência direta da incorporação da ideologia da escolha individual, do mercado do consumo, da indústria terapêutica e da tecnologia da Internet, enquanto a escolha individual se tornou o quadro cultural maior da liberdade pessoal”.
A socióloga considera que sob a égide da liberdade sexual, as relações heterossexuais tomaram a forma de um mercado, mediado por espaços de consumo e uso de tecnologias e que nesta modernidade conectada “a não formação de laços sociais transforma-se num fenômeno sociológico”.
Quais são as razões que a levaram a estudar o amor, o sexo e a sua relação com o capitalismo?
A alegria da investigação é a surpresa. É encontrar coisas que não se esperam. Tinha começado o meu trabalho de doutoramento sobre as desigualdades sociais e o amor. Queria mostrar que o amor pode ser um sentimento universal, mas foi profundamente estruturado por diferenças de classe. Comecei a entrevistar pessoas de diferentes classes sociais, e percebi que uma boa parte das suas respostas eram semelhantes: elas repetiam os mesmos clichês. Um momento romântico para elas é um restaurante luxuoso ou exótico; um passeio junto ao mar; uma viagem. Comecei a compreender que estas respostas continham a importância capital do consumo de lazer. Foi assim que me perguntei quando e como começou a relação entre o consumo de lazer e o sentimento de amor.
Existe um sentimento de amor fora do quadro do capitalismo?
Se se fala de amor romântico, hoje em dia é difícil imaginar encontros amorosos fora do mercado. Esta é uma declaração descritiva, não uma declaração normativa. Seria difícil para dois jovens manterem uma relação sem nunca ir a um restaurante ou ao cinema, sem tirar férias, sem celebrar o dia dos namorados. A investigação mostra que o casamento tem cada vez mais a ver com a partilha de tempos livres em conjunto e não com a gestão de uma casa. Isto mostra o poder do mercado. O mercado e o consumismo colonizaram a forma como os casais se encontram e expressam os seus sentimentos.
O amor a Deus é talvez o único que não passa pelo mercado, embora em todas as religiões circulem dinheiro, seja no sistema de esmolas, indulgências, impostos, contribuições paroquiais, etc. É apenas na nossa ideologia e mitologia que separamos o dinheiro dos sentimentos puros. Os sentimentos nunca estão realmente separados da circulação de dinheiro. Tomemos os exemplos dos casamentos que são também operações financeiras (vemos isto mais claramente nos divórcios), e das heranças familiares (que envolvem relações pai-filho).
Podemos dizer que a “revolução sexual” é a filha do neoliberalismo?
Não pode ser, pelo menos porque [a revolução sexual] precedeu de longe o neoliberalismo. A revolução sexual começou um pouco antes de Freud, com o nascimento da sexologia, que progressivamente abordou a sexualidade como uma parte da fisiologia do corpo humano e que, portanto, separou a sexualidade da moral judaico-cristã. Isto deu força às novas indústrias culturais, que tornam o olhar um instrumento privilegiado dessas mesmas indústrias culturais. Isto é o que tenho chamado de capitalismo escópico. O fato de enormes ganhos de mais valias e lucros terem sido feitos apenas com base na capacidade de sexualizar os corpos e de observar estes corpos interagindo de forma sexual. Na medida em que o neoliberalismo afrouxa os preceitos morais e baseia a ordem social na liberdade, é inteiramente compatível com isto.
As nossas relações amorosas e sexuais, dentro das normas de consumo do capitalismo e com acesso a aplicativos e novas tecnologias, nos tornam paradoxalmente mais isolados?
Isolado? Não sei a que se refere. Estamos em contato com muito mais pessoas do que no passado. Portanto, não se trata de isolamento físico. Mudamos para uma sociedade em rede, já não temos necessariamente relações fortes, mas redes.... Estas são relações utilitárias e temporárias.
O amor e o sexo têm lugar num quadro de desigualdades sociais, mas será que também contribuem para o crescimento dessas mesmas desigualdades sociais?
Sim, por exemplo, sabemos que as pessoas se casam cada vez mais dentro da sua classe social. Isto significa que os casais são paradoxalmente mais iguais e que a sociedade é mais segregada socialmente.
Vivemos numa espécie de romance de Houellebecq, no qual nos é prometida uma expectativa de satisfação sexual e amorosa como consumo, que necessariamente nunca será satisfeita por todos?
Houellebecq é, para mim, um grande sociólogo da condição moderna. Foi um dos primeiros a compreender os efeitos do liberalismo, consumismo e neoliberalismo no comportamento sexual. Ele descreve melhor do que ninguém o niilismo contemporâneo.
Na sua concepção de amor e sexo, não há um certo regresso ao passado?
Absolutamente não, mesmo que eu tenha sido muitas vezes mal interpretada neste sentido. Para mim, o passado me ajuda a compreender melhor o presente. Recordo que o passado é o culto da virgindade, o poder masculino, mas tudo isto anda de mãos dadas com um mundo no qual as regras são mais claras. Estou falando dos efeitos da liberdade nas nossas relações. Os efeitos são uma maior anomia [o conceito de anomia foi cunhado pelo sociólogo francês Émile Durkheim e significa “ausência ou desintegração das normas sociais”].
Existe uma ideia de felicidade que seja independente da formação econômica e social em que vivemos?
Claro que sim. Os estoicos, por exemplo, pensaram na boa vida. Spinoza pensava na felicidade sem qualquer relação com o mercado. Mas hoje em dia seria difícil.
Qual é a razão pela qual, nas nossas sociedades, parece haver uma obrigação de ser feliz?
No livro Happycratie, o meu coautor [Edgar Cabanas] e eu apresentamos o argumento de que uma das principais razões pelas quais a felicidade se tornou uma mercadoria central e eficaz no capitalismo de consumo atual é porque as mercadorias da felicidade (sejam receitas comportamentais, diretrizes de pensamento, ou aplicativos de smartphones, para citar algumas) não se limitam a oferecer momentos transitórios de alegria, tranquilidade, evasão, esperança, tranquilidade, e assim por diante. Pelo contrário, isto acontece principalmente porque todas estas mercadorias da felicidade reformulam com sucesso a busca da felicidade num estilo de vida que transforma as pessoas em clientes para os quais a busca da felicidade pessoal se torna para elas uma segunda natureza. A este respeito, a indústria da felicidade infunde-nos constantemente a ideia de que a nossa plena funcionalidade e valor como indivíduos está fortemente ligada à nossa contínua auto-otimização através dos meios psicológicos disponíveis no mercado.
O discurso da felicidade e da psicologia positiva não são um poderoso instrumento ideológico para reduzir todos os problemas sociais a questões de comportamento individual?
A psicologia positiva também pode ter efeitos positivos. Mas nós alertamos contra algumas coisas. A crescente estigmatização das emoções negativas, que desempenham um papel crucial. Dizer a alguém que se sente zangado ou invejoso, é sinal de que não trabalhou o suficiente a sua psique, é uma forma de negar a realidade social que pode ter produzido estas emoções. Além do mais, pensamos que os indivíduos estão sobre-responsabilizados, colocam demasiada responsabilidade em si próprios, quando na realidade muito do bem-estar depende de coisas que não se podem controlar, tais como se se pertence a uma comunidade, como se é apoiado, e assim por diante.
A psicologia positiva, para nós, aumenta a doença da sobre-reponsabilização do eu. Há uma enorme diferença entre dizer que as emoções e a doença estão de alguma forma relacionadas, e afirmar que o que as pessoas sentem ou pensam as torna doentes (até ao ponto de lhes causar câncer, por exemplo, ou de ser um obstáculo à recuperação). Este discurso não só é falacioso como moralmente censurável. Privatiza a saúde e o sofrimento, desviando-se dos fatores sociais e contextuais que melhor explicariam a saúde para tornar os indivíduos, em vez disso, plena e injustamente responsáveis pelas suas dificuldades, sejam elas físicas ou mentais.
A saúde é, antes de mais nada, uma questão social (a pandemia da Covid-19 mostrou isso muito claramente), e não apenas, e não principalmente, uma questão individual. [Aquele discurso] é altamente contraproducente, porque pressionar alguém que está passando por uma doença difícil a manter uma mentalidade positiva faz com que as pessoas sofram duas vezes, pela sua própria doença e, em segundo lugar, pelo sentimento de culpa e impotência que advém de se sentir o único responsável por não ser capaz de navegar ou superar a situação. Quando as pessoas se recuperam com sucesso da sua doença, pode não parecer muito importante, podem até sentir que foi o seu próprio sucesso. Mas quando as coisas não correm assim tão bem, dizer às pessoas que poderiam ter feito muito mais para melhorar - quando na realidade não é verdade - parece um duplo castigo para elas.