Os jovens de hoje tem um horizonte existencial muito diferente das gerações anteriores. Há uma crise dos princípios heteronormativos e patriarcais que governaram quase todo o século XX, com a pandemia aprofundando um processo de redução da natalidade que é a contrapartido do aumento da expectativa de vida. Carlos Tutivén Román, filósofo, professor e pesquisador da Universidade Casa Grande, de Guayaquil, Equador, analisa o tema.
Entrevista publicada por Dialoguemos, 22 de janeiro de 2022. A tradução é do Cepat.
Quais são os horizontes das gerações atuais?
Para começar, é preciso estabelecer que o termo geração ou geracional tem alcances e limitações na hora de explicarmos algumas mudanças sociológicas, antropológicas e psicológicas presentes na sociedade atual. Às vezes, sua delimitação é meramente cronológica, ou sociodemográfica, quando estabelecida a partir dos consumos culturais dos denominados jovens ou por suas formas de pensar e se comportar.
Em todo caso, quando falamos de gerações juvenis, o que se deve considerar é a “novidade” que introduzem sobre um fundo de práticas, mentalidades e valores que já estão relativamente estabelecidos em uma determinada sociedade. As “culturas juvenis” podem ser vistas como a materialização simbólica de novas tendências ideológicas e práticas que vão surgindo nos comportamentos sociais.
Nesse sentido, os chamados millennials e centennials ou geração Z expõem essas tendências de mudança e transformação social, o que não necessariamente significa algo positivo ou negativo em abstrato, já que essas mudanças também introduzem a renovação dos critérios axiológicos com os quais se avaliam essas mudanças ou ao menos introduzem debates e controvérsias.
Em relação ao desejo de não ter filhos, essas duas gerações expõem a crise dos princípios heteronormativos e patriarcais que governaram quase todo o século XX. O que antes era considerado “normal”, hoje, é interpelado ou questionado por essas gerações e, muitas vezes, por boas razões.
Quais são suas prioridades?
Essas gerações, e em especial a geração Z, podem ser identificadas como a geração “do fim do mundo”. Com a expressão “fim do mundo” queremos dizer que nesses jovens há uma acentuada percepção de que o mundo de seus pais, dos idosos, está acabado para eles, que não existe mais. E podemos observar isso quando identificamos as causas às quais aderem, os comportamentos e movimentos sociais que seguem, ou as mensagens que viralizam em suas redes.
Por exemplo, sendo a geração da digitalidade imersiva e expansiva, sabem perfeitamente os males que vêm com a globalização, como a superpopulação mundial, o fracasso dos ideais políticos, as crises ambiental e alimentar, a insegurança financeira e a corrupção generalizada em nível moral.
Em nível psicológico, sofrem com maior intensidade a incerteza sobre o futuro, a instabilidade trabalhista – embora já desde os millennials se via o trabalho clássico como uma forma de opressão -, os ataques de pânico e as perguntas pela identidade de gênero.
Por que rejeitam a paternidade e tudo o que ela engloba? Quais são as razões?
Se levarmos em consideração esses contextos sociológicos, não podemos nos surpreender que quando subjetivam tais realidades não desejem ter filhos, pois além da paternidade ser difícil, requer sacrifícios pessoais que não estão mais dispostos a carregar, seja porque a subjetividade juvenil não se reconhece preparada ou porque não está entre suas prioridades, mais centradas em satisfações imediatas, rápidas, mas efêmeras, ou do presente, como viajar, estudar em outros países, gozar de suas relações de amizade ou de amor com pouco compromissos. Em definitivo, não se sentirem presos, porque sentem que o futuro é hoje e não um projeto como nos ensinaram.
Essa tendência a não querer filhos é mais forte na geração millennials ou na Z?
Aparentemente, é mais acentuada na geração Z, ainda que essa tendência vem crescendo desde a geração anterior. A geração Z é a geração do apocalíptico, veem milhares de horas de filmes sobre o fim do mundo, notícias sobre o aquecimento global e as catástrofes ambientais e as crises financeiras, como também a violência política e criminal.
Nesse sentido, também não surpreende que vejam o futuro com poucas convicções positivas, talvez a exceção seja a confiança exagerada que possuem nas tecnologias em todas as suas vertentes, das tecnologias digitais da comunicação social às transumanistas que buscam mudar a natureza humana, robôs e ciborgues incluídos.
Por que surpreende que uma mulher priorize sua formação acadêmica ou seu trabalho em vez de constituir uma família?
O “valor” de ter uma família pertence ao paradigma patriarcal, a partir do qual a família se definia como a “célula da sociedade”, concepção apoiada a partir da educação pela Igreja católica. Nesse paradigma, as mulheres têm alguns papéis bem definidos - como a maternidade e a devida obediência -, o que implicava uma visão da feminilidade submetida ao princípio do Pater Familias.
Também é preciso reconhecer que esses papéis tradicionais e as subjetividades que lhes correspondem, como a normatividade heterossexual, estão em crise nos jovens que se consideram bissexuais ou de um gênero em trânsito, o que complica a identificação com essa maternidade tradicional.
Para aqueles que ainda se regem por esses princípios – dominante ainda na América Latina -, surpreende e causa indignação que uma mulher não deseje ter filhos ou que prefira seus estudos à formação de uma família. Deve ficar claro, no entanto, que essas formas de pensar não estão difundidas em toda a população juvenil, nem que não sofram forte oposição entre os próprios jovens.
O Papa Francisco falou do egoísmo e se mostrou contrariado: “Alguns não querem ter filhos, em vez disso, têm cachorros e gatos”. Em que medida esta afirmação pode ser positiva ou negativa?
O Papa representa – no campo religioso – o velho paradigma, por isso se chama “Papa”, um pai que remonta a Moisés e a Pedro, o fundador da Igreja. Embora Francisco tenha reconhecido a necessidade de “modernizar” a Igreja para que esteja em sintonia com os tempos presentes, em algumas coisas não pode ceder sem desnaturalizar o dogma.
Mas os tempos atuais são hiperseculares e uma mostra disso é que estamos na era da solteirice e da desmistificação de alguns mitos, ou para dizer de forma mais suave, de alguns valores de cunho ideológico, como o de acreditar que toda mulher se realiza na maternidade, ou que ter filhos aproximará e confirmará o casal ou o aproximará do matrimônio, se não estão casados. Os Z pensam totalmente o contrário. Discutem o princípio do “instinto materno”, pois o vivem como um mandato do patriarcado, e é uma das teses e posições mais presentes no feminismo atual.
Por outro lado, deve-se levar em conta que as relações amorosas entre os jovens atuais estão condicionadas por uma ideia de liberdade muito individualista e hedonista, com poucos recursos psíquicos a favor da tolerância, a paciência e o compromisso alimentado. Talvez seja nesse sentido que o Papa acusa de egoístas as pessoas que se negam a ter filhos e que, ao contrário, preferem animais de estimação.
Ouvi dizer que na Argentina há uma palavra com a qual indicam a relação com os animais de estimação, por exemplo, “perrijos”, pois em tempos de solidão e de rupturas ou crises dos vínculos humanos, os animais domésticos cumprem o papel de companhia, e é para eles que são transferidos ou projetados os sentimentos de amor, confiança, segurança, companhia e, pelo que parece, essas realidades sociológicas não são levadas em conta. Os jovens da geração Z, além disso, estão expostos aos modelos midiáticos que mostram que é possível ser feliz sem filhos ou mesmo na solteirice.
Por último, diria que outra leitura possível dessa vontade ou decisão de não ter filhos, ou de tê-los mais tarde, e que representam uma irreverência positiva em relação a esse valor, é que com isso se está pensando no planeta, no mundo futuro. Para que trazer bebês a um mundo superpovoado, faminto, doente (lembremos que a pandemia de Covid-19 se transformará em uma endemia) e violento, que sofrerá catástrofes ambientais e que seus recursos serão mais escassos? Não será tal posição uma atitude ética?
Quais são os países mais afetados pela baixa taxa de natalidade e quais podem ser as consequências a longo prazo?
Os países europeus, especialmente os do norte. Inclusive, existem países como o Reino Unido, França e Japão onde há Ministérios da Solidão nos quais se atende ao isolamento das pessoas devido a vários fatores, entre os quais o de não pertencer a famílias, seja porque desapareceram ou porque se decidiu não ter uma. A isso devemos acrescentar uma baixa na taxa de fertilidade nos homens que é atribuída a condições ambientais, alimentação e patologias psicológicas como a depressão.
Como consequências virão os problemas de envelhecimento populacional e a decrepitude senil, principalmente em países hiperdesenvolvidos. Embora isso seja muito pouco provável na América Latina, pois essa ideologia é mais das classes médias educadas do que dos setores populares.