Sharon Zhang, Truthout/Economia e complexidade, 30 de setembro de 2020
A pandemia do COVID-19 está sendo rapidamente absorvida em nossa consciência coletiva, refazendo a tessitura de nossas vidas. De repente, milhões estão se abrigando em algum lugar, estranhos começaram a se desejar boa sorte na saída dos supermercados, as pessoas pararam de tocar os seus próprios rostos e as prateleiras que estocam normalmente água sanitária e desinfetante para as mãos estão vazias.
Para muitos, a sensação de pavor iminente é o novo normal.
“Algumas vezes por dia, eu me distraio o suficiente para esquecer que tudo mudou, muito provavelmente de uma forma que não será revertida quando a pandemia retroceder”, escreveu Amanda Mull, jornalista que escreve na revista The Atlantic, dos EUA. “Então me lembro e recaio numa vertigem psicológica, tentando reprimir uma mistura de ansiedade, terror e desorientação, algo tão profundo que mal consigo me lembrar do que devo fazer de um minuto para o outro. O medo da peste nunca me abandona por muito tempo.”
Mas, para aqueles que vivem com uma consciência aguda da realidade da crise climática, o estado atual de pandemia parece terrivelmente familiar – trata-se apenas uma versão mais imediata do pavor sobre as consequências das mudanças climáticas, que estamos sentindo há anos.
Difunde-se agora um fenômeno psicológico, que é conhecido informalmente na comunidade dos pesquisadores, como ansiedade climática, tristeza climogênica ou ainda como “eco-ansiedade”. Em 2017, a Associação Americana de Psicologia divulgou um relatório em que detalhava o que estava por trás desse sentimento psicológico. “Experimentado indireta ou diretamente, os estressores associados aos eventos do futuro climático se traduzem em problemas de saúde mental que podem resultar em depressão e ansiedade” – era o que dizia o relatório.
Embora o pânico pandêmico atual sobre o qual Mull e outros escreveram tenha surgido nas últimas semanas, aqueles que costumam tratar dos problemas climáticos se abriram faz tempo para essa dor da alma que não passa. “Eu lutei contra a depressão, a raiva e o medo … luto pelo planeta e por todas as espécies que vivem aqui, e continuo a fazê-lo enquanto trabalho hoje”, escreveu Dahr Jamail para Truthout. “De algum modo, estou pensando sobre as mudanças climáticas o tempo todo” – escreveu Ellie Mae O’Hagan para a revista Vice. Em 2017, em um poste que estimulou a produção de uma série de ensaios sobre o luto climático, o ensaísta Eric Holthaus, numa seção de aconselhamento, disse: “Há dias em que literalmente não posso trabalhar. Tento ler uma história ou não fazer nada pelo resto do dia. Não ajuda muito além de gastar o tempo.” Parafraseando Mull, pode-se repetir: o pavor climático nunca me deixa por muito tempo.
Mas não é apenas o trauma psicológico que essas duas crises têm em comum – se você gastar algum tempo pensando, vai observar que as semelhanças são amplas e profundas. São crises mundiais gêmeas as quais exigem uma cooperação global se é que se deseja derrotá-las. Elas devastarão o modo de vida atual, tal como o conhecemos; elas afetarão, de uma maneira ou de outra, quase todas as pessoas na Terra.
O coronavírus, tal como a emergência climática, não é apenas uma crise singular e que vai passar logo-logo – trata-se, na verdade, de uma crise múltipla, umas somadas às outras, tudo de uma vez.
A economia tal como a conhecemos – ou melhor, tal como a conhecíamos há três meses – tornar-se-á coisa do passado se a crise climática não for mitigada. Agora, os economistas estão prevendo um declínio de 12 a 14% no produto interno bruto dos EUA devido ao COVID-19. E, embora os prazos desses acontecimentos sejam diferentes, os declínios se afiguram como semelhantes: os dois problemas eliminarão grandes partes de nossa economia. Em 2018, os pesquisadores do National Climate Assessment (NCA) previram que, sob um cenário de alta emissão de carbono na atmosfera, o PIB encolheria de 10 a 11% até 2100.
Os economistas estão atualmente lutando para modelar todos os efeitos a curto prazo da pandemia, ainda que muitos deles permaneçam desconhecidos. Pesquisadores do clima, no entanto, tiveram muito mais tempo para modelar os futuros impactos econômicos da crise climática. Os pesquisadores da NCA preveem um custo de mortalidade de US$141 bilhões por ano, até 2090, somente nos EUA, nesse cenário atual de alto volume de emissões de carbono. Devido às temperaturas extremas, haverá perdas de propriedades costeiras que totalizarão US$ 118 bilhões por ano; as perdas de mão-de-obra custarão US$ 155 bilhões por ano. Apenas em razão da perda de trabalho, o montante será equivalente a um furacão Katrina todos os anos.
O sistema de saúde também ficará sobrecarregado pela crise climática, assim como os leitos hospitalares estão sendo rapidamente preenchidos agora por pacientes com COVID-19. Em alguns lugares, a crise climática já produziu efeitos danosos: em 2018, as ondas de calor recordes fizeram com que os hospitais do Reino Unido utilizassem procedimentos de emergência. As pessoas estavam sendo enviadas para os hospitais num volume tão grande que as ambulâncias tinham de se alinhar e esperar do lado de fora
O COVID-19, como se sabe, está fazendo com que os hospitais fiquem lotados simultaneamente em todo o país. Ora, “os eventos relacionados ao clima serão mais limitados em escala espacial, mas serão cada vez mais frequentes ao longo do tempo” – diz Kristina Dahl, cientista climática sênior da Union of Concerned Scientists. Uma onda de calor em São Francisco não incendiará o país como um todo, mas sobrecarregará o sistema de saúde local.
A principal diferença entre a doença causada por uma pandemia e a crise climática, observa Dahl, é que, no primeiro caso, torna-se muito mais fácil rastrear a incidência da doença. “Coisas como furacões, ondas de calor e incêndios florestais sempre ocorreram”, diz ela, e, por isso, “não sabemos até certo ponto se são consequências dos gases adicionados na atmosfera. O efeito estufa na atmosfera não deixa tantos rastros”.
Pessoas pobres, negras e aquelas com a saúde já abalada são e serão as mais afetadas pelas duas crises – algumas delas, é preciso ser realista, já estão sendo afetadas por ambas ao mesmo tempo.
Essa parece ser provavelmente a razão pela qual o governo federal entrou rapidamente em ação com a vinda do COVID-19. Ora, a emissão de gases do efeito estufa permaneceram praticamente intocados pelo Congresso norte-americano por décadas. Embora a mídia e os políticos de direita, há apenas algumas semanas atrás, tenham negado inicialmente as consequências dessa inação no caso do coronavírus, eles rapidamente tiveram que mudar de tom à medida que a disseminação do vírus se tornou inegável. Agora, no caso das mudanças graduais e de longo prazo, é fácil para os negacionistas culpar a própria natureza. A gravidade dos incêndios na Austrália não foi atribuída aos próprios homens; negou-se que eram consequência da crescente aridez e quentura causadas pelas mudanças climáticas.
A classe dominante também teve menos motivação para enfrentar a crise climática, porque as pessoas que mais sofrem são aquelas mais marginalizadas. Pessoas pobres, negras e com a saúde comprometida são e serão as mais afetadas pelas duas crises – algumas já estão sendo afetadas por ambas ao mesmo tempo – é preciso enfatizar. A poluição do ar é uma das questões mais importantes no tema da justiça ambiental. Os médicos já disseram que aqueles com exposição contínua à poluição do ar provavelmente serão mais vulneráveis aos efeitos do coronavírus.
Seria sensato que a sociedade permanecesse consciente sobre a natureza da pandemia do COVID-19, assim como sobre a resposta que está sendo dada a ela. Mediante uma abordagem correta, ver-se-ia então a sobreposição das duas emergências, sanitária e climática. As medidas de alívio para a pandemia podem ajudar a sociedade a se preparar ou até mesmo a aprender como mitigar a crise climática nos próximos anos e décadas. As contas hospitalares astronômicas devidas aos pacientes não cobertos pelo COVID-19 podem ajudar a construir políticas de saúde para todos; uma resposta lógica às próximas demissões em massa é proporcionar uma garantia de emprego verde ou um pacote de estímulo verde. O escritor de clima da Vox, David Roberts, escreveu recentemente que “a lógica moral do coronavírus, se estivermos dispostos a prestar atenção, leva à uma socialização e até mesmo ao socialismo”. O coronavírus, tal como o clima, não se constitui apenas como uma crise singular, pois envolve crises múltiplas crises, somadas umas sobre as outras, tudo de uma vez.
Aqueles que estão mais expostos à poluição do ar provavelmente serão mais vulneráveis aos efeitos do coronavírus.
“A emergência do coronavírus deixou claro que os problemas globais não podem ser meramente classificados seja como apenas um problema de saúde seja apenas como um problema ambiental” – diz Dahl. Eles realmente requerem uma abordagem mais ampla e abrangente que envolva todo o sistema social. Eles requerem um amplo entendimento público sobre a escala da resposta global, tanto para a crise da pandemia quanto da crise climática. É de se esperar que as pessoas compreendam algumas lições importantes sobre esses dois pesadelos que nunca vão nos deixar em paz nos próximos anos.
O coronavírus mostrou claramente que várias coisas em nossa sociedade não estão funcionando adequadamente; em particular, ela indicou que o sistema não está ajudando ou mesmo sendo razoável com as pessoas pertencentes aos grupos vulneráveis.