Raquel Torres, Outra Saúde, 27 de janeiro de 2021
A cada ano, o Ministério da Economia define o valor de uma cota de produtos destinados a pesquisa científica que podem ser comprados de outros países sem impostos de importação – a chamada cota de importação. Depois de chegar a US$ 700 milhões em 2014, nos últimos anos três o valor máximo dessas compras ficou estabelecido em US$ 300 milhões. Mas para 2021 o governo Bolsonaro decidiu fazer um corte inacreditável de quase 70% e, com isso, serão só US$ 93,29 milhões.
E quais serão as instituições mais afetadas? Segundo um levantamento do CNPq, no ano passado os principais importadores foram as fundações de apoio ao Instituto Butantan e à Fiocruz, que consumiram respectivamente US$ 80,3 milhões e US$ 47,4 milhões. Só os projetos relacionados à pandemia beneficiados pela isenção consumiram cerca de US$ 108 milhões em 2020. A cota estabelecida pelo governo, portanto, não cobriria nem a manutenção desses projetos. O CNPq enviou um documento à Economia pedindo que o valor anterior seja restabelecido.
A matéria da Folha lembra que tanto o Butantan como a Fiocruz têm projetos de pesquisa para o desenvolvimento de novas vacinas contra a covid-19 totalmente brasileiras (o que, se vingar, pode nos livrar de muita dor-de-cabeça relacionada aos acordos com farmacêuticas estrangeiras). Estes estudos, porém, ainda não estão na fase de testes em humanos, aquela em que são realizados os ensaios de fase 1, 2 e 3. Para essa etapa, são necessários recursos. E aí não se trata apenas de verba de benefícios fiscais, como é o caso da cota de importação, mas de investimento direto.
O sempre confiante ministro da Ciência, Marcos Pontes, afirma que três dos projetos brasileiros de vacinas (desenvolvidos pela UFMG e pela USP) estão em “ponto de bala” para começar os testes com pacientes. Mas para cada um deles seriam necessários R$ 390 milhões, uma verba que ele diz não ter.
A previsão orçamentária do governo para este ano corta em 34% a verba do Ministério da Ciência. De acordo com Pontes, a tesourada não tem relação com a falta de verbas para a pesquisa com vacinas. “Vamos ter de achar os recursos, porque é importante para o país, e vamos conseguir de alguma forma“, garante ele, no Estadão, completando ainda que “o presidente também está interessado, sabe a importância de ter essas vacinas no país”.
Números incertos
Como se sabe, o presidente sempre fez o posto de demonstrar interesse em vacinas e só muito recentemente começou a mudar de leve o discurso. Em um evento promovido por um banco, ontem ele disse que a imunização é importante para que “a economia não deixe de funcionar”. Ainda proferiu uma mentira grosseira, afirmando que o Brasil é o sexto país no mundo que mais vacinou até agora – na verdade, segundo o UOL, estamos em 49º lugar na lista de países que vacinaram o maior percentual da população, e em 17º levando em conta os números absolutos.
Mas essa colocação é incerta porque, como nota o pesquisador Raphael Saldanha, da Fiocruz, na verdade o país até agora não tem dados oficiais sobre o número de vacinados. A imprensa está divulgando números levantados por conta própria, junto às secretarias de Saúde, mas nem todos os estados enviam seus dados. De acordo com Saldanha, um novo sistema de registro foi criado pelo Ministério da Saúde para a vacinação contra a covid-19, mas ainda não está funcionando bem. “Como em qualquer novo sistema de abrangência nacional, as dificuldades são grandes e muitos testes e ajustes precisam ser feitos. O problema é que estamos consertando o avião em pleno voo”, escreve Saldanha, em sua conta no Twitter.
Ainda o plano das empresas
Gerou imensa repercussão a estratégia bolada por um conjunto de empresas de tentar comprar a vacina de Oxford/AstraZeneca para administrar a seus funcionários, assim como o aceno favorável do governo a isso. Ontem, a AstraZeneca e o fundo de investimento Blackrock (que tem participação na farmacêutica) declararam que nenhuma dose do imunizante será vendida à iniciativa privada.
Mesmo assim, um grupo de empresários afirmou que vai continuar negociando. Mais informações sobre o plano foram sendo divulgadas ao longo do dia: o movimento foi iniciado por um grupo chamado Coalizão Indústria e envolve cerca de 60 companhias. Um dos articuladores é o advogado Fábio Spina, da Gerdau, para quem “as empresas estão preocupadas com a questão humanitária e com o pleno retorno da atividade econômica”. O presidente Jair Bolsonaro e o vice, Hamilton Mourão, se disseram favoráveis à ideia.
“O aval do governo brasileiro para a compra da vacina da AstraZeneca, fora do contrato com a Fiocruz/Ministério da Saúde, é nada mais do que uma autorização oficial para inutilizar o esquema de prioridades elaborado pelo próprio governo. Caso houver essa compra, será a oficialização do ‘fura-fila’“, resume uma nota assinada por entidades da Saúde, como a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e a SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade).
Quem mais precisa
A Justiça Federal do Amazonas suspendeu a entrega de todas as doses da vacina de Oxford/AstraZeneca para Manaus. O motivo? A falta de transparência da prefeitura na distribuição, que está levando à proliferação de fura-filas. A campanha de vacinação na capital do estado chegou a ser suspensa por conta disso, mas foi retomada na noite da sexta-feira. Agora a entrega só fica permitida quando a administração cumprir “total transparência no que se refere a programação e critérios para vacinação”, divulgando diariamente a lista de vacinados.
A decisão atende a uma ação civil pública movida pelos Ministérios Públicos do Estado, Federal e do Trabalho, além das Defensorias Públicas da União e do Estado e do Tribunal de Contas do Estado. Mas os ‘efeitos colaterais’ são óbvios: “A suspensão, nesse momento, deixa as pessoas que mais precisam sem a única proteção existente. O vírus não respeita ordem judicial. Há, na sistemática processual, outras ferramentas para punir as autoridades responsáveis pela vacinação sem prejudicar o já atrasado e lento processo de imunização, até que se respeite a observância da ordem”, critica Rafael Barbosa, da Defensoria Especializada em Atendimento de Interesse Coletivo, no Estadão. A previsão é a de que essas doses atendam a 35% de trabalhadores de saúde, 100% de idosos acima de 75 anos e 37% de idosos entre 70 e 74 anos.
Sob investigação
O Ministério Público de Rondônia abriu um inquérito para investigar o colapso da saúde no estado. Segundo os promotores, há indícios de que números falsos foram usados para evitar a cobrança por medidas de restrição de mobilidade. A adulteração teria sido no número de leitos de UTI disponíveis: em janeiro, por exemplo, foram incluídos nos balanços 30 leitos de um hospital de campanha que estavam fechados, portanto indisponíveis. Jogando a quantidade deles para cima, a taxa de ocupação naturalmente caía.
Na esfera federal, agora o general Eduardo Pazuello também está na mira do MPF em Brasília, que abriu um procedimento preliminar para apurar se houve atos de improbidade administrativa do ministro na gestão da crise em Manaus.
Confirmações
Foram confirmadas em São Paulo três infecções pela nova variante do SARS-CoV-2 identificada em Manaus. É a primeira vez em que ela aparece ‘oficialmente’ em outro estado que não o Amazonas. Comentamos ontem que, já tendo sido detectada em outros países, provavelmente já se disseminou por aqui. O epidemiologista Jesem Orellana, pesquisador da Fiocruz Amazônia, não tem a menor dúvida disso: “Com certeza já está circulando por todo o Brasil. Não é possível que tenham achado em outros continentes e não tenha chegado a outros estados”, diz ele, que tem estudado a variante, à BBC.
Pelo menos nove moradores de Manaus que foram para Curitiba nas últimas duas semanas – e receberam diagnóstico positivo para covid-19 – podem ter levado consigo a variante. Foram colhidas amostras que serão analisadas pela Fiocruz para confirmar a hipótese, mas as chances são grandes, visto que já se trata da variante mais comum na capital amazonense. Eles viajaram de avião, fazendo conexões em outros aeroportos pelo caminho. Três dessas pessoas já embarcaram sabendo que estavam doentes, e especula-se que estavam em busca de atendimento, pois têm familiares em Curitiba.
Vale lembrar que, com os hospitais cheios e sem oxigênio, pacientes do Amazonas têm sido transferidos para outros estados.
Campanha cara
No dia 10 de janeiro, o governo do Amazonas pediu ajuda ao governo federal porque ia faltar oxigênio. O que aconteceu no dia seguinte foi o começo da força-tarefa montada pelo Ministério da Saúde para divulgar o kit-covid em Manaus. A ‘missão’ levou para lá ao menos 11 médicos de seis estados diferentes, e a viagem de cada um custou R$ 4,2 mil, revela o Painel, da Folha.
E o TCU está cobrando uma explicação da pasta para a distribuição de hidroxicloroquina e cloroquina a pacientes com covid-19: uma auditoria apontou ilegalidade no custeio das drogas, que só poderiam ter sido fornecidas com autorização da Anvisa ou de autoridades sanitárias estrangeiras. O Tribunal quer ainda saber informações sobre o malfadado aplicativo TrateCov: quem são os responsáveis pela plataforma, como funciona, que base médico-científica que o ampara e se o governo pretende reativá-lo. O Ministério tem cinco dias para responder.
Condicionantes
Paulo Guedes disse ontem que o governo pode até retomar o auxílio emergencial, desde que o número de mortes por covid-19 continue acima de mil por dia, a vacinação atrase e se chegue a um entendimento de que “falhamos miseravelmente”. Não parece faltar nada, mas, para o ministro da Economia, “temos que observar se é o caso ou não”.
Mas aí alguém vai ter que pagar: “Quer criar o auxílio emergencial de novo? Tem que ter muito cuidado. Pensa bastante, porque se fizer isso, não pode ter aumento automático de verbas para a educação, para segurança pública, porque a prioridade passou a ser absoluta, é uma guerra, e durante a guerra, é fazer armamento bélico. Pega os episódios de guerra aí e vê se teve aumento de salário durante a guerra, se teve dinheiro para saúde, educação. Não tem. É dinheiro pra guerra. Aqui é a mesma coisa. Se apertar o botão ali, vai ter que travar o resto todo”, disse ele.
O outro lado
O mundo tem assistido meio bestificado à rapidez da vacinação em Israel, que já conseguiu dar a primeira dose da vacina da Pfizer a mais de 30% da população. A maioria dos idosos já recebeu a sua. Uma reportagem do Financial Times traduzida pelo Valor aponta os motivos que tornaram essa velocidade possível. O país já tem mais doses de vacinas do que pretende usar, e essa compra foi azeitada por 17 conversas entre Albert Boula, o presidente-executivo da Pfizer, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, e Yuli Edelstein, ministro da Saúde. Uma concessão importante feita à Pfizer (que outros países talvez hesitassem em aceitar) é que os dados de todas as pessoas imunizadas são compartilhados, ocultando as identidades, diretamente com a farmacêutica. O acordo não foi integralmente divulgado.
Novos lotes do imunizante chegam toda semana; em março, quando as doses da Moderna e da AstraZeneca começarem a chegar, o governo planeja que a maior parte da população adulta já esteja imunizada. Vai sobrar vacina, mas Edelstein diz que ainda não sabe o que vai fazer com o resto.
Mas há uma questão importante que o governo está deliberadamente deixando de lado: o futuro dos quase cinco milhões de palestinos que vivem nos territórios ocupados e na Faixa de Gaza. “O fato de os palestinos estarem em uma situação ruim agora não é do interesse de Israel“, disse o ministro da Saúde. Essas pessoas permanecem excluídas do plano de imunização. À BBC, Edelstein disse que Israel até tem “interesse” em vacinar os palestinos, mas nenhuma “obrigação legal” de fazê-lo.
Essa política tem sido classificada como ‘apartheid’ por críticos. “Moral e legalmente, esse acesso diferenciado aos cuidados de saúde necessários em meio à pior crise global de saúde em um século é inaceitável”, aponta o Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos.