Daniel Bensaid, Rede anticapitalista, novembro de 2017
IV - A crise inaugural de qual revolução?
Que crise revolucionária?
A crise que Lenin prepara é a crise de uma formação social capitalista; é uma crise de natureza política; só pode ser resolvida por um sujeito prático. Mas de que revolução é a crise?
Para além do reconhecimento da formação social que enfrenta, Lenin esforça-se, desde os seus primeiros escritos, por definir o nível de estruturação do sistema que combate. Já em O que são os amigos do povo, de 1894, sublinha «a interdependência de todos os povos na rede do mercado universal, de onde decorre o caráter internacional do capitalismo»(1). Situa-se aí o nível real de estruturação do sistema do qual a formação social russa é apenas uma parte.
Assim como a estratégia revolucionária nacional encontra na organização a sua consagração, a estratégia internacional encontra o seu instrumento e a sua consagração na organização internacional: «A Internacional consiste na aproximação, primeiro ideológica, e depois, chegado o momento, no campo da organização, das pessoas capazes. Desde o seu regresso à Rússia, em 1917, nas Teses de Abril, Lenin apresenta como uma das tarefas principais dos bolcheviques “renovar a Internacional”.
A existência de uma tal organização internacional não se reduz à soma das suas secções, ela tranforma-as qualitativamente e constitui-as em sujeito prático da revolução mundial.
Graças a esta conceção do caráter internacional do capitalismo na época do imperialismo e do nível internacional de estruturação dos sujeitos teórico e prático que lhe correspondem, Lenin vê a revolução como um processo mundial cujas crises revolucionárias representam apenas um momento, afetando «o elo mais fraco da cadeia». É por esta razão que, para ele, a revolução russa não tem vocação para se fechar nas suas fronteiras, mas constitui-se antes como a primeira testa de ponte da revolução.
Na época da «atualidade da revolução», toda a crise revolucionária é um momento da revolução mundial.
2. Para além da crise
A articulação histórica da crise revolucionária é sempre concebível sob a dupla perspetiva da continuidade ou da descontinuidade. Poder-se-ia dizer que ela cadencia uma descontinuidade na estrutura dos modos de produção, mas que permanece o canal de uma continuidade, na medida em que os elementos da formação social de origem se encontram reinvestidos, após a revolução, na formação social seguinte. Com toda a lógica, devemos confessar.
Da mesma maneira que vários modos de produção se sobrepõem na formação social capitalista, também na formação social socialista, que é tipicamente uma fase de transição, vários deles sobrepõem e se entrecruzam.
Lenin está especialmente consciente desta situação e dos problemas que dela resultam: «Não há dúvida de que um certo período de transição se situa entre o capitalismo e o comunismo. Ele deve forçosamente reunir as características ou particularidades próprias dessas duas estruturas económicas da sociedade. Este período transitório não pode deixar de ser uma fase de luta entre a agonia do capitalismo e o nascimento do comunismo ou, noutros termos, entre o capitalismo vencido, mas não aniquilado, e o comunismo já nascido, mas ainda débil»(3).
Na Doença infantil, Lenin insiste repetidamente nos ataques múltiplos e quotidianos que são feitos à ditadura do proletariado por toda a burguesia, que se reconstitui nos setores de pequenas produções e cuja resistência é «decuplicada por causa do seu derrube». Acrescenta ainda «que é mil vezes mais fácil vencer a grande burguesia centralizada do que vencer os milhões e milhões de pequenos patrões que pela sua atividade quotidiana, costumeira, invisível, esquiva, dissolvente, alcança os mesmos resultados que restauram a burguesia».
A luta entre o proletariado e a burguesia não está, pois, concluída pela crise revolucionária; o único critério que marca o sucesso da crise e dele faz um limiar histórico, é a conquista do poder político pelo proletariado e a manutenção de uma política no posto de comando.
Só a vitória da revolução à escala internacional pode assegurar definitivamente a vitória do proletariado.
A este propósito, deve sublinhar-se que o poder proletário pode deliberadamente dar o comando ao econômico e recair assim no terreno da burguesia. A política de Stalin ilustra-o: quem, comprometendo-se com a construção do socialismo num só país, tenha escolhido como objetivo prioritário a competição econômica num mundo cuja estrutura dominante continua a ser o imperialismo, incorre na necessidade vital de encontrar oportunidades e mercados, de restaurar o lucro e a rentabilidade para manter as capacidades internacionalmente concorrenciais da economia nacional. É restaurar os critérios econômicos da burguesia e tentar vencê-la no seu terreno em vez de aprofundar a revolução por uma luta sem trégua contra os ressurgimentos marginais da economia de mercado, contra a ideologia burguesa, durante todo o tempo em que a revolução não tiver internacionalmente triunfado.
Conclusão: a crise revolucionária como critério de periodização
1. Contínuo e descontínuo
A crise revolucionária aparece assim como o ponto nodal no processo internacional da luta de classes. Assim, a crise é inaugural de uma periodização segundo a conceção tradicional da história que os conceitos legados por Marx não permitem ultrapassar. Balibar refere que o conceito de periodização é o conceito da descontinuidade na continuidade, através do qual elas se clarificam e se explicam uma à outra, assim como para Bachelard o corpúsculo e a onda (o descontínuo e o contínuo) «são momentos diferentes da matematização da experiência», «regulando a onda a probabilidade da presença de corpúsculos». A situação revolucionária engendrada pelas contradições da formação social regula a probabilidade da crise revolucionária que introduz uma descontinuidade na continuidade e permite cadenciar o desenvolvimento das formações sociais.
2. Diacronia e sincronia
Greimas sublinha, no seu artigo sobre história e estrutura, a dificuldade de integrar a dimensão temporal
nas considerações relativas ao modo de existência das estruturas de significação; ele atribui-a à não-pertinência da dicotomia saussuriana da diacronia e da sincronia, sendo o eixo crónico logicamente anterior a esses dois aspetos complementares da temporalidade. Mas este eixo comum sobre o qual se corta a diacronia e a sincronia não é suficiente para os colocar em relação. Só a palavra, como ação repetitiva do sujeito sobre a língua (sincronia), mostra o caminho da sua transformação. Ela sugere uma solução possível sem a elaborar.
Bem como para a articulação entre contínuo e descontínuo, assim como para aquela entre sincronia e diacronia, toda a solução leva a uma mediação mal definida do sujeito. Assim, Gustave Guillaume deduz uma duração do evento universal por intermédio de um tempo operativo, o presente, que é o tempo do sujeito. O presente é, então, o ponto de sobreposição e fusão do passado e do futuro, «a imagem da operação através da qual, incessantemente, um pedaço de futuro se converte num pedaço de passado»(4). A crise revolucionária é assim, à sua maneira, o presente onde a dupla determinação da história se consume.
3. História e estrutura
Como observa Greimas, a duração só por si não parece suscetível de servir de ponte ligando a história à estrutura. Além disso, a epistemologia moderna revelou que o tempo age talvez mais por repetição do que por duração, que o agente da transformação é «a ação do ritmo sobre a estrutura».
Lenin procurou nesta via a solução prática para os problemas da crise revolucionária. O mérito advém-lhe de se ter apoiado na ordem do político, que Marx tinha indicado, para aí constituir o sujeito prático desta crise. O mérito também lhe é devido por ter compreendido a crise como fio acerado onde nada pode fazer ninho duravelmente, como o instante raro em que a prática se torna a verdade da teoria que ela antecipa, onde a classe trabalhadora joga por fim o seu papel histórico provisoriamente legado a um partido temporário. Finalmente, cabe-lhe o privilégio único de ter, em primeiro, feito história com o resultado da vontade consciente das pessoas. Marx tinha anunciado esta nova era em que as pessoas armadas com a teoria e a organização não se satisfazem mais com o papel a que foram submetidas, mas o prolongam e completam num projeto escolhido. Lenin inaugurou-a resolvendo vitoriosamente a crise de 1917.
No entanto, a imagem da crise colocada como uma navalha na qual se afia a verdade, sob a matéria compacta do aço, ilustra a função da crise sem sequer deixar entrever a sua natureza. Balibar dá o enunciado desse problema: «A inteligência da passagem de um modo de produção para outro não pode nunca aparecer como um hiato irracional entre dois períodos que estão submetidos ao funcionamento de uma estrutura. A transição não pode ser um momento, por mais breve que seja, de desestruturação. Ela própria é um movimento submetido a uma estrutura que é necessário descobrir»(5). Sob esta transição, Marx coloca como uma evidência a estrutura invariante da reprodução que não pode ser interrompida e que adquire uma forma particular em cada modo de produção. Assim, a transição não se pode reduzir a um «salto qualitativo»; ter distinguido no conceito de reprodução a reprodução das mercadorias que continua e a reprodução das relações sociais, condições de perpetuação do sistema (que são, precisamente, abolidas na crise), traz um elemento de solução sem permitir concluir. O desdobramento do conceito de reprodução não pode substituir a construção do conceito de passagem.
Ser a ruptura inaugural na ordem nova da qual é o portador o proletariado mundial não é suficiente para elaborar a teoria e as leis da crise revolucionária. No limiar deste problema se detém a noção leninista de crise revolucionária, no limiar mesmo do seu próprio conceito.
Tradução de Andrea Peniche e Paula Sequeiros
Notas:
1- Lenine, Œuvres, tomo I, Éditions de Moscou, p. 138.
2- Lenine, Op. Cit., tomo VIII, p. 511.
3- Lenine, Op. Cit., tomo XXXI, pp. 96-97.
4- Gustave Guillaume, Langage et science du langage, p. 199.
5- Louis Althusser, Étienne Balibar, Roger Establet (1965), Lire le capital, tomo II, Éditions Maspero, p. 277.