A necessidade de recorrer a serviços gratuitos para quem não possa pagá-los abre a possibilidade de que a pessoa, através de seus dados, seja sua própria mercadoria. O futuro não tem razão para ser obscuro, mas a batalha pela luz não será simples.
Francesc Bracero, La Vanguardia, 12 de fevereiro de 2021. A tradução é do Cepat.
Um dos país do método científico, Sir Francis Bacon, cunhou a sentença “o conhecimento é poder” há quase 400 anos, muito antes do advento das redes sociais. Hoje, a informação mais poderosa que se pode desejar ter posse está muito fracionada, mas é muito abundante: são os dados. Só na Espanha movimentam oficialmente mais de 2 bilhões de euros por ano. Os dados podem parecer uma matéria invisível, mas nós os geramos a todo momento, com uma multidão de ações em nossa vida. Tornaram-se uma mercadoria que proporciona uma extrema riqueza para quem a obtém e sabe como a empregar. A privacidade será uma das grandes frentes de batalha no âmbito tecnológico do século XXI.
A Real Academia Espanhola define privacidade como “âmbito da vida privada que se tem direito a proteger de qualquer intromissão”. Ou seja, trata-se de algo sobre o qual deveríamos ter um controle. Temos?
Hoje, os perigos que ameaçam a privacidade são múltiplos: câmeras de reconhecimento facial, algoritmos capazes de prever e de provocar ações em um indivíduo a partir de seus dados, rastreamento digital, roubo de dados financeiros, malware, espionagem das comunicações...
Após 31 anos de existência da World Wide Web, a grande rede com a qual funciona o mundo é um lugar muito diferente do âmbito de liberdades humanas que foi imaginado por seu criador, Tim Berners-Lee.
Nessa guerra sem fim entre aqueles que buscam proteger a privacidade e aqueles que pretendem violá-la, para cada avanço por um lado costuma existir uma contramedida por outro. É muito possível que, no futuro, as trincheiras fiquem cada vez mais definidas. Um dos casos mais destacados no mundo é o dos cidadãos da União Europeia, privilegiados por contar com uma rigorosa legislação muito vigilante à privacidade, com seu Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), mas esse guarda-chuva não chega para maioria das pessoas do mundo.
Embora a iniciativa europeia não seja perfeita, porque muitas empresas exploram a impaciência do usuário, incapaz de ler intermináveis listas legais e de exigir transparência com o uso de seus dados, estabeleceu um caminho de garantias em que as autoridades podem intervir para corrigir os abusos.
Do lado oposto, governos como o da China parecem entender a privacidade como uma enteléquia sobre a qual prima o interesse do Estado, atitude que até agora não teve uma contestação social. Os Estados Unidos parecem que podem se aproximar da Europa. A chegada de Joe Biden à Casa Branca pode favorecer essa decisão.
No âmbito das companhias, acaba de ser aberta uma disputa entre a Apple e o Facebook, pois a primeira, com um modelo de negócio baseado em produtos e serviços, trata a proteção da privacidade como um elemento de valor para oferecê-lo a seus clientes e fixou normas que restringirão a capacidade de terceiros em obter dados indiscriminados de seus usuários.
A rede social, que baseia a gratuidade de seu produto na obtenção de dados para a publicidade segmentada, vê uma parte de seu negócio em risco. Se não pode obter dados de alguém, deixa de ser rentável. Tudo isso deixa mais claro a sentença do que já aprendemos há tempo: quando algo é gratuito, o produto é o usuário.
Como em outros âmbitos, a privacidade pode abrir novas lacunas entre os seres humanos, se é que já não está acontecendo. O lugar onde vive uma pessoa será cada vez mais decisivo, mas a situação socioeconômica também. Nem todos os usuários terão o conhecimento e o acesso a ferramentas para controlar os dados que cedem. A necessidade de recorrer a serviços gratuitos para quem não possa pagá-los abre a possibilidade de que a pessoa, através de seus dados, seja sua própria mercadoria. O futuro não tem razão para ser obscuro, mas a batalha pela luz não será simples.