[O contexto atual, em que os movimentos estruturados depois dos anos 1980 mostram seus limites históricos, demanda que voltemos para a experiência dos movimentos sociais que se confrontaram com a ditadura militar nos anos 1970. Antes das primeiras greves operárias, importantes mobilizações envolviam outros atores. Foi somente depois da greve da categoria, puxada pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema em 1979, da formação do PT em 1980 e de uma nova greve geral da categoria neste mesmo ano que os movimentos começaram a convergir com as mobilizações operárias da região.
Os mais importantes destes movimentos que ganharam destaque político foram aqueles contra a carestia, conduzidos por mulheres da periferia. Com o movimento estudantil universitário, o movimento democrático pela anistia e o trabalho clandestino das oposições sindicais, eles produziram o ambiente de uma nova cultura de esquerda, plural e crítica do vanguardismo armado castrista e maoista da virada dos anos 1960 para os anos 1970 - embora o PCdoB tivesse um importante papel no movimento contra a carestia. Revistar estas experiências ajuda as novas gerações a refletirem sobre a atuação em condições muito adversas. JC.]
Volta da carestia convida a pensar em 1978
Inflação média dos alimentos já é mais de 15% – e trabalhador precisa ralar 115 horas para comprar uma cesta básica. País viveu momento semelhante na ditadura. Movimento de mulheres periféricas da época inspira a lutar contra a panela vazia
“Como pode um povo vivo viver nessa carestia? Como poderei viver dia e noite, noite e dia, com a barriga vazia?”.
Entoando essa paródia de uma cantiga popular, no dia 27 de agosto de 1978 mais de 20 mil mulheres periféricas de São Paulo ocuparam a Praça da Sé para protestar contra a carestia. Muitas delas, acompanhadas de crianças pequenas. “A mulherada tava toda na rua, enfrentando polícia, cachorro…”, lembra Ana Maria do Carmo, mais conhecida como Ana Dias.
Moradora do Jardim Nakamura na época, ela foi uma das principais articuladoras do Movimento do Custo de Vida (MCV), também chamado de Movimento Contra Carestia, que surgiu em salões de paróquias católicas nas periferias da zona Sul de São Paulo para ganhar as ruas, escolas e fábricas. O grupo coletou mais de 1,3 milhão de assinaturas em um abaixo-assinado entregue ao Presidente da República, pedindo congelamento de preços dos alimentos. Diante da inflação que atingia suas famílias, as donas de casa das margens de São Paulo foram pra cima da ditadura militar.
Detalhe da capa do livro “Como pode um povo vivo viver nessa carestia”: Concentração do Movimento Contra a Carestia na Praça da Sé, em 1978
“[A carestia] é uma coisa que a gente tá percebendo de novo neste momento, principalmente pra quem é assalariado ou está desempregado”, nota Ana Dias, hoje com 78 anos. Ela, que atualmente vive no interior paulista, defende uma nova mobilização diante do atual cenário. “A gente precisaria fazer uma agitação, nesse momento, com esse governo que tamo vivendo”.
Adélia Prates, de 74 anos, ficou assustada quando viu um pacote de arroz por mais de R$ 20 e um litro de óleo por quase R$ 10. “A situação de hoje tem semelhança [com o passado], mas é uma vergonha porque o Brasil é um país rico”, aponta Adélia, que mora no Grajaú (Extremo Sul de São Paulo) e participou do movimento nos anos 1970. Para ela, o preço alto tem impacto direto no enfrentamento da pandemia. “Se uma pessoa com covid-19 tá se alimentando bem, é até possível que ela se recupere. Mas e uma pessoa que se alimenta mal? A covid-19 e a fome estão disputando a miséria”, diz.
A sacola vazia na volta da feira não é apenas uma sensação, mas uma realidade medida pelos números. O que está por trás disso?
A carestia em números
A economista Patrícia Costa explica que o custo de vida é medido pelos gastos de uma família. “Existe uma diferença como gasta uma família de baixa renda em comparação com a de alta renda. A baixa renda tem um custo de alimentação muito grande. Nos últimos anos, vem crescendo o gasto com habitação porque vemos um aumento no preço de serviços públicos, como água, luz, gás”, explica ela, que é supervisora de pesquisas de preços do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).
E a alimentação pesou mais. Em 2020, a inflação oficial medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) ficou em 4,5%, enquanto o preço dos alimentos acumulou alta de 15,5%. O óleo de soja subiu 104%; o feijão, 81,4%; o arroz, 75,3%; e a batata inglesa, 67,3%. Já o gás de cozinha subiu quase 22% no acumulado do ano, enquanto a gasolina teve alta de 34,8% só nos primeiros meses de 2021.
Em janeiro deste ano, uma família da cidade de São Paulo precisaria desembolsar R$ 631 para comprar todos os itens da cesta básica – isso é mais da metade de um salário mínimo, que passou para R$ 1.100. Pra se ter uma ideia, uma pessoa que ganha esse salário e tem uma jornada de 220 horas por mês precisaria trabalhar 115 horas e 08 minutos pra gerar a renda necessária para comprar uma cesta básica. Esse é o menor poder de compra de um salário mínimo desde 2005.
Patrícia explica que isso é efeito direto da política econômica dos últimos anos. Com o dólar a R$ 5,50, os produtores são estimulados a exportar carne e itens agrícolas para outros países, diminuindo a oferta dentro do Brasil. Além disso, desde 2014 o País tem desmantelado o estoque público de grãos, como arroz, milho e soja. Em uma safra com muitas chuvas ou seca, ter esses itens estocados permitia ao governo disponibilizar o que tava armazenado e regular os preços – controlando a disparada nas gôndolas.
“Em um mês, você vai no mercado com R$ 10 e você compra meio quilo de carne. No outro mês, você compra 200 gramas de carne por esse valor. Aí você precisa escolher o que vai comer. Ou se vai comer ou pagar a conta de luz ou comprar botijão de gás”, observa Patrícia.
Outro ponto é a regulação dos preços de combustível pela Petrobras, que desde o governo de Michel Temer segue o mercado internacional – influenciando no preço da gasolina e do gás de cozinha. Clique aqui para ler a nota técnica do Dieese.
A pandemia de coronavírus aprofundou uma situação que já era dramática, colocando mais pessoas na vulnerabilidade. E a parcela da população mais impactada tem raça e gênero: pessoas negras, em especial mulheres.
O sociólogo Mario Rogerio, que é diretor de pesquisa do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), observa que o desemprego no País chegou a 14,1% em novembro de 2020, mas entre pretos e pardos o índice ultrapassou os 16,5% enquanto chegou a 11,5% dos brancos.
Por isso, o custo de vida acaba pesando mais para mulheres pretas, muitas vezes chefes de família. Em 2019, o salário médio dela foi de R$ 1.658,04 por mês, enquanto de um homem branco foi de R$ 3.567. Isso é efeito do racismo. Com menos escolaridade e menor garantia de direitos fundamentais, a população negra acaba ocupando postos de trabalho menos qualificados, muitas vezes na informalidade, e fica mais suscetível em tempos de crise.
“O mercado não pensou no lugar para essa pessoa, que vai passar a vida sem emprego de qualidade. Então, a gente precisa ter uma política de renda mínima focada nessa pessoa”, defende Mario Rogerio.
Mulheres em marcha
“As mães da periferia de São Paulo, que mais sentem a realidade da vida, vêm pedir aos senhores que tomem providência para baixar o custo de vida, porque o Brasil é uma terra tão rica e as mães choram na hora de por a panela no fogo pra fazer a comida pros filhos”.
Foi assim que moradoras do Jardim Nakamura iniciaram um documento que daria origem ao Movimento Contra a Carestia. Na mesma época, elas lançaram um abaixo assinado contra os preços altos – estratégia similar para conseguir água encanada ou luz elétrica, por exemplo.
Detalhe do livro “Como pode um povo vivo viver nessa carestia”
Segundo monografia do historiador Vinicius Faustino Ferreira da Silva, realizada em 2018, além dos preços congelados, o documento reivindicava a criação de centrais de abastecimentos nos bairros da periferia da cidade e aumento real do salário mínimo.
Naquele tempo, o Brasil vivia o chamado “milagre econômico”, com crescimento anual de 11% ao ano entre 1968 e 1973. Porém, a riqueza não foi distribuída, aumentando a desigualdade social e piorando as condições de vida.
Na época, Ana Dias trabalhava em casa e se reunia na igreja com outras mulheres como ela. Lá, falavam das dificuldades cotidianas, como falta de saneamento básico, asfalto, escola e as tretas com dinheiro. As conversas ganham corpo.
“A mulher fechou a porta de casa e foi participar na rua”, lembra Ana Dias. “A mulher trazia abaixo assinado pra casa, ia pra rua, levava pro marido, pros jovens. Era uma corrente, nada separado. Cada um queria fazer parte, tá junto, ir pra rua, ver resultado”.
Autor do livro “Como pode um povo vivo viver nesta carestia”, o pesquisador Thiago Nunes Monteiro aponta que a Igreja Católica foi fundamental para fortalecer o movimento, seja cedendo o espaço para encontros e até mesmo em infraestrutura, como papel e mimeógrafos que eram utilizados para imprimir panfletos com linguagem de fácil compreensão pela população. Depois, grupos de esquerda, sindicatos e universitários se juntaram ao movimento.
Já Adélia Prates se recorda de bloqueios que ela e outras mulheres faziam em frente a açougues em boicote ao preço da carne. “Por que nasceu esse movimento? Foi da luta da panela vazia. Hoje o pessoal bate panela e não tem nada a ver”, diz ela.
Nos anos seguintes, o grupo do qual Adélia fazia parte conseguiu se articular com moradoras de municípios como Carapicuíba, Diadema e São Bernardo do Campo para o fornecimento de leite pelo governo – todo mês, um contêiner com 12 mil litros de leite vendia a bebida a um preço mais barato em bairros periféricos. No Grajaú, as garrafinhas tinham o símbolo do movimento de mulheres.
Com a ascensão em todo País, o Movimento Contra a Carestia chamou atenção da imprensa, de políticos e da própria ditadura, que tentou desacreditar as mulheres. Porém, segundo Faustino, em agosto de 1978, o economista Julian Chacel reconheceu que os dados de um estudo encomendado a ele pelo governo de Emílio Médici estavam errados: em 1973, a inflação havia sido de 24,8%, e não 14% como anunciado pelo governo.
A repressão continuou. Em 30 de outubro de 1979, mais de um ano após a marcha histórica na Praça da Sé, o companheiro de Ana Dias foi assassinado pela Polícia Militar: o operário Santo Dias foi morto pelas costas enquanto participava de um piquete em frente a uma fábrica. No início dos anos 1980, o movimento se desarticulou enquanto outras frentes de luta ganhavam força.
De volta a 2021, Ana Dias não percebe um consenso nos movimentos em relação ao custo de vida, mas mantém a esperança. “A gente sabe que a luta nunca acaba. Sempre tem uma brasa acesa. De repente, estoura alguma coisa lá. Sempre tem pessoas com interesse em fazer alguma coisa”, acredita. Para Adélia, é preciso rearticular. “Eu acho que, através do celular, a gente tinha fazer essa campanha, ir até onde está mais barato”, diz ela. “Minhas pernas não permitem andar muito, mas não podem calar minha voz”.
Como a mobilização das mulheres contra a carestia desmoralizou os militares
Neste dia, em 1978, o Movimento do Custo de Vida foi a Brasília para entregar um abaixo-assinado com 1,3 milhão de signatários após realizarem a maior mobilização popular no país desde o final da década de 60. Hoje, 43 anos depois, enfrentamos mais uma vez o problema da carestia, com o preço de uma cesta básica valendo o mesmo que um salário mínimo.
Como comenta Amelinha Teles, militante do PCB que atuava no MCV e nos Clubes de Mães, esse foi “o movimento que abriu as portas para a mobilização democrático-popular no país”.
Em 27 de agosto de 1978, o centro de São Paulo foi ocupado por mais de 20 mil pessoas em um protesto contra a carestia. A manifestação, concentrada na Praça da Sé, foi uma assembleia pública convocada pelo Movimento do Custo de Vida (MCV) para apresentar as demandas do movimento, resultado massivo de sua campanha de coleta de assinaturas. Em um ano, o movimento havia levantado um abaixo-assinado com mais de 1,3 milhão de signatários. A carta apresentava três demandas: o congelamento dos preços de produtos de necessidade básica, o aumento do salário mínimo e abono salarial imediato, e sem desconto, para todas as categorias profissionais.
O ponto de partida era um problema tão simples quanto imediato: o problema da “panela vazia”. Com o prolongamento da crise econômica, a população enfrentava o descontrole sobre os preços dos alimentos e de outros produtos de necessidade básica. Como diziam os panfletos do movimento, fazendo graça com as imagens de “progresso” vendidas pelo governo militar, parecia que os preços dos alimentos subiam de elevador, enquanto o salário dos trabalhadores subia pelas escadas.
Duas semanas depois da manifestação na Praça da Sé, em 12 de setembro, há exatos 43 anos, o MCV enviou sua comissão até Brasília para entregar o abaixo-assinado pessoalmente ao “presidente” Ernesto Geisel. Foram 21 pessoas com 21 pacotes de folhas, cada um deles pesando 7 quilos. Geisel, é claro, não recebeu o movimento, mas preparou “uma das maiores operações de segurança já vistas na entrada do Palácio do Planalto”, segundo notícia da Folha de São Paulo. A comissão recusou uma promessa de reunião com um assessor da presidência no dia seguinte, entregou as assinaturas ao Serviço de Protocolo do Palácio e não permitiu que os soldados tocassem nos pacotes antes de serem protocolados. Ainda, de despedida, num gesto de desobediência, estenderam a faixa do movimento na rampa do Palácio para uma foto de registro.
O MCV nasceu em 1973 nos Clubes de Mães do Jardim Ângela, uma das regiões mais pobres da cidade. Até 1979 seria um movimento protagonizado, sobretudo, por mulheres trabalhadoras das periferias urbanas. Então se espalhou rapidamente, primeiro pelo cinturão periférico de São Paulo e, depois, em outras cidades por todo o país, o que só foi possível graças a um extenso trabalho de base e de articulação.
O ato de 78 foi, à época, a maior mobilização popular no país desde o final da década de 60. As grandes greves do ABC, dos operários metalúrgicos em São Paulo, começariam poucos meses depois, em boa medida sob influência e inspiração da iniciativa dessas mulheres. A manifestação de 27 de agosto significou um marco para a abertura política do país, e contribuiu de forma decisiva para o desgaste do regime militar. Como comenta Amelinha Teles, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que atuava no MCV e nos Clubes de Mães, esse foi “o movimento que abriu as portas para a mobilização democrático-popular no país”.
Hoje, 43 anos depois, enfrentamos mais uma vez o problema da carestia. O país tem 14,8 milhões de pessoas desempregadas, 19,3 milhões de pessoas passando fome, e o preço de uma cesta básica é quase o mesmo de um salário mínimo. A história desse movimento, contada em detalhes na pesquisa do historiador Thiago Monteiro, oferece lições importantes sobre como a classe trabalhadora pode se organizar para enfrentar o problema, além de jogar luz sobre o importante papel dos setores populares, em particular das mulheres periféricas, para derrubar a ditadura militar.
As raízes de um movimento
Os Clubes de Mães, de onde nasceu o movimento, eram espaços organizados em torno das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Neles, as mulheres das comunidades se reuniam para realizar oficinas de trabalho para geração de renda (de costura, crochê etc.), para participar de formações em temas como saúde e sexualidade, e para discutir os problemas de seus bairros.
Com o apoio de setores progressistas da Igreja católica, as CEBs se converteram em um espaço crucial para a atuação política do povo pobre durante a ditadura. Incontáveis movimentos nasceram dessas comunidades, reivindicando creches, escolas, moradia, água potável, transporte público, postos de saúde, pavimentação e outras demandas populares. O papel das mulheres aí foi central.
Ao longo da década de 70, as CEBs e os Clubes de Mães expandiram suas ações para além de demandas locais. A região do Jardim Ângela, onde nasceu o MCV, contava com pelo menos 17 CEBs, que se encontravam em assembleias mensais. Nesses espaços de articulação, recebiam formação política, com apoio de outros setores da esquerda, e discutiam tanto os desafios de cada localidade como a convergência mais ampla desses desafios. Desse processo de elevação da consciência, sentiu-se a necessidade também de planejar ações coordenadas em escalas maiores, de forma que o trabalho local acumulasse forças para um projeto amplo e estrutural de transformação, cujo caráter socialista ia ficando cada vez mais evidente. Nesse sentido, o enfrentamento ao regime ditatorial comandado pelos militares tornava-se incontornável.
A percepção da natureza estrutural dos problemas locais colocava também na pauta a necessidade de conexões com comunidades de outras periferias, assim como com as lutas sindicais e estudantis. A articulação entre essas lutas se revelou crucial para o crescimento do MCV. Foi o conjunto dessas experiências que forneceu um acúmulo de conhecimento, coletivamente absorvido e mobilizado, sobre formas de organização popular, em particular a organização de movimentos sociais, e sobre táticas e estratégias de luta em um contexto de repressão e perseguição política.
As lutas ligadas às CEBs puderam crescer nesse contexto, em grande parte, pela proteção da Igreja, mas também como fruto da mobilização constante nos bairros, com realização de atividades dos mais diversos tipos na vida comunitária. Além das suas reuniões e formações, organizavam mutirões, festas, celebrações religiosas com conteúdo político, cineclubes, peças teatrais, ofereciam serviços como o de enfermagem, cursos de alfabetização, assim como ações de agitação e propaganda. Vanda Gama, uma militante das CEBs do Jardim Ângela (na época do MCV, ainda uma adolescente), chegou a relatar: “Eu não lembro de um dia que eu tivesse o dia sem ter o que fazer. Naquela época, a gente tinha sempre o que fazer”.
Essa mobilização constante, enraizada no território, formou a base do que viria a ser o MCV. Se em 1978 o movimento conseguiu coletar 1,3 milhão de assinaturas, isso só foi possível graças à formação dessa teia de alianças e acúmulo de aprendizado coletivo dos anos anteriores, combinando trabalho de base local e a articulação coordenada entre diversas comunidades.
O movimento em ação
Aação que inaugurou o movimento em 1973 foi uma pesquisa sobre o aumento de preços. A ideia partiu do Clube de Mães do Jardim Nakamura, no Jardim Ângela, e foi adotada por outros Clubes da região. Identificaram uma média de aumento de 120% nos preços no período de um ano, enquanto o salário mínimo só tinha aumentado 16%. Perceberam também que o aumento nos preços era maior na periferia do que no centro da cidade: enquanto o preço do feijão aumentou 191% na periferia, por exemplo, ele subiu 55% nas regiões centrais.
As informações recolhidas foram redigidas em uma carta destinada às autoridades políticas, de vereadores à presidência, assinada como “Mães da periferia de São Paulo”, na qual pediam uma resolução para a carestia da vida e reivindicavam o aumento do salário mínimo. Foi a primeira de uma série de cartas e abaixo-assinados enviados para as autoridades – mas as ações do movimento foram muito além da redação de cartas.
Uma marca da prática social nas CEBs foi a solidariedade e ajuda mútua entre as suas participantes, sendo frequentes os mutirões para a construção de casas e espaços comunitários. Tratava-se, em primeiro lugar, de uma questão de necessidade. As condições de habitação eram precárias, os bairros isolados da cidade, com pouca ou nenhuma infraestrutura. Poucas das suas vias principais eram asfaltadas e só nelas era possível encontrar alguma linha de transporte público. A falta de serviços públicos e a distância dos centros comerciais não só tornava a vida na periferia mais dura, como também tornava o custo de vida ainda mais caro do que no centro, como o próprio movimento demonstrou na sua primeira pesquisa de preços.
Da mesma forma que as comunidades se mobilizavam em mutirões para sanar ou minimizar seus problemas com habitação, essa realidade fez emergir outra prática do movimento: os mutirões de compras comunitárias, com viagens ao centro da cidade para fazer compras no atacado para um grande número de famílias. Mais que uma economia nos gastos, o movimento organizava a comunidade, fomentava a solidariedade entre as famílias e abria espaços de conscientização sobre o problema da carestia.
O mesmo espírito de solidariedade era fomentado através de atividades nos bairros, de festas a momentos de formação política. O movimento também investiu fortemente na construção de um imaginário popular sobre o custo de vida, produzindo cartilhas, charges, paródias de músicas, e até peças de teatro que circularam por várias cidades. Com todas essas ações, se colocou de forma ativa na disputa pública, contra os agentes do Estado, a respeito do problema da carestia.
A própria coleta de assinaturas não visava uma simples reivindicação unilateral para o Estado, mas servia, sobretudo, como meio de promoção do debate público. As assinaturas eram coletadas em mutirões no centro de São Paulo, mas também nos sindicatos, nas igrejas e nas casas das pessoas. O movimento formava equipes para passar de casa em casa, nos bairros, recolhendo assinaturas. Devido a essa capilaridade, mais de 95% das 1,3 milhão de assinaturas coletadas em 1978 vieram dos bairros periféricos de São Paulo. Era uma oportunidade não só para discutir o problema da carestia com a população, como também para convidar essas pessoas para novas atividades, fazendo crescer a base do movimento.
Simultâneo ao trabalho local, o MCV se fortaleceu por um esforço constante de articulação. Nos primeiros anos, os núcleos do movimento se expandiram para outras periferias de São Paulo e, em 1976, realizaram uma assembleia com mais de 4.000 pessoas no Colégio Santa Maria, na zona sul. Já em 1979, um Encontro Nacional do movimento reuniu representantes de Belém, Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Salvador, entre outras cidades.
O movimento ainda sustentou, ao longo da maior parte de sua trajetória, uma série de princípios de organização interna para firmar o seu foco no trabalho de base. As reuniões de coordenação do movimento eram formadas por representantes dos núcleos locais, dando preferência a moradores dos bairros onde o movimento atuava. Cada representante tinha a obrigação de prestar contas com sua base sobre as decisões tomadas na coordenação. Dos agentes externos, como militantes de partido ou do movimento estudantil, era exigido o uso de uma linguagem simples nas reuniões e na produção dos materiais. O objetivo era garantir a participação efetiva das bases nas decisões do movimento.
Isso começou a mudar a partir de 1979, quando o movimento conquistou maior visibilidade e as lideranças com mais instrução política investiram fortemente na sua participação nas reuniões de coordenação do movimento. Depois da manifestação na Praça da Sé, o país viveu uma aceleração das lutas sociais, primeiro com a emergência das grandes greves e, logo depois, com a mobilização pelas Diretas e pela Constituinte. O trabalho de base local, característico das CEBs, foi gradualmente substituído pela emergência da luta política e institucional. Como consequência de uma confluência de fatores, o MCV foi perdendo sua força, até se dissolver em 1982.
A politização de um problema “doméstico”
Longe de assumir uma postura dócil nas suas mobilizações, o movimento não nutria falsas esperanças em uma colaboração por parte do regime militar. As autoridades foram chamadas para a manifestação de 1978 na Praça da Sé. Era evidente que não iam comparecer. Ao contrário, a manifestação foi reprimida pela polícia militar. Sem se abalar ou deixar-se surpreender, o movimento logo preparou uma comissão para levar pessoalmente, até Brasília, a carta com as folhas de assinatura.
As ações do movimento tiveram repercussão internacional e constrangeram os militares, que não puderam mais sustentar sua versão dos fatos. Ao longo da década de 70, os militares atribuíram o problema da carestia à ganância dos comerciantes, se eximindo da responsabilidade sobre a grave crise econômica que o país enfrentava. Mais que isso, o governo federal fazia campanhas publicitárias que jogavam o problema para as famílias, em particular para as mulheres. Uma propaganda oficial da campanha “Diga não à inflação”, de 1973, dizia que “mulher fica mais bonita quando pechincha e faz beicinho”. Cabia às mulheres usar seu “charme” feminino para negociar uma redução dos preços com os comerciantes.
As mães que se mobilizaram através do MCV inverteram a lógica cínica e machista dos militares, politizando um tema que era tratado como privado e familiar. O problema do preço dos alimentos, sentido no interior de cada núcleo familiar, passou a ser tratado como uma questão pública, no campo da economia política e da macroeconomia, que, portanto, deveria ser tratada politicamente, com intervenção pública adequada no âmbito federal.
A trajetória do movimento demonstra a força da mobilização. A iniciativa que partiu de um Clube de Mães de um bairro periférico de São Paulo, em menos de uma década, ganhou escala nacional e conseguiu levar mais de 20.000 pessoas às ruas, em um tempo de silenciamento, dura repressão e despolitização do espaço público. Mais que isso, o movimento formou uma base sólida nos bairros em que atuava.
Com todas as diferenças entre a nossa época e a do MCV, ele ainda nos ajuda a pensar estratégias para a mobilização popular no presente. Em primeiro lugar, suas mobilizações foram sustentadas por um extenso trabalho de base. Isso não se expressou simplesmente em ações de agitação e propaganda, mas em atividades constantes de todo tipo nos bairros. É essa constância e diversidade de ações que permitiu, ao longo dos anos, que a base do movimento formasse os laços de confiança e solidariedade necessários para a mobilização. Em segundo lugar, esse trabalho se fortalecia pela ação coordenada das comunidades. A articulação era feita de baixo para cima, sem um abismo hierárquico entre quem se mobilizava nos bairros e quem tomava as decisões gerais do movimento. A participação democrática no interior do movimento, garantida pelas suas próprias regras, fortalecia suas iniciativas locais, cuja capilaridade tornava possível ações coordenadas em escalas maiores.
Por fim, a história do movimento demonstra a centralidade do problema do aumento do custo de vida, que voltamos a enfrentar, e sua força como demanda popular aglutinadora. Esse não é um problema secundário, entre outros tantos. Por ser um problema de caráter estrutural e praticamente universal, afetando de maneira generalizada a vida material da classe trabalhadora, a carestia pode se tornar uma importante chave de mobilização de massas das camadas da população que vivem, cada vez mais precariamente, do próprio trabalho.
As demandas do MCV não foram atendidas, mas suas ações tiveram enormes repercussões. Foi esse movimento que constrangeu os militares de forma decisiva, marcando o início da abertura democrática no país, e inspirou a formação de novos movimentos e processos de mobilização popular. Foi por meio desse movimento que um número massivo de trabalhadores das periferias das grandes cidades, principalmente mulheres mães de família, puderam impor sua voz e afirmar sua dignidade, mostrando que se cresce em consciência quando se luta e se organiza.
Pablo Pamplona é militante, doutorando em Psicologia Social pela USP e membro do Centro de Memória das Lutas Populares Ana Dias.