Feminismos convocam, em todo o mundo, manifestações e greves para retomar a potência dos encontros. Após dois anos de pandemia, e em meio à guerra, 8M amplia a brecha para lógicas pós-capitalistas do cuidado, partilha e circularidade
Verónica Gago, Viento Sur / Outras palavras, 2 de março de 2022. Tradução de Maurício Ayer
Depois de dois anos de pandemia, de transformações profundas no trabalho remunerado e no trabalho doméstico não remunerado, a necessidade de voltar a encontrar a potência que emerge das ruas é fundamental. Atravessadas pela conjuntura que impõe a dívida externa aqui na Argentina, mas que também atravessa vastos territórios da América Latina, pelas consequências das políticas sanitárias e pela necessidade de dar corpo às urgências, feministas de todos os cantos estão se encontrando para que o 8M siga tendo o caráter rebelde que recuperou a partir de 2017.
A greve e a mobilização deste 8 de Março não são triviais. Acontecerão após dois anos de pandemia, que obrigaram o movimento feminista a reinventar-se nos territórios da urgência, a ter menos possibilidades de ocupar massivamente as ruas, a submergir-se em formas menos visíveis mas ainda assim persistentes de organização.
Isso faz com que a própria mobilização não seja tão simples: é preciso batalhar contra o isolamento, contra a maior precarização acumulada nos bolsos e nos corpos e contra o esgotamento após um biênio de exceção. Em segundo lugar, trata-se de um 8M que se combina com conjunturas nas quais o movimento feminista está intervindo de modo ineludível: a negociação da dívida externa na Argentina, o processo constituinte no Chile, as campanhas ligadas às eleições no Brasil e na Colômbia – com o recém-obtido aborto livre! –, a discussão do referendo contra as leis da coalizão governante no Uruguai, para falar de alguns dilemas regionais.
Em diversos países da Europa, onde acaba de ser eleita como presidenta do Parlamento Europeu uma notória antiabortista, a intervenção antifascista é transversal contra uma direita que se se enche de brios com discursos antifeministas e anti-imigrantes. Isso põe em relevo uma constatação: os feminismos não objetivam meramente agendas isoladas e específicas, mas sim uma política de transformação social em disputa direta com esses tempos reacionários.
Como este 8M está sendo preparado nas diferentes geografias? Quais são, desta vez, “as perguntas que fazem movimento”, para evocar a preciosa fórmula da feminista chilena Julieta Kirkwood? Com que palavras de ordem se tece o texto das ruas? Em que se pensa quando se convoca a greve e a jornada como luta histórica? Que horizontes de propõem os feminismos para fazer futuro? Aqui, apresento uma cartografia parcial para tramar orientações coletivas, compartilhar estratégias e, uma vez mais, evidenciar a força internacionalista que faz do movimento feminista uma maré de múltiplos ritmos e correntes.
Recuperar o tempo e a rua
Quando a pandemia e suas rotinas tumultuadas em favor de mais trabalho pago e não pago, misturadas com a penúria da doença e da morte, parecem sufocar o tempo, os feminismos falam em futuro. No último dia 25 de novembro, circularam duas bandeiras que chamaram a atenção pelo verbo que compartilharam. A Coletiva Feminista em Construção de Porto Rico estendeu sobre uma ponte uma faixa que dizia “Tempos melhores virão, os estamos construindo” e a Coordenadora 8M do Chile levantou lenços violetas com o slogan “Aí virá a greve feminista. 8M”. Não deixar que nos arrebatem o que virá, abrir desde o aqui e agora o que está por vir é, sem dúvida, uma potência política. Ainda mais em um momento em que produzir tempo para nos organizarmos – e, portanto, deter o fluxo sem fim de tarefas e preocupações, refletir juntes e avaliar até onde vamos – é uma das tarefas mais difíceis.
Na Argentina, várias reuniões, assembleias e coordenações já deram partida. Voltamos às ruas? Nunca saímos dela? Em torno desse eixo giram algumas conversas. No contexto do sindicalismo, Ana Lemos, Secretária do Interior da União Operária Oleira da República Argentina (UOLRA), disse: “Nunca deixamos a rua porque dispusemos nossos corpos de outras maneiras, a partir de outros lugares. Depois de dois anos realmente precisamos dessa mobilização. Voltar a nos encontrarmos e nos mobilizarmos nos parece central e vai nos servir para marcar e ampliar uma agenda feminista ao longo do tempo. Cada a 8M nos serve para gerar mais organização”.
Esse diagnóstico também é feito por Dina Sánchez, da UTEP: “A pandemia por um lado nos deteve e, no entanto, não deixamos de nos expressar”, disse ela, que abre este debate cada vez que se fala em “converter” os planos de apoio social em trabalho “genuíno”. “Continuam acreditando que o cuidado não é trabalho”, acrescentou. Johana, da Garganta Poderosa e membra da Casa da Mulher da Vila 31, assinala a importância de exigir salário para as trabalhadoras comunitárias. E ressalta que ninguém se pergunta quem cozinha as toneladas de comida distribuídas nos refeitórios. Relatar o que aconteceu na pandemia, como ocorre a cada encontro feminista conforme retornamos ao presencial, é uma parte do processo de listar coletivamente o que se fez, onde se esteve e, a um só tempo, narrar porque é necessário voltar ao encontro na mobilização coletiva.
De Neuquén, Ruth Zurbriggen, da coletiva A Revolta, que já vem realizando suas reuniões, explica: “Precisamos reconstruir a trama, isso tem que ser parte do que nos move na direção do 8M, para ocuparmos as ruas com essa teia de aranha potente que sabemos produzir com os feminismos e insistir intergeracionalmente em reivindicar tudo aquilo que nos devem”. Se a greve durante esses anos foi um processo de múltiplas formas, hoje essa dinâmica se vê impactada por espaços domésticos mais carregados, com o cartão de transporte sem crédito, com um cansaço gerado por não parar de lidar com emergências cotidianas e de fazer malabarismos para esticar o dinheiro. “Cabe a nós intervir no debate que parece envenenado sobre o pagamento da dívida externa, uma dívida que claramente não será paga por aqueles que desapareceram com os milhões emprestados”, acrescenta Ruth.
Em muitos espaços, os eixos debatidos que estão sendo debatidos colocam a questão da dívida de modo central. “A dívida é conosco” é um slogan levantado desde 2020 para conectar reivindicações laborais, territoriais, econômicas e contra as violências, em continuidade com a palavra de ordem que surgiu em 2018: “Queremos estar vivas, livres e sem dívidas”. Mas agora o tema é mais urgente do que nunca, em meio à negociação com o FMI. Luci Cavallero, a partir do coletivo Ni Una Menos, assinala: “A denúncia do endividamento externo não é nova, desde 2018 quando o governo de Mauricio Macri nos levou ao pior processo de endividamento de nossa história, nós, os feminismos, temos proposto que a dívida externa é uma guerra contra a possibilidade de viver uma vida livre de violências, contra a possibilidade de aumentar os orçamentos para políticas de gênero e que reparem as desigualdades que arrastamos. Por isso, o marco deste 8M é especial, temos um inimigo que claramente vai tentar cortar direitos e se chama Fundo Monetário Internacional. Temos que discutir a dívida em todas as suas dimensões (sua legitimidade, seus cúmplices locais que se enriqueceram e sumiram com esse dinheiro, suas formas de chantagem no dia a dia) e não só no 8 de março, mas até que não reste nenhum único funcionário do FMI na Argentina”.
Atuar em tempos turbulentos
A questão do trabalho atravessa também os diagnósticos e reivindicações: reconhecimento salarial para os cuidados, debates sobre como os empregos que começam a se “recuperar” depois da pandemia são mais precários, e a sobrecarga psíquica de apoio na pandemia que não desaparece com a volta ao presencial. A urgência antiextrativista é também chave nessa conjuntura, como responsável pelas secas e incêndios inéditos que nos últimos tempos atravessam todo o país e afetam diretamente os preços dos alimentos. “Este ano não poderemos fazer verduraço para o 8M”, anunciou Rosalía Pellegrini da Secretaria de Gênero da União de Trabalhadorxs da Terra, “porque a seca reduziu muitíssimo o que podemos colher”. A nível regional, se cruza transversalmente a impugnação à violência patriarcal do sistema judicial e da reação conservadora, antidireitos LGBTQI e anti-imigrantes. NiUnaMigranteMenos (NemUmaImigranteMenos) fará intervenções a respeito deste 8M na própria mobilização, visibilizando reivindicações transfronteriças; também a campanha pela “liberdade a Laura Villalba, a aparição com vida de Lichita, e por justiça para as meninas assassinadas” no Paraguai.
A necessidade de voltar à rua aglutina os feminismos
No Chile, a greve feminista terá como slogan “Vamos, pela vida que nos devem!”. Isso veio sendo “cozinhado” desde o encontro plurinacional daquelas que lutam. Por isso, Wayra Villegas, nova porta-voz da Coordenadora 8M, enfatiza que a preparação da greve “é um processo coletivo e contínuo que desemboca no 8M”. O que desejam – a poucos dias da posse de Gabriel Boric na presidência? Em uma lista feita a mão em uma das assembleias dos últimos dias se lê que esperam “ser uma maré pelas ruas”, “nova constituição”, “chegar a todos os territórios”, e também lutam “contra a impunidade de Piñera”, entre outras reivindicações. “Uma das grandes perguntas mobilizadoras, para citar Kirkwood, é a respeito dessa dicotomia entre institucionalidade e movimentos sociais, porque o objetivo é entrar e transformar essa institucionalidade tão patriarcal, agora estamos na primeira fila e nossa força implica uma aposta em uma democracia paritária, plurinacional, sem teto, para superar o modelo neoliberal. Isso nos leva a estar na instituição como um exercício constante para transformar o país”, acrescenta.
“A conjuntura atual foi marcada por um ciclo de mobilizações que sofreu a intervenção do contexto pandêmico e por isso estamos em um processo de recuperação das ruas, do espaço público e da mobilização. De modo mais próximo, enfrentamos o fim do governo de Piñera, que vai embora em completa impunidade depois de ter violado sistematicamente os direitos humanos. Estamos também às portas de uma alternância de poder que foi possível, entre outras coisas, por conta da força feminista, de mulheres e dissidências que tiveram uma potência majoritária para deter o avanço da extrema direita à qual fomos confrontadas no segundo turno. Por último, estamos no meio de um processo constituinte do qual somos parte, construindo uma alternativa dos povos, onde vamos articulando horizontes emancipadores que darão passo a um Chile plurinacional, pós-extrativista, com um protagonismo popular e feminista em seu coração”, disse Javiera Manzi, também militante da coordenadora e envolvida na constituinte.
Na Espanha, o chamado à greve começa a tomar os muros
2022 chega com um cronograma eleitoral carregado, mas decisivo no Brasil. “Aqui atravessamos a pandemia com um governo negacionista, que deixou o povo à sua própria sorte. Hoje temos mais de 600 mil mortxs por covid-19, recorde de desemprego, aumento da violência contra as mulheres, fome e miséria. Enfrentar essa realidade tem que passar diretamente pela derrota de Bolsonaro e de seu projeto misógino, racista e excludente”, disse a Las/12 Mônica Benicio, companheira de Marielle Franco, parlamentar feminista e lésbica. “Por isso, neste 8 de Março vamos gritar #forabolsonaro pelos quatro cantos do país!”, se entusiasma. Outra rede de coletivas no Brasil também convoca o 8M com a proposta “Maré feminista Fora Bolsonaro” e sustentam o mesmo argumento: no ano eleitoral, derrotar o atual presidente é a tarefa mais importante e a lista de razões é conhecida, mas é chocante lê-la novamente. Destacam que a Secretaria Especial das Mulheres, a cargo da antiabortista Damares Alves, foi transformada em um “centro de ódio”, orientado por políticas antigênero e fundamentalistas contra o aborto legal; ao mesmo tempo em que, no país, aumentou o assassinato de pessoas negras em suas comunidades, em seus trabalhos e nos supermercados “por causa do incentivo das declarações racistas presidenciais”.
No Uruguai, o Tecido Feminista, integrado por coletivas feministas, companheres de sindicatos, cooperativas de moradia, arte, comunicação, educação, vêm se reunindo em praças e fazendo diversas atividades de “preparação”. Chegaram ao consenso de fazer greve e caminhar até o mar: “Nossa greve é de trabalho produtivo e reprodutivo, nosso desejo é dispor de tempo para nós e entre nós. Este ano escolhemos enfatizar, aliás, que nossa luta é antiextrativista, porque nos preocupa o ecocídio e os múltiplos resíduos sobre nossos territórios, e porque sabemos que a vida se sustenta a na interdependência. Por isso, neste 8M, convocamos a caminhar até o mar e dizemos que ‘Somos água quando a realidade é pedra’”. A central operária PIT-CNT convocou a greve geral para o 8M o que abriu uma polêmica. O argumento é que é uma medida de força face ao referendo para revogar os 135 artigos da Lei de Urgente de Consideração (uma lei neoliberal promovida pelo atual governo e aprovada na pandemia) que terá lugar no dia 27 de março. Dizem no Tecido Feminista: “a convocatória do movimento sindical para realizar uma paralisação mista habilitou e reforçou os discursos que pretendem negar nossa autonomia e potência, despolitizar a greve e colocar-nos como um tema específico de uma agenda supostamente mais ampla”.
No Equador, enquanto isso, a primeira assembleia pelo 8M é hoje. O contexto é difícil: no último período as forças do movimento feminista se concentraram em uma lei que legalize o aborto em casos de estupro que seja “justa e reparadora”. “Embora se tenha aprovado a lei, não cumpre com o que o movimento buscava, são estabelecidos prazos de 12 semanas para adultas e excepcionalmente 18 semanas para meninas, adolescentes e mulheres da zona rural. Além disso, o presidente ainda pode vetá-la”, assinala Ana María Morales, da coletiva Amazonas.
Diagnóstico da crise
Na Itália, o NonUnaDiMeno elaborou uma carta aberta de convocatória que fecha com o slogan “A greve feminista e transfeminista é para todes”, com evocações que parecem homenagear Bell Hooks e sua aposta em um feminismo para todo o mundo. Os temas da moradia, gastos acumulados para a saúde, precarização do trabalho e violência sexual se entrelaçam. Disse Maia Pedullà, do NonUnaDiMeno de Gênova: “É uma greve contra a violência patriarcal em todas as suas formas, na qual uma das palavras chave é a ruptura do isolamento”. E acrescenta: “Este ano decidimos convocar os sindicatos de base, o que não era totalmente previsível, e é um sinal de relações políticas e reconhecimento acumulado. Mas há que ter em conta que estamos em uma situação de forte crise social, com pobreza e precariedade crescentes. Na Itália, a inflação está em seu nível mais alto desde 1996, e a crise energética se traduz no aumento nas faturas de eletricidade e de gás; além disso, sopram ventos de guerra da nada distante Ucrânia”.
O chamado à greve feminista na Itália
Os pontos urgentes que singularizam as reivindicações deste 8M destacam as demissões de trabalhadoras que tiveram que ficar em casa para cuidar de filhes e adultes idosos: “Essa é uma das cifras mais macroscópicas da tendência pandêmica, junto com o aumento da violência machista. Também reivindicamos os direitos das pessoas LGBTQIA+, que este ano viram como se rechaçava no Parlamento uma lei contra os crimes de ódio e que já estão há meses agitando as ruas do país”.
Na Women’s Strike Assembly da Inglaterra, planejam mobilização nacional com protestos em várias cidades com o slogan “Nos queremos vivas!”. Em Londres, em particular, a greve é chamada para denunciar “as violências policiais e estatais, e contra as trabalhadoras do sexo”.
Em Berlim, a coletiva Aliança de Feministas Internacionalistas levanta o slogan “Rompemos as fronteiras. Destruímos o fascismo”. Elas nos contam: “Em Berlim sempre temos duas marchas no 8M: uma que é maior, na qual também vão partidos e sindicatos, mista, com demandas explicitamente feministas, e outra protagonizada por coletivas de imigrantes e de mulheres racializadas, que tomam a liderança em uma aposta de caráter internacionalista, anticapitalista, anticolonial e antiracista. Organizamos marchas para mulheres, lésbicas, travestis, trans e não bináries no 8M e no 25N, focando no racismo e nos crimes cometidos nas fonteiras, as exportações de armas da Alemanha e as continuidades coloniais nessas crueldades. Por isso, para nós a solidariedade e resistência internacionalista é chave”.
Cultivar o internacionalismo
Na Espanha, a ativista feminista Justa Montero explica: “O contexto no qual está sendo gestado este ano o 8M aqui consiste em pôr em evidência os efeitos da crise sanitária sobreposta à crise sistêmica que já vinha marcando nossas vidas: falamos de precariedade em todas as esferas da vida, econômica, ambiental, e a precariedade das vidas marcadas pelas violências, as brutais violências machistas e a violência social que supõe a despossessão de recursos, de moradia, de direitos, de serviços, de terra, de dignidade”. Para Montero, “os discursos e práticas antifeministas da direita e da extrema direita, tão presentes na política “espanhola” buscam criminalizar este potente movimento feminista. Como todos os anos, muitos lemas estão sendo levantados, mas destacaria um, que é o da convocatória da manifestação de Madri: “Direitos para todas, todos os dias. Aqui estamos, as feministas”. Onde estão as feministas? “Impugnando o sistema e tratando de abrir alternativas para fazer que nossas vidas sejam vidas dignas”, acrescenta. Em jornadas recentes sobre sindicalismo feminista em Madri, intituladas “Nos organizarmos é começar a vencer” compartilharam os aprendizados das greves feministas junto com as lutas na pandemia, protagonizadas pelas trabalhadoras domésticas, colhedoras de morango, imigrantes, professoras, trabalhadoras do sexo, trabalhadoras da saúde e inquilinas ameaçadas de despejo. Rafaela Pimentel, da Territórios Domésticos, fez uma síntese pensando em como reativar: “precisamos de feminismos que sejam reivindicativos e combativos, mas também criativos. O exercício de recontar a greve volta a nos comover com o que fizemos e nos permite pensar até onde queremos ir”. O 8M está em processo.