Patricio Fernandez, The New York Times, 24 de agosto de 2020
Ainda que tenha passado por melhores e piores momentos, o conflito entre os mapuches e o Estado do Chile se arrasta desde as origens da república. Depois da mal chamada “Pacificação da Araucanía”, no final do século XIX, o povo mapuche passou a viver em “reduções” cada vez mais estreitas e sitiadas pela indústria florestal, quando não deslocadas por compras de terras fraudulentas, centrais hidrelétricas ou outros projetos desenvolvimentistas.
“Em torno do fogão, os velhos ainda recordam as histórias escutadas de seus avós, quando os limites das terras de suas comunidades se perdiam em largura”, contou Juan Carlos Reinao, presidente da Associação de Municipalidades com Prefeitos Mapuche, numa entrevista recente. O Estado ainda não reconhece constitucionalmente sua existência, nem a de nenhum outro povo originário. E embora a percepção nas novas gerações começa a mudar, ainda são demasiados os chilenos que os menosprezam. Trata-se a situação de marginalização do povo mapuche como um problema de pobreza a mais. Os mapuches somente aparecem nos noticiários quando levam a cabo boicotes às empresas madeireiras, incêndios de bosques, queimas de caminhões, de máquinas ou, como ocorreu tempos atrás, de uma casa em Vilcún com um casal de anciãos, os Luchsinger-Mackay, em seu interior.
É frequente o maltrato e a violência policialesca contra eles. O rosto de Camilo Catrillanca – assassinado no começo do atual governo de Sebastián Piñera por um carabinero que disparou em suas costas enquanto ele conduzia seu trator-, se converteu num ícone de sua luta contra a discriminação.
Em 2020, a violência na Araucanía, a região do sul no qual habita a maioria deles, recrudesceu. Grupos armados atacaram delegacias, dispararam contra efetivos militares, descarrilaram um trem e destruíram várias dezenas de caminhões. Semanas atrás, num fato inédito, habitantes de Curacautín, ao redor de 640 km ao sul de Santiago, enfrentaram os mapuches que tomaram a sede um município em apoio a comuneiros presos, que se encontram em greve de fome, entre eles o machi Celestino Córdova, condenado pelo crime do matrimônio de anciãos em Vilcún.
Na conflitiva relação dos mapuches com o Estado chileno se combinam múltiplas demandas por reivindicações territoriais, crimes não resolvidos e abusos policiais, com uma infinidade de promessas descumpridas. Mas, por acima de todas as coisas, prima a reclamação por ser vistos, valorizados e respeitados em sua particularidade.
Os mapuches se sabem possuidores de uma diferença que merece ser reconhecida e que somente recebeu desprezo: devem falar secretamente sua língua, sua cosmogonia, se viu reduzida nas escolas públicas a experiências folclóricas, seu modo de vestir se percebe como um disfarce. Ao mesmo tempo, é cada vez mais evidente o muito que essa cultura ancestral tem para ensinar em tempos de aquecimento global e outras urgências ambientais. “Praticamente já não resta nada/ Mas cuidado com o bosque nativo caralho/ Terão que se bater com os mapuches!”, advertiu o poeta Nicanor Parra.
A violência que voltou a se rebelar no Wallmapu (território mapuche), dificilmente encontrará solução pela via do enfrentamento. Ao longo da história, seus habitantes deram mostras de uma imensa capacidade de resistência: detiveram o avanço do império Inca no final do século XV, do espanhol no final do século XVI e apesar de todas as agressões mantiveram viva sua cultura durante mais de duzentos anos de vida republicana.
A batalha pelo reconhecimento e o respeito das distintas identidades (sexuais, étnicas, geracionais) marcou a discussão política das últimas décadas no Ocidente. Como me disse o historiador Fernando Pairicán: “Os mapuches parecemos mais dispostos a nos incorporar às tendências da modernidade que os donos dos fundos a nosso redor”.
Muitos mapuches hoje são profissionais. Em lugar de ocultar sua origem para evitar a discriminação ao emigrar do campo à cidade, iniciaram um processo de resgate e enaltecimento de suas tradições. Se seus antepassados souberam mantê-las vivas dentro das comunidades, eles encontraram no contato com o mundo desenvolvido um contexto que as valoriza e vê com admiração.
A ideia de Estado civilizador, chamado a homologar os costumes e crenças no interior de seu território, parece não responder à necessidade atual de amparar de maneira harmônica as diferenças culturais hoje irrenunciáveis, e que bem assumidas enriquecem qualquer democracia. Se algo mostrou a explosão social interrompida pela pandemia, é que no Chile são muitas as vozes e experiências cidadãs que clamam por ser escutadas e valorizadas por uma elite que tem se negado a lhes prestar atenção. Quiçá por isso a bandeira mapuche (Wenufoye), flamejou – junto à chilena – durante as manifestações que irromperam em outubro do ano passado.
Durante os protestos, a causa mapuche não somente encontrou para ela mesma o apoio da juventude chilena, mas que além disso sintetizou o desejo de reconhecer realidades ignoradas pelos acordos políticos das últimas décadas. E, como podemos constatar nestes meses, tal desprezo se traduziu em raiva e confrontação.
Em 25 de outubro os chilenos votaremos a favor ou contra iniciar um processo constituinte para substituir a constituição nascida em tempos do ditador Augusto Pinochet. Como todos os projetos dos governos concertacionistas para resolver a relação do Estado com o povo mapuche ficaram truncados e o atual não parece disposto a encará-lo como um problema de ordem pública, o debate constituinte será a instância para discutir o tema a fundo, ainda que o modo em que participarão os povos indígenas continua postergado. Este atraso é uma demonstração adicional da pouca importância que dá o Estado chileno às cosmovisões anteriores a sua existência.
Dias atrás escutei uma velha e surrada gravação de Gabriela Mistral – que recebeu o Prêmio Nobel antes que o Prêmio Nacional-, onde a poeta, depois de anos de exílio voluntário, conta que se achava escrevendo um poema sobre Chile. Mistral queria falar com gente distinta que lhe contasse o que não sabia do país, “porque a imaginação me faria fabricar contos sobre minha terra, e a verdade dela, a cara dela, o semblante dela não pode ser mais belo do que é”.
A estabilidade política futura do Chile passa por um novo acordo no qual estas realidades desprezadas participem e recuperem sua dignidade perdida, carregando de legitimidade instituições das quais hoje se sentem marginalizados.
A solução para o conflito entre o Estado do Chile e o povo mapuche requer recuperar a confiança destes últimos depois de demasiadas promessas descumpridas, terras usurpadas, desprezos e faltas de respeito. Substituir a lógica da submissão pela do entendimento, recuperando uma arte que por três séculos manteve a paz nestas terras extremenhas e na qual os mapuches foram mestres: a arte de parlamentar. Não é fácil, mas é disso que se trata.
Patricio Fernández (@PatoFdez) é escritor, jornalista e fundador da revista The Clinic. Seu livro mais recente é Sobre la marcha. Notas acerca del estallido social en Chile.
Reproduzido do Observatório Social. Tradução de Charles Rosa