São Paulo, 27 de novembro de 2023. Por Ederson Duda, militante da Insurgência.
O Governo Tarcísio e o raio privatizador
Logo no início de seu mandato, o governador Tarcísio de Freitas, aliado de Bolsonaro, lançou publicamente seu plano de privatizações e concessões das empresas estatais de São Paulo. O foco, neste primeiro momento, tem sido a Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (SABESP).
A privatização da SABESP foi apresentada em caráter de urgência pelo governo Tarcísio, com apoio e euforia do prefeito Ricardo Nunes. A rapidez nos trâmites e a ânsia em colocar o texto em votação no plenário da ALESP já na primeira semana de dezembro revela o receio de mudança na correlação de forças, que tem oscilado, ainda que a situação permaneça estável, favorável para o avanço da reorganização da esquerda com a eleição de Lula e o “efeito Boulos”. Como as próximas eleições municipais se aproximam, o debate sobre a privatização da SABESP tem o caráter de desmobilização dos parlamentares privatistas com receio da desaprovação popular. A ideia do governo e a vontade do mercado financeiro é que o processo seja concluído ainda no primeiro semestre de 2024
Não é a primeira vez que a SABESP entra na mira de governos de direita buscando atender as necessidades do mercado financeiro. A última tentativa de torná-la uma empresa de serviço privado foi no governo de João Dória, que não conseguiu avançar.
Com a promulgação da nova Lei Nacional de Saneamento (14.026/2020), aprovada durante o governo Bolsonaro em 2020, a sanha pela privatização da SABESP se intensificou.
A Sabesp é uma empresa de capital aberto desde o final dos anos de 1990. O governo de São Paulo é o acionista majoritário, com 50,3%. A companhia está presente em mais de 375 municípios paulistas, sendo a da maior companhia de saneamento da América Latina e uma das maiores do mundo1. Os resultados de seus últimos balanços financeiros demonstram superávits primários volumosos2. A maior parte desse montante, entretanto, tem sido ou redistribuído entre os acionistas ou para outros setores do governo.
Ora, por que não privatizar uma companhia saudável financeiramente e que apresenta lucros anuais significativos de 2 a 3 bilhões de reais? Por que não privatizar uma empresa estadual que gera receitas de 22 bilhões e que conta com mais de 5 bilhões em investimentos de obras públicas todo ano?
O ímpeto privatizante é uma característica histórica dos governos de direita e, mais recentemente, da extrema-direita no poder. Desde pelo menos 2014 movimentos sociais de direita, como o MBL, tem conseguido emplacar suas narrativas neoliberais e libertárias de diminuição do estado e contra os serviços públicos conquistando audiência e apego popular: ora mediante uma tática que associa a má qualidade dos serviços públicos com a corrupção, ora enfatizando a eficiência da gestão privada empresarial contra o que seria a ineficiência da gestão pública.
Com o golpe de 2016, os governos Temer e Bolsonaro avançaram na pauta de “diminuição” do estado e na desestatização dos bens públicos. O último, principalmente, privatizou um terço das estatais, como no caso da Eletrobrás e da BR Distribuidora.
Contudo, há um novo momento na conjuntura política caracterizado por pelo menos três movimentos que podem abrir os caminhos para que as forças de esquerda se fortaleçam na e com a luta contra as privatizações no contexto de São Paulo: 1. A vitória de Lula derrotando o bolsonarismo nas urnas possibilitou frear a tentativa de privatizar a Petrobras, por exemplo, ao mesmo tempo em que deu novo fôlego para a reorganização das esquerdas em um cenário menos defensivo; 2. As últimas pesquisas sobre as intenções de voto para a disputa à prefeitura em 2024 na cidade de São Paulo indicam o favoritismo da candidatura de Boulos. Se esse quadro se confirmar, tende a dificultar a fúria privatizante do governo Tarcísio, já que o debate público e uma possível vitória de Boulos contribuiria para uma mudança qualitativa na correlação de forças na cidade e no Estado. Cabe pontuar, nesse sentido, os resultados significativos que a candidatura de Boulos em 2020 e de Haddad e Lula em 2022 tiveram na cidade dão sinais de uma vontade de renovação e de ação contra a extrema direita e as políticas privatizantes; 3. Por fim, e não menos importante, esses fatores conjunturais por si só não são suficientes para derrotar o projeto de extrema direita de acabar com os serviços públicos. Se faz preciso continuar apostando na tática da Frente Única de Esquerda e na mobilização popular nas ruas. Exemplar nesse sentido tem sido a organização combativa dos sindicatos de empresas públicas de São Paulo, que não apenas têm conseguido construir a unidade de lutas contra as privatizações por meio do instrumento da greve, como, apesar de possuir caráter defensivo, tem apostado na defesa política de serviços públicos, não se restringindo aos direitos das categorias em luta.
Momento de avançar na unidade de luta contra as privatizações e a extrema direita
Ainda que as últimas pesquisas sobre o tema indiquem que o percentual de pessoas que rejeitam as privatizações tenha caído, muito determinado pela conjuntura política polarizada do último período, o número de brasileiros que se dizem contrários ainda é majoritário. Uma das principais razões está no reconhecimento da população de que os preços e as tarifas aumentam com os serviços privados e não necessariamente se tornam melhores.
Foi nesse intuito, reagindo às iniciativas de privatização e encarecimento dos serviços públicos, que trabalhadores e trabalhadoras do Metrô, da CPTM, da Sabesp se organizaram e realizaram em conjunto, no dia 03 de outubro, uma greve histórica. Histórica porque, ainda que possuindo uma dimensão estritamente defensiva, trata-se de uma luta política contra as privatizações, o que poderá se transforma em uma forma de luta de classes em nível superior, já que, por um lado, atinge diretamente os interesses imediatos da burguesia e do mercado financeiro que apoiam o governo Tarcísio, por outro, carrega a potência de apresentar para a sociedade outras formas de organização dos serviços essenciais que tenha como norte o bem-viver, realizando uma reconversão subjetiva em condições de esquerda.
O dia de mobilização ficou caracterizado pela apoio popular contra as privatizações, em especial os/as trabalhadores/as que utilizam as linhas de trem e metrô e que sofrem diariamente com a superlotação e os diversas problemas de operacionalização e descarrilamento, tal como nos casos notadamente conhecidos da linha 9 Esmeralda da CPTM, controlada pela ViaMobilidade, e que teve como porta-voz o sofrimento e indignação de Dona Fátima.
A organização e a luta dos grevistas colocou na ordem do dia a denúncia dos impactos nefastos que as privatizações têm para a sociedade como um todo, mas principalmente para a vida da população pobre, negra e periférica.
Exemplar nesse sentido é o caso da ENEL, companhia de distribuição de energia elétrica que foi concedida à iniciativa privada e hoje é uma das piores prestadoras de serviços, conforme o Procon-SP. Desde que foi privatizada a empresa realizou cortes de gastos reduzindo o quadro de funcionários, assim como em investimentos, tendo seu piorando na qualidade do serviço desde então. As consequências da privatização, cujo objetivo visa os lucros acima do interesse coletivo, ficou evidente com as fortes chuvas e vendavais que atingiram a cidade no começo do mês. Estima-se que mais de 2,5 milhões de pessoas ficaram sem energia elétrica, muitas por quatro dias consecutivos, resultando em prejuízos com eletrodomésticos e alimentos, sem falar nos comerciantes que não abriram as portas e pessoas que não conseguiram utilizar seus equipamentos de saúde.
As paralisações, portanto, assumem o papel, ainda que não declarado, de conscientizar as camadas populares sobre as arbitrariedades e as violências que afetem-nas, forçando-as a refletirem e opinarem com base em fatos e acontecimentos concretos que experienciam e vivenciam cotidianamente.
Nesse sentido, contra as privatizações dos serviços públicos essenciais e na defesa do bem-viver da população pobre, preta e periférica, se faz preciso que o conjunto da esquerda e dos movimentos sociais saiam de seu estado de dormência e solidarizando-se com a luta, de modo a vislumbrar a possibilidade de outra coisa.
As forças partidárias e os movimentos sociais de esquerda devem encorajá-las e colocar em primeira ordem a solidariedade e o apoio em ações de rua, disputando os sentidos das privatizações. Devem organizar denúncias suficientemente amplas e que sejam ao mesmo tempo convincentes, demonstrando para o conjunto dos/as trabalhadores/as toda espécie de consequência negativa que os serviços privados podem acarretar em suas vidas de maneira imediata.
Como bem defendeu Camila Lisboa em relação às consequências da privatização do Metrô, existe um nítido recorte racial no uso do transporte público3. A privatização dos serviços de transporte tende a acarretar no fortalecimento da segregação e na limitação do acesso a este serviço importantíssimo para a mobilidade social da população que mora nas periferias e que em sua maioria é negra.
A paralisação dos serviços, ainda que gerando contratempos, é uma forma de criar e colocar em pauta esse debate que diz respeito a todos nós. Para isso, se faz preciso que estejamos preparados e organizados tanto para defender a importância do serviço público, não tendo medo de apontar para suas falhas e as razões disso, como para defender os grevistas contra o reacionarismo do governo e dos bolsonaristas.
Buscando dar continuidade às denúncias e às reivindicações, foi acordado, no dia 23 de novembro, o indicativo de greve unificada dos trabalhadores e trabalhadoras. Reflexo das decisões acertadas na última greve e da importância da luta, outros setores e categorias se somam na paralisação de 24 horas proposta para o dia 28 de novembro. Agora, para além do Metrô, da CPTM, da Sabesp, a Fundação Casa, professores e professoras e profissionais da saúde compõem a frente de luta contra as privatizações do governador Tarcísio de Freitas.
Ainda que imerso em uma conjuntura defensiva, devido a anos de retrocessos políticos e sociais e da continuidade da mobilização bolsonarista nas ruas, a formação de uma frente sindical de lutas contra as privatizações se apresenta como um movimento político revigorante.
O governador Tarcísio de Freitas, por exemplo, veio a público declarar que a ação dos grevistas contra a privatização dos serviços públicos em outubro se tratava de um movimento político. A tese do bolsonarista governante busca sustentar que não há razões econômicas nas reivindicações dos trabalhadores e trabalhadoras. Ou seja, não se trata de reivindicações “legais” por melhores condições salariais e de trabalho. Logo, toda forma de luta que escape do âmbito do “econômico” assume uma forma política de luta, portanto, deve ser taxada de “abusiva” e “ilegal”.
Sobre a greve do dia 28 de novembro, o governador Tarcísio de Freitas tem declarado que a paralisação seria um “deboche contra a sociedade, uma piada, um desrespeito”.
De fato, é um grande desrespeito deixar que o mercado financeiro se apodere dos bens públicos e do montante que estes serviços geram anualmente. Deve ser realmente uma piada não deixar que milhares de trabalhadores percam seus empregos em decorrência dos cortes de gastos que as empresas privadas promovem assim que assumem as empresas públicas. Um grande deboche contra a sociedade não permitir que o acesso aos serviços que dizem respeito à dignidade humana e o bem-viver, como o direito à água potável e boa, a mobilidade urbana e à educação de qualidade não sejam restritos à população, gerando maior segregação social e aumentando ainda mais as desigualdades sociais.
O que Tarcísio de Freitas esquece, ou finge esquecer como um bom governante dos interesses da burguesia, é que antes de grevistas existem os homens e as mulheres que vivem cotidianamente as contradições desastrosas das privatizações e do descaso das políticas privatistas de gestão da vida.
Não podemos esquecer que uma das particularidades do neoliberalismo está exatamente em limitar e conter o político. Como reflexo, temos tanto a limitação de uma vontade popular como da própria democracia representativa, que se vê cada vez mais atrofiada e sem vida. A consequência de estabelecer uma subdivisão entre o que é econômico e o que é político, típico do interesse das classes dominantes, visa a restrição e a contenção das reivindicações democráticas, como se os/as trabalhadores/as e à população só pudessem “discutir” e “pautar” politicamente os temas e as questões que dizem respeito diretamente às suas vidas, tal como as privatizações dos serviços públicos essenciais, em épocas eleitorais. No caso dos/as trabalhadores/as dessas categorias, o que lhes restam se limitaria apenas às reivindicações por melhores condições de trabalho. Nada mais reacionário e conservador.
Por se tratar de uma luta política que não se restringe a uma luta defensiva contra demissões, a esquerda deve se solidarizar desde já, pois os grevistas estão lutando contra a mercantilização da vida, uma luta de todos nós.
Contra a mercantilização da água
Voltando à questão da SABESP, menina dos olhos do mercado financeiro, normalmente os serviços que são adquiridos pelo setor privado são aqueles que se limitam apenas ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário, já que oferecem garantia certa de realização dos ganhos de capital em curto prazo e com pouco investimento.
Os ganhos de capitais se tornam ainda mais atraentes se os serviços prestados pela empresa privada forem em localidades em que o investimento de saneamento já estiver estabelecido e forem em áreas em que existe uma expressiva quantidade de usuários, os “clientes”.
Mas quando se trata do serviços de investimento em novas áreas de saneamento, resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais muitas das vezes estes ficam a cargo e sob a responsabilidade da gestão pública em realizar os aportes necessários a tais infraestruturas.
Ao mesmo tempo, todo processo de privatização de uma empresa pública se caracteriza pelas demissões em massa e o aumento das taxas do serviço prestado, visando puramente o lucro para os acionistas. Isso também é o que pode ocorrer caso avance o processo de privatização da SABESP.
O acesso à água potável e boa é um direito de todos e um dever do Estado, que deve fornecer e assegurar que cada pessoa possa receber a quantidade suficiente de água para satisfazer as suas necessidades mais vitais.
Como um direito subjetivo, qualquer tentativa de cobrança, cuja finalidade não seja a de conservação, proteção e melhor distribuição desse bem para todos, deve ser entendida como indevida, um crime. Como um bem comum, a água não pode ter como objetivo o interesse privado e mesquinho que visa o lucro por meio de sua mercantilização.
O processo histórico de privatização tem sido uma das dinâmicas mais violentas impostas pelo capital. Ela é a transformação do direito tradicional e comum de um determinado bem coletivo pelo interesse particular, egoísta e privado.
Cabe lembrar que nos últimos 20 anos diferentes cidades têm revertido as privatizações de serviços como o de saneamento, por exemplo. Cidades como Paris, Berlim, Buenos Aires, La Paz, dentre outras, reestatizaram e remunicipalizaram o uso da água. Foi identificado nesses processos que para além do péssimo serviço que as empresas privadas ofereciam, o custo do serviço mais que dobrou, e as promessas de universalização nunca foram realizadas.
Simultaneamente, é preciso levar em consideração que a luta pelo direito da água potável e boa para todos se insere na própria luta de classes, porque ela é uma luta por um modo de vida que vislumbra o bem comum e o acesso à água como um valor universal, seguindo a lógica do bem-viver.
A luta pela água é também o campo de enfrentamento da emergência climática e do racismo ambiental, portanto, ecossocialista, já que com a privatização quem mais tende a sofrer os impactos diretos e imediatos da restrição do acesso e do aumento do custo do serviço é a população pobre, negra e periférica.
Organizar a luta pelo direito à água e dos serviços públicos em São Paulo é uma tarefa imediata dos anticapitalistas e socialistas.
Essa é uma luta que possibilita tornar possível o que é necessário, já que diante das mudanças climáticas ficar inerte a ela é o nosso pior destino. A história tem demonstrado que quando não carregamos a vontade de mudança o que se apresenta tem sido antes o retrocesso reacionário. Que estejamos à altura desta batalha.