O risco que as milícias representam para a democracia e a urgência de se enfrentar a ameaça à vida face às ações genocidas das políticas de segurança e da justiça criminal, encarceradora voraz. Para ver a primeira parte, clique aqui.
Luiz Eduardo Soares, A terra é redonda / Brasil Amazônia Agora, 20 de fevereiro de 2021
Rio de Janeiro em comparação a São Paulo: modelos de organização do crime
São as milícias um fenômeno eminentemente carioca? Essa é uma pergunta difícil. Nós encontramos modalidades de nichos compostos por policiais, sobretudo que se autonomizam e que se convertem em novos personagens do universo criminal no Brasil todo. Mas nessa escala e com essa metodologia de controle territorial, não. É um fenômeno especialmente fluminense, mais do que carioca, que reproduz um arranjo inventado e inaugurado pelo tráfico de substâncias ilícitas, que é do controle territorial e de domínio sobre comunidades.
As diferenças entre o tráfico no Rio e o PCC foram muito bem estudadas. Há etnografias preciosas sobre o PCC e sobre o tráfico. Conhece-se bastante bem o tema por meio desses retratos oriundos de tantas boas pesquisas e há uma analogia possível ao que é proposta por mim em artigo publicado no livro organizado por Gabriel Feltran, que é um desses importantes estudiosos do PCC. No artigo em questão, sugere-se alguma associação entre a economia, a sociedade paulista e o PCC e a economia, a política fluminense e o tráfico, tal como nós o conhecemos. E é bastante interessante pensar nisso.
Para usar simplificações grosseiras e caricaturais num desenho ligeiro e superficial, temos em São Paulo uma sociedade que foi fortemente industrial, com movimento popular intenso e dinamizado pelo sindicalismo, uma sociedade orgânica, estruturada em torno da divisão social do trabalho de ponta do capitalismo brasileiro. Já no Rio de Janeiro, o declínio do que havia de indústria, a decadência do setor industrial, predomínio dos serviços, a degradação econômica, o deslocamento da capital do país com uma série de implicações e uma sociedade marcada pela informalidade; por aquilo que o velho Marx chamava lumpesinato, que era um nome no fundo para designar a inorganicidade. Nós vivemos num país da inorganicidade, e organizar é uma tarefa quase inglória. Então quem é que organiza no Rio de Janeiro? Agora são as igrejas populares evangélicas que organizam na base – antes eram as igrejas católicas progressistas. Se nós não pensarmos nas igrejas, o que mais organiza?
Não temos propriamente organizações numa sociedade inorgânica, mas agregações em torno de lideranças carismáticas, como foi, por exemplo, o fenômeno Brizola. Há, neste momento, a possibilidade de endosso a uma liderança messiânica ou carismática, mesmo fascista ou pró-fascista como Bolsonaro. São agregações, ad hoc, circunstanciais, em torno de certos discursos de valores mobilizados e de certas negociações mais ou menos com esse propósito. O resto na política é também o varejão, a informalidade e a inorganicidade também num mundo partidário. Vejam o que foram o PT de São Paulo e o do Rio em termos de impacto sobre a sociedade, inclusive brasileira. Aqui as negociações ad hoc, negociações locais que a chamamos de fisiológicas para resolver problemas imediatos.
Acompanhando o raciocínio, o tráfico tal como se organiza no Rio, é absolutamente antieconômico e irracional, não tendo como sobreviver. Só pode sobreviver enquanto a decadência do Rio persistir. Por quê? Quando se iniciaram as experiências das UPPs, dei uma entrevista para o O Globo dizendo que não acreditava naquilo, porque não era uma política pública; era um programa visando basicamente propósitos mais políticos, cosméticos, porque não havia reforma da polícia, e com essas polícias aquilo seria insustentável.
Enfim, se desse certo e onde desse certo, significaria um grande salto de qualidade de racionalidade para o tráfico. O tráfico iria se modernizar, iria renascer porque teria de abandonar esse modelo de domínio territorial. Isso porque é necessário um pequeno exército fortemente armado, correndo risco de vida, inviabilizando a fluxo do que se quer conseguir, tendo de comprar a adesão, a cumplicidade policial sempre por preços superiores, numa situação instável, sobre risco permanente, para negociar substâncias ilícitas que no mundo inteiro são negociadas num método errante, nômade, com trânsito em algumas áreas da cidade.
Já para a milícia, o domínio territorial é rentável porque se trata de impor a cobrança sobre todas as atividades econômicas, mas para o tráfico não faz nenhum sentido. O tráfico em São Paulo adota um modelo empresarial descentralizado, hiperflexível, com delegação de autonomia na ponta. É um modelo de negócio que funciona, prospera com menos atrito com a polícia, menos problema, menos custo, menos risco e que corresponde a uma dinâmica econômica mais desenvolvida.
O ponto é que as milícias acompanham modelos criminais e societários, econômicos e políticos, numa sociedade inorgânica onde se torna possível criar uma geopolítica com base em baronatos feudais, entre aspas, nesse arquipélago. Isso é impossível em São Paulo. E o Rio é a capital das milícias por conta também da história das nossas polícias, da brutalidade das nossas polícias desde a época da capital do país, com a centralização, a hiperpolitização que isso implicava. Então há elementos históricos que tornaram as polícias do Rio muito mais poderosas, politizadas, incontroláveis e menos sensíveis a apelos constitucionais, menos encantadas pela simbologia republicana democrática.
Acerca das conexões internacionais existentes, o tráfico fez isso. Primeiro foi o Fernandinho Beira Mar, que substituiu aquelas mulas, os sujeitos que vinham trazer aqui as drogas das fontes colombianas, peruanas e tal, mas sobretudo colombianas. O Fernandinho Beira Mar organizou isso, e quem conta muito bem essa história são Camila Dias e o Bruno Paes Manso num livro sobre a guerra de disputa nas conexões internacionais sobretudo o PCC, mas também o Comando Vermelho mais e mais. As milícias vão ter de se internacionalizar na medida em que estão entrando no mercado das drogas com força.
Prioridades do Estado
É possível o Estado controlar as milícias? Bem, até agora o estado não foi capaz, nem se dispôs a fazê-lo. E mais: a agenda pública não impôs aos tripulantes do Estado, que são os governos, a definição do combate às milícias como prioridade. Há um exemplo anedótico que é bem expressivo disso. Eu estava em São Paulo em 2010, o filme “Tropa de elite 2” tinha feito um grande sucesso. Quem o assistiu sabe que o foco são as milícias. Subitamente aquilo ganhou uma projeção muito grande e uma projeção negativa para as milícias. Eu estava em um seminário em São Paulo e recebo um telefonema do Zé Padilha, diretor do “Tropa” dizendo: “Luiz você viu o que aconteceu? Tão fazendo ‘Tropa 3’”. “Que isso, Zé, como assim? Quem tá fazendo?” Era o início da invasão do Alemão, filmada em tempo real como se fosse efetivamente dramaturgia, ao vivo e em cores, com narradores no local e com cobertura em tempo real e as emoções todas. E qual foi o enquadramento midiático e político conferido àquela intervenção? De um lado o bem, do outro, o mal. Quem fazia o papel do mal? Eram os traficantes lá do Alemão, que fugiam pelo alto, sandália de dedo ou descalços, sem camisa, carregando algum fuzil. Esses eram a personificação do mal. Do outro lado, o Estado brasileiro, as Forças Armadas e as polícias representando o bem.
A questão das milícias, que é demanda das polícias, foi para o espaço, e a agenda sofreu uma reflexão imediata. Ora, aquilo tudo se deu com essa intenção? Não, claro que não. Mas esse foi um dos resultados. Quando naquele momento parecia que nós trazíamos para o centro da agenda a questão miliciana, surge uma situação que desloca de novo o tema, e nós retornamos à velha polaridade polícia vs. tráfico, que é um engano, um engodo total, porque não há tráfico sem polícia, e o problema nosso é justamente a degradação das ações policiais, o que não significa uma acusação aos policiais e seu conjunto, ou as instituições em que há milhares deles que pagam um preço altíssimo e são honestos e honrados, arriscando a sua própria vida com salários indignos tantas vezes.
Vamos reunir o que há de vivo, de inteligente, nas polícias, fora dela e na sociedade para pensar passo a passo. As milícias não terão mais sossego e as polícias vão começar de novo. Como é que nós começamos de novo? Há muitas propostas, mas isso se resolve daqui há 2 anos? Não. Mas em algum momento tem de ser iniciada essa transformação.
Existe ainda outro ponto a ser destacado. São Paulo assistiu a um declínio espantoso dos homicídios, e o governo nadou de braçada e se apresentava jubiloso em triunfo, como responsável por domar a criminalidade sobretudo letal etc. E nós sabemos, pois as pesquisas são fartas nesse sentido, que depois daquela crise de 2006 o PCC, que detém o controle monopolista, não pleno, não é monopólio absoluto pleno, mas lidera o universo criminal em São Paulo, embora com muita flexibilidade de centralização, mas lidera.
O PCC, que tem uma cabeça muito mais empresarial do que a dos líderes do tráfico no Rio de Janeiro, decidiu que não se mataria mais, a não ser a partir de autorização da cúpula por mediações burocráticas específicas, a partir de critérios definidos de uma maneira sólida e consistente. Claro que há falhas e decisões que se impõem e que são perdoadas ou toleradas, mas se constituiu um mecanismo interno de controle porque não interessa criar essa violência e chamar a atenção da sociedade e acabar jogando a pressão da sociedade e das polícias contra os negócios.
Isso não ajuda os negócios do crime. Então houve um refluxo, e isso foi a principal razão da queda do número de homicídios no Brasil. Houve um plano nacional, uma queda entre… não me lembro se 2015 ou 2016 até 2017.Houve dois ou três anos de queda, que se deveu também a reajustes no mundo criminal. Nós não sabemos exatamente, isso requer mais pesquisas, mas essa é uma hipótese forte, associada à mudança no perfil demográfico e algumas outras variáveis possíveis.
Zonas de simbiose e atrito entre milícias e polícias
Na Zona Oeste da cidade do Rio, o crescimento das milícias importou em menos mortes, como observo num artigo que escrevi há muitos anos sobre o que é segurança pública. A gente fala muito disso, mas poucas vezes se define efetivamente. Eu definia como estabilização de expectativas favoráveis relativamente à cooperação social, estabilização de expectativas e sua generalização. Estabilização favorável à cooperação, e eu procurava justificar com base lá nos argumentos que vêm do século XVII, da filosofia política, mostrando que simplesmente não há alternativa de entendimento, porque, se nós definimos segurança com ausência de crime, nós teríamos que reconhecer que os totalitarismos então é que garantem segurança pública, e nós não podemos confundir segurança pública com a paz nos cemitérios, com o império do medo e da coerção.
Segurança pública só pode ser um tema plausível no estado democrático de direito, senão nós podemos trocar a morte e o crime pela operação brutal do Estado. Nesse sentido, essa queda de crimes da Zona Oeste não representa um aumento da segurança pública no Rio de Janeiro. Não pode ser assim definida, pois quando o governador afastado Wilson Witzel dizia que houve uma queda no número de crimes no Rio de Janeiro, eu lhe perguntava se ele estava computando entre os crimes – ele se referia aos roubos –, se ele estava computando entre os roubos as apropriações indébitas operadas cotidianamente pelas milícias em todo o estado.
Como a polícia se beneficia da milícia enquanto corporação? Sem dúvida, dessa forma há um resultado que interessa sobretudo aos comandantes e àqueles que se beneficiam com premiações ou algum reconhecimento institucional, que provém da redução de casos, mas o que há muito é o benefício na direção contrária. As milícias se beneficiam das polícias apontando áreas que devem ser objetos de incursões, para eliminação de competidores, para liquidação eventual de traficantes e depois a subordinação dos sobreviventes. São cooptados para tarefas terceirizadas do tráfico, para ameaças, para armamento etc. As polícias abastecem e fornecem instrumentos e mecanismos para as milícias. E esses acordos vão tomando conta e degradando a instituição.
Quais as zonas de simbiose e de atrito entre polícias e milícias? Essa é a última questão e talvez a decisiva e mais difícil. Zonas de simbiose são aquelas de cooperação. A cooperação pode se dar por benefício ou por redução de dano. Benefício quando há um escambo, uma distribuição do butim; há uma partilha do que é fruto do esbulho, a partir dessas operações criminosas todas, sistemáticas. Isso acontece frequentemente, e a redução de danos se dá quando a alternativa é pior. Por exemplo, como um policial poderia se dedicar a combater seus colegas milicianos se sabe que eles não têm limites, são violentos, assassinos e conhecem o seu endereço? A sobrevivência, a paz, a tranquilidade é um benefício nesse caso diante de tantos riscos que se apresentam aos policiais.
O atrito se dá com uma contraface da redução de danos, de ameaça patente. E também o atrito se dá quando existe confronto efetivamente nos setores que resolvem enfrentar problema. Cláudio Ferraz, o delegado titular da DRACO, que foi campeão em prisões de milicianos até pouco tempo atrás, acho que até hoje, ele não citava, mas ainda conta com segurança, carros de segurança etc. O Marcelo Freixo só anda assim também. Há um preço alto a pagar. Eu mesmo tive que sair do país, de passar anos fora do Rio de Janeiro, também no período de enfrentamento. Os atritos são constantes.
Eleições 2020 e sensação de cerco
Quanto ao papel das milícias nas eleições de 2020, eu diria que há um movimento robusto em andamento e com muito sucesso. Não vou citar nomes aqui, evidentemente, mas na Baixada Fluminense é ostensivo; e aqui no Rio de Janeiro, quem conhece os sobrenomes e conhece as histórias sabe a quantidade de candidatos que representam as milícias direta e indiretamente, cada vez mais, e ocupando cargos importantes que lhes facultam acesso às informações, que são ferramentas de poder e de influência muito significativas.
Isso lhes aumenta o poder de chantagem, que não é nada de soft power, não é o poder suave, é um poder que pode se tornar cruento e brutal; de tal modo que podemos imaginar uma pessoa paranoica hoje no Rio de Janeiro, se ela trabalha nessa área e pensa sobre isso e é militante de direitos humanos. Ela, usando a razão com absoluta lucidez, sente-se definitivamente ameaçada. Entendo como justificado que pessoas se sintam sob cerco. Em artigo publicado na revista Piauí de setembro deste ano, eu dizia que vivo numa cidade sitiada, em um estado sob cerco. E o que impede o assassinato?
Nós diríamos que a visibilidade e os custos que o crime implica. E a Marielle? O motorista Anderson acabou morrendo tragicamente nessa situação, mas ela tinha toda a visibilidade, e isso não foi o bastante para protegê-la. No processo eleitoral passado, houve quem quebrasse a sua placa em público, no palanque em que estava o futuro governador do estado do Rio de Janeiro. Isso significa o segundo assassinato de Marielle. Escrevi sobre isso no meu livro Desmilitarizar (Boitempo), publicado em 2019. Chamei o ato de segundo assassinato de Marielle, porque era uma profanação.
Nós sabemos, os gregos nos ensinaram isso, que a verdadeira morte é o esquecimento. Não há pior condenação do que o esquecimento; ou seja, não há pior sentença do que a proibição de sepultamento; daí, na tragédia de Sófocles, toda a dedicação de Antígona para enterrar o irmão. Sepultar significa dar-lhe destino e constituir ali um marco que vai impedir a amnésia, vai lhe dar vida eterna em algum sentido na memória das gerações subsequentes, das gerações futuras. Quando se quebra a placa que é uma alusão à memória, que é a consagração da memória; quando se quebra o nome ao meio, e assim o símbolo mesmo da permanência, isso constitui uma profanação; mata-se pela segunda vez, porque se condena ao esquecimento simbolicamente. Evidente que isso não logrará êxito, ela não será esquecida, mas era esse propósito.
Mas isso é apenas o eco da homenagem a um torturador, violador, assassino, o Brilhante Ustra, por parte do presidente da República. Então, se o discurso e a postura são esses, como nós podemos imaginar que autoridades e lideranças se comovam sequer com ameaça à democracia e à civilidade, com o ataque à Constituição, se eles são perpetradores, profanadores. Dessa forma, nós não temos, de um lado, as instituições e, de outro, o crime. Essa é a nossa tragédia.
Desmilitarização da polícia, um caminho?
O tema da desmilitarização me é muito caro, e dediquei ao assunto um livro em 2019, cujo título é Desmilitarizar (Boitempo). Isso não é uma panaceia. Mas observem que nós temos nas milícias tanto policiais militares quanto policiais civis. A brutalidade policial letal não é um monopólio militar, nós encontramos envolvimento também de policiais civis. Aliás, me parece um contrassenso, até do ponto de vista constitucional, manter unidades bélicas ou protobélicas, unidades de ação de combate, como o Acori, que é um fac-símile do BOPE na Polícia Civil. Então quando nós discutimos a desmilitarização, nós não podemos nos iludir. Entendo que isso é imprescindível de resolver, mas está longe de solucionar nosso problema. É um passo necessário entre muitos outros.
Propus contribuir para a elaboração de uma Proposta de Emenda Constitucional, que foi apresentada pelo então senador Lindbergh Faria ao Senado Federal, em 2013, a PEC 51, em que nós elencamos um conjunto de medidas que funcionariam como uma verdadeira refundação das polícias brasileiras. Isso tudo realizado com pleno respeito aos direitos adquiridos dos trabalhadores policiais etc. Felizmente, um movimento importante, embora diminuto numericamente, dos policiais antifascismo tem na PEC 51 uma de suas principais bandeiras.
Hoje há pelo menos um discurso, uma proposta sobre a mesa para ser discutida para quem considere necessário refundar as nossas instituições na área de segurança. A PEC 51 envolve a desmilitarização como um dos pontos fundamentais. Quem tiver interesse, sugiro dar uma olhada no livro Desmilitarizar ou no meu site, no qual há muitas matérias e artigos meus, entrevistas em vídeo, áudio sobre desmilitarização e temas análogos. O site tem o meu nome: luizeduardosoares.com.
Corregedoria
Já acerca dos policiais corretos e sobre corregedoria, infelizmente a Corregedoria não funciona. E isso é histórico em todas as polícias, umas mais e outras menos. Mas como a influência do corporativismo é muito grande, nem o Ministério Público atua, quanto mais os controles internos. Não se pode generalizar porque há esforços aqui e ali, mas o controle interno numa instituição que está atravessada por atritos dessa monta não pode funcionar.
Eu criei, quando estive no governo, a Ouvidoria da Polícia. Nós tivemos uma pessoa maravilhosa, corajosa e de grande dignidade, a juíza Julita Lemgruber, como a nossa ouvidora. Mas essa atividade acabou desativada. Nós tínhamos, entre vários inimigos que combatemos naquele tempo, dois que se tornaram protagonistas de tragédias posteriores. Uma dessas figuras que nós combatemos se chama Ronnie Lessa, que hoje está preso, acusado de ter sido o assassino de Marielle e Anderson. O outro é o tenente coronel Claudio Luiz Oliveira, que está preso pelo assassinato da Juíza Patrícia Acioli em 2011. Os dois faziam parte da equipe que atuava em um batalhão, conhecido por “batalhão da morte”. Nós enfrentamos, com todas as denúncias em mãos, mobilizando instituições, e aquilo nos tomou parte das nossas vidas. Mas acabamos derrotados, e eu tive que fugir do país. Eles venceram: um assassino de Marielle e outro assassino da juíza Patrícia Acioli.
As condições de trabalho da PM
Mas, sobre policiais corretos, que são milhares, e para vocês terem uma ideia do que eles sofrem e passam, porque estamos aqui falando desses horrores todos, e não estamos demonstrando nenhuma empatia com os trabalhadores cidadãos policiais, e pelo seu padecimento. Eles são vítimas também, milhares e milhares deles. Uma promotora muito corajosa, honrada no Rio de Janeiro, resolveu apresentar um TAC ao governo do estado há poucos anos. TAC é um termo de ajuste de conduta, um instrumento legal, cuja utilização eu defendia ao longo de anos em palestras no Brasil inteiro para membros do Ministério Público, como uma ferramenta a ser aplicada, porque ações penais acabam embaraçadas pela política e condenadas a postergações sucessivas, enquanto o TAC é mais ágil, é um termo de ajuste, propõe correções a partir de diagnósticos, mobiliza a sociedade em instâncias independentes para acompanhar as correções, negocia e oferece alternativas e possibilidades de reajustes etc.
Então essa promotora ousou em elaborar um TAC, ouvindo as denúncias de policiais contra as suas próprias instituições, particularmente a Polícia Militar, e montou a versão do seu relatório final dizendo o seguinte: “Visitei policiais militares nas UPPs A, B, C, D, e os encontrei trabalhando em condições análogas à escravidão. Eles estavam em contêineres a 50 graus à sombra, e os equipamentos de ar refrigerado evidentemente não funcionavam, sem manutenção, sem energia. Não tinham banheiros, fazendo as necessidades no mato, sem água e sem alimentação, tendo de contar com a boa vontade das biroscas e da comunidade, se sentindo absolutamente vulneráveis com coletes à prova de bala vencidos, sem treinamento e, o pior, trabalhando em condições em regimes de tempo, em jornadas que ultrapassavam inclusive aquelas previstas para momentos absolutamente excepcionais e críticos”.
Quando ela preparou essa primeira versão do relatório, me pediu que levasse alguns oficiais da PM para uma conversa informal. Eram três coronéis amigos, grandes figuras que lutam até hoje, mas que já estão fora da corporação. Eles leram comigo essa primeira versão e, quando se depararam com esse parágrafo, eles se entreolharam, nos olharam e perguntaram: “Vocês sabem por que isso acontece? Porque eles são militares. Se eles fossem civis, jamais admitiriam esse nível de exploração, de espoliação, porque eles disporiam, senão de sindicatos, mas de organizações, de associações, a justiça trabalhista interviria. Porque isso é absolutamente desumano, mas eles não podem hesitar, eles não podem dizer um ai, não podem questionar, muito menos descumprir a ordem, sob pena de prisão administrativa, sem direito à defesa, sob pena de mácula em sua carreira, irremovível e indelével”. Esse é o quadro do tratamento dos policiais da base. O que nós podemos esperar?
Incertezas quanto ao porvir
Não basta impedir a eleição dos milicianos. É preciso muito mais do que isso, porque eles não chegaram aonde estão por eles próprios. Aliás, é curioso que estou usando o masculino, mas aqui de propósito, porque só há miliciano homem. Há uma questão da violência com o patriarcalismo, machista, falocêntrico, e há uma questão das milícias com esses exercícios despóticos de poder com masculinidade, objeto de uma indagação à parte muito importante. Mas enfim, os milicianos não chegaram onde estão por eles próprios. Eles dependeram da anuência de tantas e tantas cumplicidades, de tantos apoios, de tanta pusilanimidade, com tanta covardia e tanta corrupção, no sentido mais amplo da palavra, não naquele sentido menor e falta de compromisso democrático institucional, falta de capacidade de definir agendas com base em prioridades e urgências, e isso tudo remete de volta à sociedade, que não impôs isso aos seus representantes.
Então vamos lá: primeiro ponto, estamos cientes que lidamos com uma questão vital para a história do Brasil, a democracia brasileira, que não é uma questão de segurança pública apenas, é uma questão multidimensional. Foram feitas alusões genealógicas a circunstâncias de décadas anteriores, da natureza da nossa transição, a segurança privada, o modo de estruturação de organização das polícias que nós herdamos da ditadura e nunca reformamos, nunca atualizamos, independentemente dos governos que tivemos. Falamos do racismo estrutural e das desigualdades, do capitalismo autoritário sem os quais não haveria endosso, apoio à brutalidade policial que foi alimento e instrumento, mecanismo que proporcionou a autonomização desses nichos criminosos que acabaram redundando nas milícias. Enfim, desenhamos um quadro necessariamente multidimensional. Portanto, a resposta, a nossa reação, a nossa disposição de resistência tem de ser multidimensional. Nós vamos ter de atuar em múltiplas esferas e em muitas dimensões. Na sociedade deve-se discutir todos os demais aspectos, desde a questão da política de drogas, do encarceramento em massa, temas de que trato sempre com muita intensidade e que, por falta de tempo, não chegaram a ser tratados aqui.
Nós vamos ter que lidar com uma multiplicidade grande de temas. Mas acho que há um princípio a seguir: reconhecer a gravidade do que está diante de nós. Um presidente fascista, que não consegue impor o regime totalitário, mas é motivado por valores de natureza fascista, que encontra audiência fragmentada, digamos heterogênea, mas que também se apoia numa base sólida, ainda que pequena, mas sólida, e encontra respaldo da história brasileira autoritária, o que significa dizer que estamos diante de uma situação grave, de uma ameaça à democracia. E as milícias são, no Rio de Janeiro, demonstrações ostensivas de que há agentes operando no mundo do crime, dilapidando instituições fundamentais para a democracia e, portanto, corroendo as bases da democracia.
Nós estamos diante de uma situação grave e urgente. É inadmissível e não faz nenhum sentido, que um conjunto de atores políticos, a maioria deles de persuasão democrática e progressista, continue lidando com essa realidade como se nós vivêssemos uma situação trivial, normal, comum, tratando do seu quintal, da sua carreira, do seu projeto, e os partidos tratando dos seus quintais, da sua própria reprodução, dos seus próprios projetos.
Assim como parece inconcebível, como no caso desta pandemia, que alguém que tenha consciência da gravidade do que enfrentamos não tenha parado tudo, suspendido todas as dinâmicas e lógicas e compromissos anteriores, que são absolutamente razoáveis, justificáveis, mas que agora deveriam ser suspensos, para que todos nós nos uníssemos em torno da salvação das vidas durante a pandemia, também é igualmente grave que não se mobilizem os setores responsáveis para enfrentar a ameaça à vida face às ações genocidas das políticas de segurança e da justiça criminal, encarceradora voraz. Tal enfrentamento é vital, essencialmente para a própria democracia brasileira. Todos os que se irmanam nesse sentimento, nessa percepção, não teriam por que estar divididos em torno do que quer que fosse, por mais significativas que sejam as divergências. Elas não poderiam se sobrepor à união estabelecida pelo reconhecimento da gravidade desse problema e por nossa disposição de defesa da democracia.
Então, sinceramente, não consigo entender como faltam para o nosso país os estadistas, grandes lideranças com coragem de cortar na carne, de sacrificar seus partidos e seus projetos, de falarem francamente, de deixarem os jogos todos de lado. E cá estamos no Rio de Janeiro, caminhando para esse festival inacreditável de pulverizações pela cidade, numa eleição municipal em que os democratas com sensibilidade social estão totalmente divididos, cada um tratando o lado da sua própria linha, como se nós estivéssemos numa situação democrata normal.
Estamos diante de uma pandemia que vem sendo gerenciada de forma criminosa, e também diante dos crimes perpetrados pelas instituições da ordem, que geram o genocídio, e nós continuamos com as mãos sujas de sangue ao assistir tal espetáculo, que no fundo é uma manifestação do velho racismo estrutural, das desigualdades, mas agora em escala hipertrofiada, devorando o que resta de vida civilizada e democrática. Caso eu esteja errado, que bom, tomara. Está tudo normal, tranquilo; foi só um engasgo, um susto. Mas caso eu esteja certo, então nós estamos nos afastando de qualquer possibilidade de solução, porque ninguém tem a solução no bolso; até porque, para construí-la, precisamos de um trabalho coletivo e de grande mobilização da sociedade, e isso tem de partir dessa disposição de dialogar, de superar essas divergências e de esquecer, por ora, 2022, pois talvez não haja 2022, talvez nós não cheguemos lá em condições efetivamente democráticas. Vejam o que aconteceu na Hungria e o que está acontecendo na Polônia. Temos o exemplo da Bolívia próximo de nós, com outra metodologia. Nós vimos o que aconteceu nos EUA e vamos ver qual vai ser o nosso desfecho.
Luiz Eduardo Soaresfoi secretário nacional de segurança pública (2003). Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar – Segurança pública e direitos humanos (Boitempo). Publicado originalmente no site Brazil, Amazônia, agora.