Vinte anos depois de sua publicação, A origem do capitalismo, da historiadora canadense Ellen Meiskins Wood (já lançado no Brasil pela Jorge Zahar), foi editado na França. Isso deu a Romaric Godin a oportunidade de recapitular o estado do debate sobre o tema.
Romaric Godin, A terra é redonda, 12 de outubro de 2020
Trata-se da última linha de defesa do capitalismo, e frequentemente a mais poderosa: esse regime socioeconômico seria ‘natural’ e o único realmente adaptado à ‘natureza humana’. Ele permitiria, pela magia da ‘mão invisível’ e segundo a velha fábula das abelhas de Mandeville, transformar o egoísmo ‘natural’ da humanidade em benefícios para o conjunto desta última. A isso se somaria a capacidade do capitalismo de quantificar tudo e, logo, de tudo ‘racionalizar’. Nos anos 1950, a ‘mão invisível’ assumiu sua forma matemática sob a aparência dos modelos de equilíbrio geral que até hoje dominam as ciências econômicas. A mecânica capitalista torna-se, então, uma equação. Dito de outra forma, ela alcança um nível superior de ‘naturalidade’. Assim como dois com dois são quatro, o capitalismo seria a essência do homem.
As consequências dessa visão são imensas. Se o capitalismo é a realização profunda da essência humana, como poderíamos, então, pensar em superá-lo? É, evidentemente, uma causa perdida. O reformismo socialista que, nos primeiros textos de Eduard Bernstein, ainda é um meio de avançar em direção ao socialismo tornou-se, progressivamente, uma força de gestão do capitalismo.
E a queda dos regimes ‘comunistas’ em 1989-1991 apenas confirmou esse movimento: esses regimes lutavam em vão contra a ‘natureza humana’, o que explica a sua recorrência à violência. Sua queda e a globalização do capitalismo representavam, então, o encerramento da história humana, no sentido hegeliano do termo, pela racionalização do mundo como uma forma de realização do Espírito.
A história devia, evidentemente, traduzir essa visão de mundo. Posto que o capitalismo é natural e racional, a história da humanidade se reduziria a apenas um grande movimento: a liberação dos entraves permitindo que um capitalismo subjacente se realize. Aqui, ainda estamos no idealismo hegeliano: cada sociedade humana sempre teve o capitalismo em si, mas os interesses materiais de certos grupos tentaram bloquear sua implantação. Foi quando esses obstáculos terminaram de ser removidos, os últimos dentre eles em 1989-1991, que o homem pôde realizar seu destino racional através do capitalismo.
Uma obra de 1999 da historiadora canadense Ellen Meiksins Wood, recentemente traduzida para o francês e publicada pela editora Lux, L’Origine du capitalisme, vem romper com essas belas certezas. E isso faz dela um livro indispensável à nossa época. Pois a primeira parte da obra se dedica, com sucesso, a desconstruir esse caráter ‘natural’ do desenvolvimento humano em direção ao capitalismo. A grande revisão que ela empreende das diferentes teorias sobre a origem do sistema capitalista mostra como o debate esteve, desde então, interditado.
Persuadidos do caráter inelutável do capitalismo, os historiadores, incluindo a grande maioria dos historiadores marxistas, submeteram a história a essa leitura preliminar. Tal leitura se apoiava sobre a ideia de que o comércio era, naturalmente, de essência capitalista e apenas dependia da libertação das restrições da sociedade feudal para torná-lo plenamente. Uma vez alcançado esse estado, o capitalismo pôde dar o melhor de si e pôde se impor a uma humanidade que o reconhece como o fruto de sua própria natureza. É o modelo da ‘comercialização’ que dominou e ainda domina a leitura histórica do capitalismo. “Essas pessoas assumiam como dado que o capitalismo sempre existiu, ao menos sob uma forma embrionária, desde o princípio dos tempos, e que ele seria o limite inerente à natureza e à razão humana”, resume Ellen Meiksins Wood (página 25).
A historiadora mostra como mesmo aqueles que tentaram fugir dos modelos ‘burgueses’ tradicionais não escapam desta lógica da ‘comercialização’. É, notadamente, o caso de Karl Polanyi, que, apesar de sua crítica radical da mercantilização, não escapa do esquema que liga o desenvolvimento comercial ao progresso técnico e à industrialização. Ele pode, assim, defender a ideia de que “assim que os laços feudais se enfraquecem, antes de desaparecer, poucas coisas impediam as forças do mercado de se impor”. Dito de outra maneira, essas forças de mercado, bloqueadas pelo feudalismo, estavam bem presentes em estado latente. Este pequeno erro também está presente na grande polêmica entre os marxistas dos anos 1950, que opôs Paul Sweezy a Maurice Dobb.
O primeiro a realmente escapar deste esquema da ‘comercialização’ teria sido o historiador estadunidense Rober Brenner em um artigo célebre de 1976, “Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe”. Brenner, que é o inspirador de Ellen Meiksins Wood, via no capitalismo não um fenômeno natural, mas histórico, nascido na Inglaterra rural dos séculos XV e XVI. Ele rejeita qualquer ideia de capitalismo latente ou embrionário. Esse texto provocará o levantamento de defesas dentro do meio historiador, do qual sairá uma obra, The Brenner Debate (republicada em 2009 nas edições universitárias de Cambridge), na qual, pela primeira vez, a validade do modelo da ‘comercialização’ seria posta em discussão.
Ellen Meiksins Wood se inscreve, claramente, na continuidade do Robert Brenner de 1976. A sequência da obra tenta, assim, ir ainda mais adiante para descrever o nascimento do capitalismo como um fenômeno histórico, nascido de um contexto histórico.
Para sair do viés da ‘comercialização’, a historiadora relembra de diversos elementos-chave. Em primeiro lugar, existe uma diferença radical entre o comércio e seu desenvolvimento e o capitalismo e, portanto, entre a burguesia das cidades vivendo de comercio e o capitalismo. O capitalismo não é simplesmente um sistema onde existe o mercado, é um sistema em que o mercado dita sua lei ao conjunto da sociedade. A concorrência é, então, a força motriz de toda a sociedade, obrigando-a a permanentemente melhorar sua produtividade para atender aos preços fixados pelo mercado. O mercado conduz, assim, a uma necessidade de circulação dos capitais e obriga as forças sociais a se adaptarem a essa necessidade. Ellen Meiksins Wood estima que a força social dominante é, por isso, econômica: é o mercado e seus imperativos que decidem sobre a atribuição dos excedentes de produção.
E essa é a diferença maior em relação às sociedades pré-capitalistas, nas quais os excedentes da produção tornam-se objeto de medidas políticas, ‘extra-econômicas’ como dizia Marx: impostos diversos, direitos senhoriais, conflitos armados. Nessas sociedades, além disso, o uso dos excedentes é diferente. Eles servem seja para manter a renda comercial em um nível constante, seja para assegurar um consumo de luxo. O investimento massivo no aumento da produtividade do trabalho não é, então, necessário.
A historiadora canadense mostra bem aqui a diferença notável que existe entre os exemplos clássicos de ‘capitalismo abortado’ que são as cidades italianas do Renascimento ou as Províncias-Unidas (Países Baixos) do século XVII e a sociedade capitalista em formação na Inglaterra. Em ambos os casos, o comércio desenvolveu a riqueza de uma numerosa classe urbana. Mas se “o mercado tinha um papel em seu desenvolvimento, também parece evidente que esse mercado oferecia oportunidades mais do que impunha seus imperativos”. E Ellen Meiksins Wood complementa: “Em todo caso, o mercado não produzia a necessidade constante e tipicamente capitalista de maximizar os lucros desenvolvendo as forças produtivas”.
Os burgueses florentinos aproveitavam as oportunidades ligadas ao saber-fazer de seus artesãos, enquanto aqueles dos Países Baixos aproveitavam seu domínio das rotas comerciais. Às vezes, eles ‘investiam’, pela guerra ou pela diplomacia, para manter essas vantagens mas, uma vez que os bons negócios desapareciam e os mercados acabavam, sua riqueza desvanecia. Esse fracasso não era a consequência dos obstáculos impedindo o desenvolvimento do capitalismo, mas devia-se precisamente à natureza não capitalista desses desenvolvimentos econômicos.
Compreender a origem do capitalismo para superá-lo
A tese defendida pela obra é a de que o capitalismo não nasceu nas sociedades mercantis e urbanas como almeja a visão tradicional, mas na Inglaterra rural da época dos Tudors. A Inglaterra passou por um desenvolvimento único durante o período feudal. Ao contrário da França, por exemplo, o país unificou-se politicamente muito rapidamente, antes mesmo da conquista normândia de 1066, com uma nobreza associada ao poder central e não recentrada em seus poderes locais. A Carta Magna de 1215 e o crescente poder do Parlamento representavam essa divisão do poder em nível central. Estamos longe do caso francês, em que o poder nobre continuou por muito tempo descentralizado, inclusive sob o absolutismo.
A aristocracia inglesa perdeu, assim, progressivamente os meios extra-econômicos de cobrança dos excedentes agrícolas que continuariam em seu lugar na França até 4 de agosto de 1789 (os famosos ‘privilégios’). Mas, em compensação, o Estado inglês atribuiu à nobreza dois elementos-chave: fortes garantias de seu direito de propriedade das terras e um mercado nacional integrado. Enquanto na França os pequenos agricultores possuíam suas terras e pagavam taxas a seu senhor, na Inglaterra os nobres alugavam suas terras aos fazendeiros e submetiam esses contratos a um mercado nacional para valorizá-los ainda mais. Colocou-se em prática, então, “um sistema de rendas concorrenciais no qual os senhores, cada vez que fosse possível, alugavam suas terras ao maior lance”, sistema que, naturalmente, ganhou terreno sobre os direitos costumeiros residuais. Desde então, os fazendeiros, para conservar suas terras, tiveram que se mostrar o mais concorrenciais possível, aumentando sua produtividade. Nascia a lógica capitalista.
O movimento dos ‘cercamentos’, que reduzia as terras geridas em comum, conheceu, assim, seu primeiro impulso decisivo já na época Tudor. Mas, contrariamente ao que pensavam Polanyi e Marx, ele já era uma consequência, e não uma causa do capitalismo. Rapidamente, a agricultura inglesa foi capaz de nutrir a imensa metrópole londrina, onde iam se refugiar as classes do campo perseguidas por esse mesmo movimento. Essas massas ficaram, então, obrigadas a comprar bens essenciais no mercado a preços baixos. Essa lógica poderia, então, ter tropeçado na fraqueza natural do emprego e do poder de compra dos camponeses ingleses submetidos a esse avanço da produtividade agrícola. No entanto, esse estado de coisas favorecia ainda mais o desenvolvimento de mercados fundados no consumo de massa a baixos preços, logo, sobre uma produtividade crescente. Rapidamente, o capitalismo inglês tornou-se industrial através da indústria têxtil, destinada a responder a um tal mercado. De todo modo, “não são as possibilidades que oferecia o mercado, mas seus imperativos que levavam os pequenos produtores à acumulação”.
“Esse foi o primeiro sistema econômico da história em que as restrições econômicas do mercado teriam como efeito aumentar obrigatoriamente as forças de produção em vez de as desacelerar ou impedir”, explica Ellen Meiksins Wood. Lá onde a queda na demanda comercial levou ao declínio das Províncias Unidas, os recursos limitados do proletariado inglês favoreciam o investimento industrial. “Quando o capitalismo industrial viu a luz do dia, a dependência ao mercado se insinuou em profundeza em todos os estratos da ordem social. Mas, para que se chegasse lá, seria necessário que a dependência ao mercado já fosse um fenômeno bem implementado”, resume a historiadora.
O capitalismo, portanto, desenvolveu-se em um lugar preciso e em uma época determinada. E ele se desenvolveu não como uma força natural, mas como o fruto de “relações de propriedade particulares”, relações “mediadas pelo mercado”. A autora passa rapidamente pela luta de classes que constitui o pano de fundo desta evolução, mas isso não impede que este livro, que, para além disso, apresenta reflexões igualmente estimulantes sobre o colonialismo e o Estado, seja essencial para a reflexão atual.
No momento em que o neoliberalismo, modo de gestão do capitalismo globalizado, tem dificuldades para responder aos desafios de nosso tempo, esse estudo é precioso. Ele oferece um conteúdo profundamente revolucionário. Pois, se o capitalismo é um fenômeno histórico, ele pode muito bem ser superado, como todo fenômeno histórico. Ele não é único horizonte possível, mesmo que ele seja, como sublinha Branko Milanovic em seu último livro, Le Capitalisme, sans rival, o único sistema socioeconômico persistente. Se ele não é ‘natural’, ele não é imortal, ou, ao menos, ele não está destinado a levar a humanidade ao seu desaparecimento.
Colocando o capitalismo em seu devido lugar, isto é, reafirmando seu caráter histórico, Ellen Meiksins Wood cumpre três papeis essenciais. Primeiramente, ela permite o retorno aos fundamentos da crítica ao capitalismo. O filósofo alemão anti-stalinista Karl Korsch estimava, em sua obra Karl Marx, publicada em 1938, que “o primeiro dos princípios fundamentais da nova ciência revolucionária da sociedade é o princípio da especificação histórica de todas as relações sociais”. A contribuição de Marx é, então, de remeter as categorias ‘burguesas’ (entendidas aqui no sentido de ‘capitalistas’) à sua realidade histórica ‘burguesa’. Uma vez que essas categorias são efetivamente históricas e não abrangem a essência do homem, elas são, então, modificáveis pela história humana. Logo, a crítica pode considerar sua superação. A luta de Marx contra a dialética idealista hegeliana e aquele contra o caráter absoluto da economia política capitalista andam de mãos dadas e se unem aqui, no trabalho da historiadora canadense.
Assim que o horizonte se abre e que os argumentos de botequim do tipo ‘de todos os tempos’ ou ‘a natureza humana’ são descartados, o trabalho de Ellen Meiksins Wood abre uma outra perspectiva. O capitalismo é uma questão de relações de propriedade. A questão da propriedade é, portanto, central para superá-lo. Nisso, esta pesquisa parece dar razão à reflexão trazida por Thomas Piketty ou Benoît Borrits sobre a necessidade de engajar o debate no plano da propriedade. Todo combate que não tratar diretamente dessa questão parece estar fadado ao fracasso ou, mais ainda, à reprodução da lógica capitalista. Como mostram os trabalhos da historiadora canadense, isso não signifíca, sem sombra de dúvidas, a desaparição do comércio, da troca e do progresso técnico. Todas essas noções, contrariamente ao que tentam impor alguns, não são privilégio do capitalismo e existem em sociedades não capitalistas.
Ora – chegamos a terceira lição da obra –, a lógica capitalista não saberia fazer frente ao desafio ecológico. O capitalismo, e esta é a chave de seu sucesso e de sua expansão, tem uma lógica contínua de fuga para frente. Não se trata de um regime de estagnação, mas de crescimento permanente. Essa necessidade de progressão infinita (que se traduz bem por sua matemática recente) é hoje confrontada com o fim do mundo físico. O entusiasmo do capitalismo agrário, transmitindo-se ao conjunto da sociedade inglesa, e depois ao resto do mundo, coloca hoje um problema ecológico grave e urgente. A fábula do ‘capitalismo sóbrio’ não enfrenta a própria história desse sistema.
Há, então, uma urgência para criar uma nova relação social para organizar a sobrevivência da humanidade. Sem dúvidas, o capitalismo trouxe muito à humanidade, e não é questão de por em causa seu interesse histórico (o que já reconhecia Marx), mas ele não é mais do que um momento histórico. Como outros antes dele, esse regime teve seus dias. E o livro de Ellen Meiksins Wood nos ajuda a compreendê-lo.
Romaric Godin é jornalista especializado em macroeconomia. Tradução: Daniel Pavan. Artido originalmente publicado no portal Mediapart.