No dia em que terminei o livro, parece que o conflito na Ucrânia está cada vez mais eminente. Nem a propósito, a ler um livro sobre a II Guerra Mundial, sobre o sofrimento do povo russo na perspectiva das mulheres, aquelas que estiveram na guerra mas que a sociedade russa fez por esquecer e silenciar.
Enquanto fui lendo este livro, fui acompanhando pela comunicação social o aumento preocupante do conflito entre a Ucrânia e a Rússia. Sabendo nós o que os órgãos de comunicação social nos querem fazer crer, com encontros entre líderes, declarações solenes de parte a parte, retiradas estratégicas, receios de provocações, a verdade é que no dia em que terminei o livro, parece que o conflito está cada vez mais eminente. Nem a propósito, a ler um livro sobre a II Guerra Mundial, sobre o sofrimento do povo russo na perspectiva das mulheres, aquelas que estiveram na guerra mas que a sociedade russa fez por esquecer e silenciar.
Svetlana Alexievich, que ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 2015 pela sua “escrita polifónica, monumento ao sofrimento e à coragem na nossa época”, é natural da Bielorrússia e a viver em Minsk, com a profissão de jornalista, quis, com este livro, publicado nos anos 80, ouvir as vozes das mulheres que combateram nas trincheiras, que estiveram na linha da frente e que, depois da guerra, não só não foram reconhecidas como fundamentais no esforço de guerra, como, muitas vezes foram ostracizadas e vilipendiadas.
É um livro brutal, duro. A autora quis ouvir na primeira pessoa muitas centenas de mulheres cujas vozes gravou e que depois transcreveu numa polifonia única. Recordações de um tempo em que eram jovens com pouco mais de dezasseis anos, desejosas de combater e derrotar o inimigo nazi. A recolha destes testemunhos, que levou a autora a percorrer todo o país, iniciou-se nos anos 80, sendo que o livro foi recusado durante dois anos pela censura, por “não ter ideias soviéticas” (pág. 35), por “mostrar a sujidade da guerra” (pág. 37) e porque “Não precisamos da sua pequena história, precisamos de uma grande história. A história da Vitória” (pág. 39). Ainda hoje, o governo bielorrusso proíbe a edição dos seus livros que são lidos em russo e vendidos aos milhões.
“Começou a perestroika de Gorbachev… O meu livro foi logo publicado, teve uma tiragem vertiginosa: dois milhões de exemplares. Foi o tempo em que aconteciam muitas coisas impressionantes, de novo lançámo-nos com ímpeto não sabíamos bem para onde. De novo, para o futuro. Ainda não sabíamos (ou então esquecemos) que a revolução é sempre uma ilusão, sobretudo na nossa história” (pág. 30)
Este livro é de tal forma único e rico em testemunhos – “um coro de vozes” – que se torna difícil escrever sobre ele, escolher. O meu exemplar está repleto de anotações, sublinhados, dá vontade de transcrever tudo; imagino como terá sido hercúlea a tarefa da autora a “limpar” e deitar fora material de entre tudo o que recolheu, ouviu e gravou, para que resultasse nesta obra incrível.
“Os relatos femininos são diferentes e falam de coisas diferentes. A guerra «feminina» tem as suas cores, os seus cheiros, a sua iluminação e o seu espaço de sentimentos. Tem as suas palavras. Nesta guerra, não há heróis nem proezas incríveis, mas tão-só as pessoas ocupadas na sua actividade humana e simultaneamente desumana. Lá, não são só elas, as pessoas, a sofrer, mas também a terra, os pássaros, as árvores. Todos os que habitam a terra connosco. Estes sofrem sem palavras, o que é ainda mais horrível.”
… “Quero escrever a história desta guerra. A história feminina” (pág. 16)
Constituído por dezassete capítulos, o livro começa com o registo de excertos do diário do livro, onde a autora fala da influência que o livro “Sou de uma Aldeia em Chamas” de Ales Adamóvitch teve na sua obra e explica a sua estranheza por tudo o que lera sobre a guerra ter exclusivamente “voz masculina” e perceber que as mulheres, embora sendo protagonistas, estiveram sempre caladas, ninguém quis ouvir as suas vozes, dando como exemplo os casos da mãe e da avó. Os louros da vitória foram para os homens. Elas só foram homenageadas passados 30 anos sobre a guerra. Ao ir ao encontro daquelas que são as protagonistas do seu livro, mesmo passados tantos anos, sentiu que algumas tinham dificuldade em se libertar de uma narrativa da época (a verdade comum), sentindo-se constrangidas a contar a sua história, havia as que em dado momento já não conseguiam continuar “Não me quero lembrar” (pág. 47), mas também as que tinham ânsias de contar os detalhes, como as coisas se passaram (a verdade pessoal). “Por que é que só agora vieste ouvir-nos?” disseram-lhe algumas das narradoras.
De que falam aquelas mais de três centenas de narradoras de “A Guerra não tem Rosto de Mulher”, aquelas então raparigas russas de 1941? De solidão, de dúvidas, de medo, de ódio, de amor à Pátria, de vingança, de perdão, de reconciliação, de sentimentos de culpa, da roupa de homem que tiveram de vestir, de amor, de fervor ideológico, de escolhas dolorosas. Da fome e da solidariedade das populações sem o apoio das quais a vitória não teria sido possível. Dos cercos a Leninegrado e Estalinegrado. Os riscos e sacrifícios extremos dos partisans e sector clandestino são bem documentados no capítulo “Sobre batatas miudinhas…”, talvez um dos mais duros.
Elas ocuparam todas as profissões e não só as relacionadas com enfermagem. Muitas estiveram na linha da frente, o lugar mais desejado por elas, fruto do fervor ideológico e da convicção de que o inimigo seria vencido em pouco tempo, estiveram nos tanques, na Marinha, mas também nos “bastidores”: foram cozinheiras, lavadeiras, bombeiras, padeiras, fotógrafas, abastecedoras, no serviço postal, engenheiras civis… E as sapadoras, as que ficaram depois da guerra e que tiveram de ficar no terreno a desminar os campos.
Terminada a guerra, é o vazio para muitas delas. A esperança de que no fim da guerra todos se amariam rapidamente se esvai. As terras perderam os seus homens, as famílias estão desfeitas, elas sentem-se velhas. Muitos olham para elas com desconfiança, rotulam-nas de EC “esposas de campanha” (pág. 292). Elas receavam que ninguém quisesse casar com elas e os homens não as protegeram. A guerra terminara, mas para elas ia começar uma nova guerra. Os traumas que trouxeram da guerra ficaram e permanecem.
Termino, transcrevendo alguns excertos deste que foi o primeiro livro de Svetlana Alexievich e sobre o qual só tenho a dizer: leiam-no. Não mais o vão esquecer.
“Tenho pena dos que vão ler este livro e dos que não o vão ler…” (frase de uma das vozes deste livro. (pág. 33)
“Eu tinha uma trança muito bonita, saí já sem ela… sem a trança… Cortaram-me o cabelo à soldado.” “E não me devolveram o vestido. Não me deram tempo de entregar o vestido e a trança à minha mãe. Ela pedira muito para ficar com alguma coisa minha.” (pág. 51)
“A primeira vez é terrível… Mesmo terrível…” (pág. 54)
“Mesmo que regresses viva de lá, a alma dói-te” (pág. 62)
“Certa vez, durante os exercícios… Não consigo lembrar-me disso sem chorar, não sei porquê… Era Primavera. Terminámos o exercício de tiro e regressávamos ao acampamento. Apanhei umas violetas. Um raminho pequeno, que atei à baioneta.” (pág. 98)
“Porque sobrevivi? Para quê? Penso… No meu entender, para poder contá-lo…” (pág. 135)
“Recordar é terrível, mas não recordar é mais terrível ainda.” (pág. 159)
“Depois da guerra nunca mais voltei a ser jovem.” (pág. 189)
“Todos ansiavam chegar vivos ao dia da Vitória” (pág. 277)
“Para os sapadores a guerra acabou uns anos depois da guerra… Imagine o que é estar à espera de uma explosão depois da Vitória? Estar à espera daquele instante…Oh, não! A morte depois da Vitória é a mais horrorosa. É como morrer duas vezes” (pág. 279)
“Não enterro o meu marido, enterro o meu amor.” (pág. 286)
“Acho que, se não me tivesse apaixonado na guerra, não teria sobrevivido. O amor salvava. Salvou-me a mim.” (pág. 292)
“Na guerra nunca sorria”
“Na altura da minha partida para a frente, as cerejeiras do nosso pomar estavam em flor” (pág. 296)
“Será que é possível escrever sobre isto? Dantes não se podia…” (pág. 373)
19 de Fevereiro de 2022