Rita Mendes e Cesar Fernandes,
São Paulo e Brasília, 8 de setembro de 2020
Os transtornos mentais, assim como a opressão sobre as mulheres, foram instrumentalizados no capitalismo, servindo como um marcador para a exclusão e a solidão de milhares de homens e mulheres. Embora os transtornos mentais existam há milênios, sendo anteriores ao modo de produção capitalista, é no capitalismo que eles se aprofundam e, de certa forma, mudam de qualidade ao ligarem-se a alienação e reificação próprias da sociedade burguesa.
A separação dos produtores diretos de seus instrumentos de trabalho, da terra e dos seus produtos, ressignificou o trabalho como mercadoria, espoliando os saberes ancestrais de camponeses e camponesas, travando a atividade criativa de artesões e cindindo a subjetividade da classe trabalhadora com a disciplina do trabalho assalariado que cria riquezas e serviços lucrativos, e a vida precarizada sem direitos.
Produzindo e reproduzindo em um mercado anárquico e assim incompreensível, onde os produtos de seus trabalhos lhes são negados, e as relações sociais estabelecidas aparecem como coisas imutáveis, os e as trabalhadoras – dentro e fora do mercado de trabalho – sofrem o poder despótico da reprodução do capital e da consumação do lucro como poderes externos e onipresentes.
A característica de externalidade do trabalho social produtivo e reprodutivo no capitalismo, a ausência de fruição de seus produtos pelos trabalhadores e trabalhadoras, a imposição de ordem natural de relações históricas, a vida cotidiana cada vez mais precarizada, e a cultura de massas vazia de conteúdos significados bombardeiam incessantemente as subjetividades.
Os efeitos do colonialismo e do racismo, portanto, se expressam explicitamente nas produções das subjetividades. A perda da capacidade de autodeterminação é um destes efeitos, introjetada na consciência e insconsciência daquelas que sofrem com o jugo colonizador e seus efeitos. A produção de um sujeito interditado das condições do pleno desenvolvimento do gênero humano não se inscreve apenas na ordem do individual, portanto a resposta a esse processo também é necessariamente social, coletiva.
A relação dessa situação esboçada acima com o sofrimento mental patológico deve ser considerada, numa perspectiva marxista revolucionária de transformação social, como questões objetivas e que devem ser articuladas dentro de um programa que aponte para o socialismo.
Ainda há o fator biológico, componente fundamental dos transtornos mentais, o que explica que algumas pessoas desenvolvem sofrimento mental patológico e outras não, embora estejam sujeitas a condições objetivas semelhantes.
Quanto a isso, hoje sabemos que condições propícias de desenvolvimento humano, com saúde, educação, moradia, saneamento básico, alimentação e apoio social amplo por toda a vida podem inibir ou minorar expressões precarizantes de transtornos mentais inscritos na biologia individual.
Como atravessar um período de sofrimento mental agudo?
Vivemos numa sociedade que desvaloriza o autocuidado, onde a ideologia dominante do produtivismo e da felicidade eterna nos aprisiona e nos impede de assumirmos nossos limites. Quando adoecemos mentalmente, precisamos nos fortalecer para não deixar a doença ser soberana, assumindo nosso lugar de sujeitos no doloroso processo de cura de um transtorno mental crônico ou passageiro.
Com o intuito de compartilhar experiências, aqui vão algumas recomendações que podem ser úteis para uma melhor qualidade de vida durante a crise de saúde mental:
- procure um especialista em saúde mental ao sentir os primeiros sintomas que possam ser identificados como de um sofrimento mental que prejudique sua vida, ou seja, patológico;
- procure seguir as orientações médicas e farmacêuticas com relação ao uso dos medicamentos. Esteja atento aos efeitos que eles produzem em você e dialogue com sua equipe de saúde se você sentir que os efeitos são negativos. Eles poderão construir com você um processo de ajuste que poderá te fazer sentir melhor.
- relate o que você está sentindo para alguém que você confia (família e/ou amigos, professores, colegas de trabalho) e como você precisa de um tempo para se afastar dos afazes diários, do trabalho ou das tarefas militantes;
- geralmente a psicoterapia ajuda na recuperação ou superação de diversos quadros de transtornos mentais, fortalecendo a resposta reparadora da medicação. Há vários locais com terapia gratuita ou acessível, tente se dispor a fazer;
- procure estabelecer uma rotina que contemple algumas atividades e também descanso e recolhimento. O sofrimento mental não pode ser ignorado, portanto precisa de espaço para se manifestar. Por outro lado, não pode ser soberano ao ponto de abarcar todo o seu dia;
- o sofrimento mental incide sobre o pensamento e os sentidos, portanto procure separar o que é da doença e o que é realidade. Por exemplo, na depressão, pensamentos autodepreciativos são comuns. O ideal seria identificar estes pensamentos como “coisa da depressão”, sem dar continuidade, credibilidade ou hipervalor a eles.
- todo o sofrimento mental patológico, por mais longo e profundo que seja, um dia vai passar. Ao longo da vida, é possível aprender a lidar com ele, com mais autonomia e leveza. Lembre-se disso.
Algumas notas programáticas sobre saúde mental
A precariedade dos cuidados públicos em saúde mental no Brasil produz um quadro de desassistência, em especial, à classe que vive do trabalho. Em um cenário de avanço neoliberal, a precarização de políticas públicas em saúde mental - que deveriam ser acessíveis e de qualidades - serve exclusivamente para aprofundar a subjugação da classe trabalhadora ao capital.
É fundamental trazer para o centro do debate os sujeitos que vivem e convivem com o sofrimento psíquico. Usuárias(os) dos serviços de saúde mental e suas famílias. É preciso levar em conta que a estrutura precária de assistência em saúde condena milhares de mulheres ao abandono de seus empregos e projetos de vida, para serem cuidadoras de familiares acometidos de transtornos mentais. Além disso, não é possível avançar em uma reforma do sistema de saúde sem trazer as ousadas e criativas experiências de atenção psicossocial protagonizadas por trabalhadoras(es) em saúde, muitas vezes em condições precarizadas de trabalho.
Precisamos re-colocar a discussão dos cuidados com a saúde mental na esfera da saúde pública.
Quando Luíza Erundina foi prefeita de São Paulo, foi implementado pela primeira vez na cidade um projeto de cuidados em saúde mental, que consistia de Hospitais Dia, onde o paciente ficava 8 horas por dia, aos cuidados de uma equipe multidisciplinar; e também foram implantados Centros de Convivência em centros esportivos, onde os pacientes com alta iam frequentar oficinas junto a comunidade, para sua reinserção social.
À luz desta tão importante experiência de gestão da cidade, é fundamental construir um programa que recupere as bases da Reforma Psiquiátrica e defenda uma Rede de Atenção Psicossocial com gestão 100% pública. Precisamos de mais Centros de Atenção Psicossocial capilarizados na extensão da cidade, 24 horas, com equipe bem formada e tecnicamente capacitada. Há a necessidade de estruturarmos políticas públicas para pessoas com transtornos mentais mais graves e incapacitantes, como a esquizofrenia. Também é fundamental recuperar os Centros de convivência, construir mais leitos psiquiátricos em hospitais gerais (e não novos hospitais psiquiátricos) e fazer avançar uma política de trabalho, renda e reabilitação psicossocial que subvertam a ordem capitalista. Defender o SUS, portanto, é tarefa imprescindível e urgente.
A contribuição que podemos dar - de nos assumir pessoas que sofrem como todas as outras, mas em níveis e dimensões diferentes, e levar este debate nos locais onde vivemos e atuamos - é de fundamental importância para desarmar esteriótipos e fortalecer aqueles e aquelas que sofrem mentalmente. Devemos fazer avançar a luta antimanicomial, em sua radicalidade anticapitalista, porque ela não liberta apenas nós – os que sofremos, mas toda a sociedade.
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Rita Mendes e Cesar Fernandes são militantes da Insurgência.