Dos mártires da Ilha das Serpentes aos aviões abatidos pelo misterioso "fantasma de Kiev", algumas das notícias mais partilhadas nas redes não aguentam o escrutínio e trazem mais propaganda do que esclarecimento.
Ishmael N. Daro, The Nation / Esquerda.net, 6 de março de 2022
À medida que grande parte do mundo se mobiliza em apoio aos ucranianos que defendem o seu país contra a invasão russa, as principais fontes de informação e os meios de comunicação social nos Estados Unidos e noutros locais têm estado mergulhados em contos de heroísmo ucraniano. A defesa ucraniana contra uma força muito maior tem sido de facto inspiradora, mas todos os conflitos incluem guerra de informação - de todos os lados. Algumas das imagens e histórias mais amplamente partilhadas da resistência ucraniana têm-se desmoronado sob escrutínio ou face a reportagens subsequentes. No entanto, muitos dos que são justamente céticos em relação às afirmações russas estão a demonstrar muito pouca cautela em relação a pronunciamentos do outro lado, levando a uma onda de cobertura mediática crédula que serve mais para propagandear do que esclarecer.
Nos primeiros dias da invasão, nenhuma história foi mais proeminente do que a dos soldados ucranianos que deram as suas vidas para defender uma pequena ilha(link is external) no Mar Negro de um navio de guerra russo. Quando solicitados pelo rádio a desarmar e a renderem-se, os soldados responderam com "navio de guerra russo, vai-te foder" - o seu suposto ato final de desafio antes do navio abrir fogo e matar todos os soldados na Ilha das Serpentes. O áudio do confronto, partilhado pelos oficiais ucranianos, recebeu uma cobertura quase universal e elogiosa nos meios de comunicação social ocidentais e tornou-se uma sensação viral online. Se o momento feito para a televisão pareceu quase demasiado bom para ser verdade, isso é porque em parte foi. Poucos dias após os soldados terem sido "postumamente" homenageados, os oficiais ucranianos revelaram que o grupo ainda estava vivo e sob custódia russa - tal como o Ministério da Defesa russo tinha dito(link is external) desde o início.
Ao enquadrar a guerra na Ucrânia, grande parte da comunicação social encontrou o seu principal protagonista no Presidente Volodymyr Zelensky, o comediante de 44 anos que se tornou estadista, liderando agora a defesa do seu país a partir da capital sitiada. Zelensky é de facto uma figura convincente, mas a cobertura mediática tem por vezes semelhanças com a veneração de heróis.
Quando Zelensky recusou uma oferta norte-americana para ser evacuado de Kiev, terá respondido: "Eu preciso de munições, não de boleia". Esta observação foi republicada em centenas de noticiários, e tornou-se um meme instantâneo nas redes sociais. Mas a fonte da citação é uma história da Associated Press de três parágrafos que apenas cita um "alto funcionário dos serviços secretos americanos" anónimo(link is external), bem como contas oficiais(link is external) do governo ucraniano nas redes sociais que ajudaram a difundi-la ainda mais. Como peça de mensagem política, é engenhosa - mas será notícia, ou propaganda?
Nada disto é para sugerir que as fontes ucranianas não são de confiança. Afinal, a maior mentira neste conflito tem sido a afirmação de Putin de que não estava a preparar uma invasão. Os oficiais russos também repetiram - apesar das provas claras(link is external) em contrário - que os seus militares não estão a atingir alvos civis na Ucrânia, e a emissora estatal RT continua a chamar à invasão uma "operação especial(link is external)", ao mesmo tempo que minimiza a escala do ataque. Mas após anos de avisos sobre os perigos da desinformação, muitos jornalistas ocidentais, figuras públicas e consumidores de notícias não estão a aplicar uniformemente o seu ceticismo.
Grande parte da cobertura da crise ucraniana tem sido também marcadamente livre de controvérsia em relação a potenciais milhões de refugiados que fogem para a segurança noutros países, ao direito dos civis de se envolverem na resistência armada, ou à ética dos boicotes(link is external) económicos e culturais contra Estados que violam os direitos humanos e o direito internacional. A apresentação desapaixonada dos ucranianos que fazem cocktails Molotov(link is external) para combater um exército ocupante contrasta fortemente com a forma como as guerras noutras partes do mundo são cobertas - um facto que não passou despercebido a muitos jornalistas racializados(link is external).
Este duplo padrão é ainda mais evidente na forma como jornalistas proeminentes têm discutido a guerra. O repórter da CBS Charlie D'Agata pediu desculpa depois de descrever a Ucrânia como "civilizada(link is external)" em comparação com lugares como o Iraque ou o Afeganistão, mas ele está longe de ser o único. Outros expressaram igualmente o choque de que uma guerra possa acontecer fora de um "país do terceiro mundo(link is external)" a pessoas que "são tão parecidas connosco(link is external)". Em resposta a tais exemplos, a Associação de Jornalistas Árabes e do Médio Oriente divulgou uma declaração condenando a retórica "orientalista e racista(link is external)" e exigindo que as redações aplicassem o mesmo critério a todas as vítimas da guerra.
À medida que a ofensiva russa se arrasta, é essencial obter a imagem mais precisa da situação no terreno, especialmente com a ameaça de um confronto nuclear que paira sobre todo o conflito. Reportagens credíveis e pressupostos incontestados sobre quem é e quem não é de confiança - ou quem merece e não merece a nossa compaixão - podem ter grandes consequências quando tanto está em jogo.
Ishmael N. Daro é o editor digital de Democracy Now! e um jornalista freelancer cujo trabalho se centra na política, tecnologia e cultura da Internet. Artigo publicado por The Nation.