Este texto "A face em transformação do capitalismo nos Estados Unidos e no mundo" é a introdução do livro "A que custo?", de Nicholas Freudenberg, que acaba de ser publicado pela Editora Elefante em associação com o site O joio e o trigo.
Nicholas Freudenberg, O joio e o trigo, 9 de maio de 2022
Apesar dos picos cobertos de neve, do ar puro da montanha e do vigor de Yo-Yo Ma em pessoa tocando a sexta suíte de violoncelo de Bach, um clima de desânimo e incerteza pairou sobre a reunião do Fórum Econômico Mundial de 2020 em Davos, na Suíça. Qual foi a razão do pessimismo entre aqueles que lideram as corporações e as instituições financeiras mais poderosas do mundo?
Uma razão talvez fosse o número significativo de pessoas no planeta que se perguntava mais uma vez se a forma de capitalismo vigente seria capaz de enfrentar os maiores desafios da atualidade — mudanças climáticas, desigualdades crescentes, nacionalismos e totalitarismos em ascensão, volatilidade financeira constante, epidemias de saúde mental, de doenças crônicas e infecciosas e crescentes mortes por desespero.
Seriam os questionamentos emergentes sobre o futuro do capitalismo uma ameaça real que poria em risco a ordem econômica e política global instaurada a partir dos anos 1970? Ou proporiam novas oportunidades para um futuro mais saudável e equitativo? Afinal, em fins do século XIX, princípios do XX, após a Grande Depressão e novamente nos anos 1960 e 1970, reformadores e ativistas organizaram movimentos que abalaram a ordem estabelecida. A crítica que surge agora seria mais um episódio, como a crise financeira de 2008, um desastre que o capitalismo abordou reforçando o controle sobre a economia mundial?
Na reunião de Davos, alguns participantes, como Marc Benioff, presidente e co-CEO da Salesforce, empresa de tecnologia global com receita de mais de treze bilhões de dólares em 2019, disseram sem rodeios. “O capitalismo, tal como o conhecemos, está morto. Essa obsessão que temos por maximizar lucros apenas para acionistas levou a uma desigualdade espantosa e a uma emergência planetária” (Benioff, 2020).
Outros líderes empresariais tentaram dar uma aparência mais feliz à situação. Feike Sybesma, diretor-executivo e presidente da Royal DSM NV, empresa transnacional holandesa de alimentação e saúde, observou:
Líderes empresariais têm agora uma oportunidade extraordinária. Ao darem um significado concreto ao capitalismo para todas as partes interessadas, eles podem ir além de suas obrigações legais e cumprir o seu dever para com a sociedade. Podem aproximar o mundo da realização de objetivos comuns, tais como os delineados no acordo climático de Paris e na Agenda das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável. Se querem realmente deixar a sua marca no mundo, não há alternativa. (Sybesma, 2020)
O capitalismo participativo, de acordo com o Manifesto Davos 2020, divulgado pouco antes do fórum, procurou envolver “todos os participantes na criação de valor partilhado e duradouro”. Entre aqueles a serem incluídos como partes interessadas, estariam “empregados, clientes, fornecedores, comunidades locais e a sociedade em geral”. Contudo, para manter todos os olhos bem centrados no fundamento da questão, o manifesto prosseguiu observando que “a melhor forma de compreender e harmonizar os interesses divergentes de todas as partes interessadas é o empenho compartilhado em políticas e decisões que reforcem a prosperidade a longo prazo das empresas” (Schwab, 2019).
Tim Wu, especialista em direito da Universidade Colúmbia que escreve sobre os perigos dos monopólios das empresas de tecnologia, observou que, “percorrendo os corredores [de Davos], pensei no início que havia me enganado e ido parar em um comício de Bernie Sanders: o capitalismo desenfreado foi longe demais; a ganância empresarial pôs em perigo o planeta; chegou o momento de uma mudança radical”.[1]
Klaus Schwab, fundador e diretor-executivo de longa data do Fórum Econômico Mundial, acrescentou de forma otimista ao círculo de expressões felizes: “Se somarmos a nossa boa vontade e a nossa ação”, disse aos participantes de Davos, “podemos dizer à próxima geração: ‘Podem confiar em nós’”.[2]
Ao menos uma integrante da nova geração, Greta Thunberg, a adolescente e ativista climática sueca que participava de seu segundo fórum em Davos, parecia não estar disposta a confiar em Schwab e em seus pares. “Fui avisada de que dizer às pessoas para entrarem em pânico em relação à crise climática é uma coisa muito perigosa”, disse Thunberg aos participantes. “Mas não se preocupem, está tudo bem. Confiem em mim, já fiz isso antes e posso garantir a vocês: não adianta nada.”[3]
Sob esforços concorrentes para estruturar um debate global, contudo, a reunião de Davos de 2020 cristalizou a incerteza entre muitos “interessados” sobre se a variante do capitalismo que surgiu no final do século XX poderia ou não resolver os problemas que o mundo enfrenta neste momento.
Uma pesquisa realizada com 1.581 CEOs de empresas globais pela PwC, multinacional de consultoria e auditoria, para o fórum, revelou que mais de um terço dos líderes empresariais estava “extremamente preocupado” com o excesso de regulamentação, conflitos comerciais e crescimento econômico incerto.[4] Os CEOs dos Estados Unidos estavam mais pessimistas do que seus pares globais, com 62% deles projetando um declínio no ritmo de crescimento de seu negócio no próximo ano, em comparação com 53% para o total de CEOs. Nos Estados Unidos, 83% dos CEOs estavam planejando “eficiências operacionais”, tais como cortes de pessoal, venda de empresas ou adiamento de investimentos para ajudar a impulsionar crescimento. Quais impactos terão essas eficiências nos trabalhadores, nos consumidores e no público em geral? E quais vozes vão participar na tomada dessas decisões? E, ainda, tais decisões não desmentiriam as declarações sobre a utilização da crise para melhorar o mundo?
As preocupações dos líderes empresariais com o futuro da economia são amplificadas por outras tendências econômicas. Embora a economia global tenha se expandido por anos, a produtividade quase não evoluiu, o que sugere que as relações anteriores entre crescimento e aumento da produtividade poderiam não ser válidas. Inválida seria também a relação a longo prazo entre uma economia em expansão e o aumento dos salários. Os mais ricos estão ganhando muito mais, mas a renda está estagnada ou em declínio para os 90% dos trabalhadores com salários mais baixos. Essas tendências tornam impossível seguir o modelo criado por Henry Ford no início do século XX, conforme o qual pagar mais aos trabalhadores permitiu a eles comprar o Modelo T que a Ford estava fabricando, alimentando, assim, o consumo e o crescimento econômico.
Finalmente os líderes empresariais estariam preocupados com a perspectiva de que os truques utilizados pelos governos no passado para combater as recessões econômicas pudessem ter atingido um limite. Entre 2008 e 2017, quatro bancos centrais injetaram dez trilhões de dólares na economia global, mas o crescimento da produtividade permaneceu estagnado (Schwab & Zahidi, 2019).
Se o desempenho dos líderes empresariais no aumento da produtividade é fraco, o progresso em matéria de mudanças climáticas é ainda pior. É verdade que a proporção de CEOs extremamente preocupados com o tema aumentou mais de 25% desde a pesquisa de 2019. Em uma carta aos CEOs enviada pouco antes da reunião de Davos, o diretor-executivo da BlackRock, Larry Fink, mostrou que alguns executivos consideram atualmente que as alterações climáticas são uma ameaça real aos negócios. Isso constitui uma razão para agir em prol dos interesses da maior de todas as partes em comum, o próprio planeta. “As alterações climáticas se tornaram um fator determinante nas perspectivas de longo prazo das empresas”, escreveu Fink, “mas a consciência está mudando rapidamente, e creio que estamos em vias de uma redefinição fundamental nas finanças.” Ele se comprometeu a começar a realocar os quase sete trilhões de dólares de ativos que a BlackRock tinha em combustíveis fósseis.[5]
No entanto, em 2020, as alterações climáticas ocuparam apenas o décimo primeiro lugar na lista das quinze principais preocupações dos CEOs, apesar do aviso do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas de que as mudanças são a mais grave ameaça existencial que o mundo enfrenta neste momento em termos de terra, oceanos, economia, saúde e coesão social (Intergovernmental Panel On Climate Change, 2019a; 2019b). Na verdade, um relatório do Greenpeace divulgado no fórum de Davos revelou que os bancos e os fundos de pensões cujos CEOs estavam presentes em Davos fizeram em conjunto empréstimos ou investimentos em empresas de combustíveis fósseis no valor de 1,4 trilhão de dólares (Greenpeace International, 2020). Ilustrando a falta de consenso entre as elites globais, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Steven Mnuchin, utilizou a reunião de Davos para ridicularizar Greta Thunberg e seus apelos ao desinvestimento em combustíveis fósseis. “Não acreditamos que deva haver impostos de carbono”, disse ele. “Queremos reduzir os impostos. Acreditamos que a indústria pode lidar sozinha com essa questão.”[6] Nem mesmo os perigos extremos para o futuro do planeta superaram as diferenças entre os líderes do capitalismo, o que compromete as perspectivas de uma ação significativa.
Outro relatório divulgado no fórum de Davos 2020, o da Oxfam International, concluiu que os 2.153 bilionários do mundo têm agora mais riqueza do que os 4,6 bilhões de pessoas que constituem 60% da população do planeta (Lawson et al., 2020). Para enfrentar esse problema de crescente desigualdade de renda, os participantes de Davos teriam de fazer mudanças significativas nas políticas fiscais, comerciais, salariais, de educação, de cuidados de saúde, de gênero e de desenvolvimento econômico, um ímpeto que parecia faltar ao encontro na Suíça.
Alguns participantes em Davos manifestaram abertamente o apoio a um novo pensamento. Um dos destaques do evento foi a presença de will.i.am, apresentado como um inovador criativo, futurista, artista, investidor de tecnologia, fundador e diretor-executivo da I.AM+. Ele disse aos participantes de Davos: “É uma nova década, pessoal. Esta década vai definir o futuro dessa doideira que é a humanidade”.[7]
Se os CEOs deixaram Davos com preocupações, seus receios explodiram apenas algumas semanas mais tarde, quando o vírus Sars-CoV-2 se disseminou entre as populações de todo o mundo. A covid-19 não só matou ou adoeceu milhões de pessoas em países de baixa, média e alta rendas, como também desencadeou uma crise econômica global que rivalizou com a Grande Depressão de 1929.
Nesse contexto, A que custo? analisa o papel que o capitalismo desempenha na formação do “futuro dessa doideira que é a humanidade”. O livro examina como as transformações do capitalismo do século XXI mudaram a busca das pessoas por bem-estar e felicidade e pelas necessidades básicas de alimentação, cuidados de saúde, educação e trabalho. Longe do glamour de Davos, investigo as interações de indivíduos comuns com as corporações à medida que seguem com suas tarefas diárias e procuram saúde e satisfação para si próprios, suas famílias e comunidades. Pergunto se, em meio ao cotidiano, aqueles que desejam um mundo mais saudável, mais justo e sustentável poderiam criar novas alianças capazes de, com o tempo, criar outro mundo no qual a necessidade humana tenha precedência sobre o lucro. Concentro-me nos Estados Unidos, o país que mais conheço. Porém, uma vez que as experiências diárias dos estadunidenses moldam as (e são moldadas pelas) experiências das pessoas em toda parte, minha perspectiva é inevitavelmente global. (…)
O papel das corporações no capitalismo moderno
Até há pouco tempo, falar de capitalismo nos Estados Unidos fazia com que a pessoa parecesse ingênua ou talvez datada, presa a uma ideologia antiquada do século XIX. Alguns líderes empresariais reivindicaram o título — a revista de negócios Forbes adotou orgulhosamente o slogan “a ferramenta capitalista”. Porém, termos mais evasivos como “sistema de livre-mercado” acabaram sendo privilegiados por líderes empresariais, políticos, opinião pública, acadêmicos e meios de comunicação.
A crise financeira de 2008 trouxe a palavra de volta ao discurso dominante. O livro do economista Thomas Piketty O capital no século XXI, lançado em 2013, se transformou em um best-seller improvável. Nos anos seguintes, foram publicadas mais de três dúzias de novos livros e um número incalculável de artigos sobre o tema. Como aves raras na floresta tropical, foram identificadas e dissecadas novas espécies de capitalismo, incluindo o capitalismo de vigilância, o neoliberal, o de cassino, o de desastre, o carcerário, o supercapitalismo, o capitalismo de compadres, o predatório, o filantropo e mais (Zuboff, 2019 [2021]; Heller, 2011; Wright, 2019). Em 2020, a revista Foreign Affairs, voz do sistema de políticas econômicas e internacionais dos Estados Unidos, publicou uma série de artigos sobre “o futuro do capitalismo”, muitos dos quais escritos por economistas ganhadores do Prêmio Nobel, além de uma avaliação sóbria das perspectivas (Rose, 2020). A pandemia de covid-19 suscitou outras questões quanto à compatibilidade entre capitalismo e bem-estar.
Este livro se centra na variante do capitalismo que surgiu nos Estados Unidos nas últimas décadas do século XX e durante o XXI. O capitalismo norte-americano, um sistema global que influencia todas as outras nações (e é influenciado por elas), é uma estrutura complexa que muda no tempo e no espaço. Como observou o economista político Fred Block, os defensores do capitalismo moderno afirmam frequentemente que ele é um arranjo natural que segue leis fixas, sendo, portanto, o inevitável sistema social e econômico global do século XXI (Block, 2018). Mas mesmo uma análise superficial da variação das formas capitalistas no século passado na Europa, nos Estados Unidos, na China, na Rússia e em países emergentes de renda mediana contradiz esse mito simplista.
Como pesquisador de saúde pública, minhas principais motivações para estudar o capitalismo moderno são compreender seu impacto no bem-estar humano e na saúde planetária, identificar as características que potencializam ou mitigam seus danos e descobrir estratégias que os reduzam.[8]
Por essas razões, estou especialmente interessado em compreender os agentes — indivíduos e organizações — cujos comportamentos, práticas e decisões influenciam o bem-estar. Portanto, as corporações são personagens centrais nessa história.
Por que o enfoque nas corporações? Indivíduos gananciosos ou sem escrúpulos não seriam a raiz isolada do problema — os maus atos de pessoas como Martin Shkreli, o fundador e antigo CEO da Turing Pharmaceuticals, que comprou a licença de um medicamento que salva vidas e depois aumentou o preço de 13,50 dólares para 750 dólares por comprimido, ou Elizabeth Holmes, CEO da Theranos, que angariou mais de setecentos milhões de dólares de capitalistas de risco e investidores privados com base em falsas alegações de que ela havia descoberto avanços nas tecnologias de análises sanguíneas? E outras instituições também não seriam responsáveis pelo declínio da satisfação com a vida dos norte-americanos — burocracias governamentais ineficientes ou corruptas; organizações religiosas mais preocupadas em proteger a própria ideologia ou em promover os próprios valores morais; ou pais que abdicaram da responsabilidade de criar crianças saudáveis e bem-comportadas?
É claro que muitos indivíduos e organizações partilham a responsabilidade pelos problemas mais graves do mundo. Mas, desde a Segunda Guerra Mundial, existe um amplo consenso de que as corporações se tornaram a força econômica, política e social mais poderosa do planeta. Em 1959, refletindo as opiniões de executivos empresariais, o vice-presidente da Ford Company, William Gossett, escreveu que a empresa moderna é a instituição dominante em nossa sociedade (Gosset, 1968). Ao deixar o cargo, em 1961, o presidente Dwight Eisenhower alertou para a ascensão do complexo militar-industrial, uma aliança entre corporações de defesa e os militares norte-americanos que, na opinião dele, punha em risco nossas liberdades e os processos democráticos (Eisenhower, 1961).
Em 1977, John Kenneth Galbraith, o economista que estudou o poder corporativo, escreveu que a corporação moderna era
a instituição que mais muda as nossas vidas e a que menos compreendemos ou, mais corretamente, procuramos tão fortemente não compreender. […] Semana a semana, mês a mês, ano a ano, ela exerce uma influência maior em nosso meio de vida e em nossa maneira de viver do que sindicatos, universidades, políticos e governo. (Galbraith, 1977, p. 257)
Para compreender como o capitalismo moderno influencia o nosso “meio de vida e a maneira como vivemos”, é necessário investigar não um sistema abstrato, mas as instituições específicas cujas decisões determinam o que as pessoas comem, como elas são instruídas, onde e como trabalham.
O poder crescente das corporações para moldar vidas é resultado da mudança do seu papel em nossa sociedade. Como consequência das tendências que moldaram o capitalismo moderno, nenhum outro tipo de organização moderna acumulou tanta tecnologia, capital e poder político. Nenhum tem a capacidade de penetrar em tantos aspectos da vida cotidiana de tantas pessoas. Nenhum tem o alcance global ou a capacidade de agir com tão poucas restrições estruturais. Ao contrário dos governos, que não têm como se deslocar para outro país se caírem em desgraça com os eleitores, as empresas podem deslocar capital, trabalhadores e mercados para outras nações quando os líderes políticos emergentes procuram restringir sua autonomia.
É claro que nem o capitalismo, nem as corporações são homogêneos. Nem sempre eles concordam entre si, e seus conflitos podem tanto promover o bem-estar como intensificar os danos que causam. Mas, em comparação com governos, eleitores ou grupos da sociedade civil, os valores e as práticas comuns das corporações têm muito em comum e permitem que as maiores empresas transnacionais falem de maneira bastante semelhante sobre muitas questões globais.
Para aqueles preocupados em aumentar o bem-estar global, as corporações constituem um foco de investigação particularmente pertinente. Em comparação com a mudança de comportamento dos 7,7 bilhões de pessoas do mundo, com os ambientes de centenas de milhares de comunidades ou com os milhares de culturas que influenciam as pessoas, mudar as práticas corporativas e políticas das duas mil corporações que dominam a economia mundial é conceitualmente, se não politicamente, simples.
Quão importantes são essas empresas líderes para a economia mundial? As duas mil maiores empresas de capital aberto da lista “Forbes Global 2000”, de 2018, incluíam corporações de sessenta países que representam 39,1 trilhões de dólares em vendas, 3,2 trilhões de dólares em lucros e 189 trilhões de dólares em ativos. As 288 maiores empresas privadas da lista de 2019 acrescentaram a esse montante mais 1,7 trilhão de dólares em receitas.[9]
Entre 2003 — quando a Forbes compilou a primeira lista “Global 2000” — e 2018, o valor dos ativos dessas empresas quase duplicou em dólares corrigidos pela inflação.[10] Em 2011, as corporações representavam 5% de todos os negócios, mas ganhavam 62% das receitas anuais.[11] Das duzentas organizações do mundo com as maiores receitas anuais, 157 são corporações, e apenas 43 são governos.[12]
Desde a década de 1970, as mudanças no capitalismo operaram uma transformação nos Estados Unidos para uma economia e política de bem-estar orientadas para o consumo, algo que surgiu após a Segunda Guerra Mundial. Como resultado, as corporações globais, a face pública e os agentes executivos do capitalismo do século XXI interagem agora com governos, sociedade civil e movimentos sociais de novas maneiras. Hoje, as decisões de corporações, bancos e outras empresas moldam a forma como os indivíduos vivenciam os seis pilares da saúde — alimentação, educação, cuidados de saúde, trabalho, transportes e relações sociais. Por sua vez, as escolhas que as pessoas fazem entre as opções oferecidas pelas corporações determinam a saúde dos indivíduos, das famílias, das comunidades e do próprio planeta.
O capitalismo moderno tem trazido benefícios surpreendentes a muitas pessoas nos Estados Unidos e em todo o mundo. Sua criatividade e inovação dão a esperança de que os problemas que confrontaram a humanidade desde o seu início podem ser resolvidos. Grandes empresas globais empregam milhões de pessoas, pagam impostos, produzem bens vitais, como medicamentos e alimentos essenciais, além de produtos e serviços de entretenimento, permitem que as pessoas se comuniquem facilmente vencendo o que antes eram fronteiras e reduzem o trabalho pesado e monótono.
No século XX, o capitalismo mostrou sua notável capacidade de promover o crescimento econômico e de gerar riqueza, mesmo que tenha deixado a desigualdade, na maior parte das vezes, pelo caminho. No entanto, para centenas de milhões de norte-americanos e bilhões em outras partes do mundo, a forma como o capitalismo evoluiu mina a saúde, aumenta a desigualdade, agrava as alterações climáticas e corrói a democracia. Alimentação, educação, cuidados de saúde, trabalho, transportes e relações sociais constituem as necessidades mais básicas da vida. Convertê-las em mercadorias lucrativas aos fabricantes, quando deveriam ser disponibilizadas à sociedade, impõe um alto custo ao bem-estar humano e planetário. Dialogar sobre os benefícios e os custos do capitalismo contemporâneo pode preparar o terreno para uma reflexão mais profunda sobre ajustes e alternativas.
Na década de 1970, a marca do capitalismo que dominara os Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra — um acordo forjado em uma luta que refletia um compromisso entre corporações e alguns setores da população trabalhadora — entrou em desgaste. Mapear o panorama dinâmico das influências empresariais contemporâneas na vida cotidiana mostra como as corporações concebem agora estilos e condições de vida que permitem aos Estados Unidos alcançar os seus objetivos de aumentar as receitas, os lucros e o valor para os acionistas, mantendo sua influência, ao mesmo tempo, na política e na economia.
O aumento do consumo de massa
Após a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos criaram um sistema econômico e político que promoveu o consumo de massa como motor do crescimento econômico. A inovação de Henry Ford de pagar aos trabalhadores o suficiente para que pudessem comprar os automóveis que produziam criou um sistema de produção e consumo que estimulou o crescimento durante décadas. Levou também à criação de uma classe média que forneceu apoio político e moral para sustentar esse sistema. O movimento operário ganhou importantes concessões das elites dirigentes, que expandiram a participação dos trabalhadores nesse crescimento.
O desenvolvimento paralelo de um Estado de bem-estar social que, ao longo do tempo, forneceu previdência social, acesso à saúde, medicamentos, vale-alimentação, habitação pública e outros benefícios sociais protegeu as populações vulneráveis contra as oscilações do mercado e também conteve as divergências dos que ficaram de fora da economia em crescimento. Nas décadas de 1960 e 1970, novas regulamentações federais em termos de meio ambiente, saúde, proteção ao consumidor e normas empresariais forneceram proteção adicional contra os danos corporativos.
É claro que essa economia orientada ao consumo e protegida por um Estado de bem-estar social não se deu sem conflitos. Setores significativos da população — negros, imigrantes, pessoas pobres, mulheres, que em conjunto compunham uma maioria — ficaram inadequadamente protegidos ou desprotegidos. Os direitos civis, trabalhistas, ambientais, das mulheres e outros movimentos sociais desempenharam papel importante no reforço dessas proteções e no acompanhamento de sua implementação.
Na década de 1970, porém, a evolução social, econômica e política vigente em níveis local, nacional e global desafiou esse modelo de crescimento. Várias dessas tendências justificam maior atenção.
Nos últimos 75 anos, a economia de consumo nos Estados Unidos cresceu notavelmente. No fim da Segunda Guerra, os gastos dos consumidores ultrapassaram a produção de guerra para impulsionar o crescimento da economia norte-americana. Entre 1945 e 1949, os norte-americanos compraram vinte milhões de geladeiras, 21,4 milhões de carros e 5,5 milhões de fogões, uma tendência que perdurou na década de 1950.[13] Em 2016, os gastos dos consumidores representaram 68% do PIB, tornando-os a força motriz da economia.[14] Entre 1945 e 2017, os gastos anuais de consumo pessoal do norte-americano médio aumentaram quase cinquenta vezes (sem considerar o ajuste de inflação).[15]
À medida que mais norte-americanos compravam geladeiras, carros e televisores e, mais tarde, computadores e telefones celulares, os gastos de consumidores aumentavam sua participação na economia, e as grandes corporações se tornavam cada vez mais dependentes daquilo que os norte-americanos gastavam. Encontrar novas formas de fazer com que a população gastasse mais passou a ser o caminho preferencial tanto para CEOs quanto para líderes políticos. Para os CEOs, o aumento das despesas de consumo era a forma de continuar a aumentar as receitas e os lucros; para os políticos liberais e conservadores, a maneira de oferecer uma vida melhor aos eleitores. De certa forma, muitos consumidores também se beneficiaram do aumento do consumo, mas, desde os anos 1970, os custos de saúde, ambientais e de justiça social implicados nisso cresceram ainda mais rapidamente.
Dois fatores ameaçaram o crescimento ilimitado. Recessões econômicas, como a Grande Recessão de 2007 a 2009, quando o PIB diminuiu 5,1%, e suas predecessoras em 1929-1933, 1980-1982 e 1990-1991,[16] interromperam o consumo e fizeram do restabelecimento dos gastos dos consumidores a principal prioridade empresarial e política.
Para reduzir o impacto de tais retrações econômicas nos lucros, as empresas elaboraram várias medidas de reação. Entre elas, incluem-se redução dos custos de mão de obra, automatização ou deslocamento de fábricas para estados ou países com salários mais baixos, baixa de preços de alguns produtos e foco em mais vendas a consumidores de alta renda. Os cartões de crédito, introduzidos nos anos 1960, permitiram ainda mais gastos dos consumidores, ao mesmo tempo que aumentaram o endividamento, outra estratégia-chave para promover o consumo. A ampliação do crédito hipotecário de casas no período que antecedeu o colapso da bolha imobiliária e a recente escalada das dívidas universitárias e de automóveis ilustram essa prática.
Uma ameaça mais constante é a superprodução, ou seja, produzir mais do que a capacidade de compra dos consumidores, levando ao excesso de estoques e à perda de lucros. Marxistas e capitalistas concordam que a rentabilidade requer o aumento da produtividade dos trabalhadores, mantendo os honorários baixos. Uma forma eficiente de reduzir os custos é diminuir os gastos de mão de obra, seja por meio da utilização de novas tecnologias de automação, seja mediante transferência de empregos para regiões nas quais os trabalhadores podem ser pagos com salários menores. Ambas as estratégias ameaçam o modelo fordista de aumentar o consumo pagando mais aos trabalhadores.
De 1920 a 1970, a produtividade das fábricas norte-americanas, medida pela produção por hora, cresceu numa velocidade bem superior com relação às décadas anteriores ou posteriores, um aumento que os economistas atribuem à rápida inovação e às mudança tecnológicas (Gordon, 2016, p. 13-8). No entanto, na década de 1970, as empresas norte-americanas produziam muito mais do que podiam vender. Para manter os lucros face ao declínio das vendas, as empresas decidiram reduzir os custos de mão de obra, um gatilho para terceirização, automação e campanhas empresariais contra a sindicalização. Essas estratégias, no entanto, levaram a décadas subsequentes de salários estagnados que reduziram o poder de compra dos trabalhadores e a mais declínios nas receitas das empresas — um círculo vicioso de queda. Outra estratégia para aumentar o consumo que se tornou cada vez mais importante foi desenvolver novos mercados em outras partes do mundo.
Em meados do século XX, o capitalismo norte-americano havia criado um sistema que satisfazia as necessidades de muitas pessoas, mas ameaçava cada vez mais o bem-estar humano e planetário a longo prazo. Nas últimas décadas, novas tendências econômicas e sociais tornaram esse sistema ainda mais tóxico. (…)
Hoje, duas visões do mundo, ambas visíveis no Fórum Econômico Mundial de 2020 em Davos, competem pela atenção da população dos Estados Unidos. A primeira, dominante, afirma que a economia e a política da nação e do mundo são moldadas pela lógica inevitável dos mercados e que o melhor futuro resultará do alinhamento das aspirações e dos objetivos individuais e coletivos a essa lógica. Para esses verdadeiros crédulos, cada crise, das mudanças climáticas à pandemia de covid-19, incluindo o racismo estrutural, prova a inexorabilidade e a resistência do capitalismo. Alguns defensores desse ponto de vista reconhecem que há custos para as escolhas impostas pelos mercados, mas afirmam que os ônus são modestos em comparação com os benefícios. Além disso, segundo eles, a experiência dos últimos cinquenta anos prova que não existe alternativa viável.
Mas uma aliança crescente entre movimentos sociais, cidadãos desiludidos, jovens e acadêmicos fomenta uma visão alternativa. Eles afirmam que a continuação dessa abordagem dominante põe em perigo, acima de tudo, o bem-estar e mesmo a sobrevivência da humanidade. Salientam que as atuais dificuldades globais são resultado de decisões tomadas por corporações, governos, comunidades e indivíduos. Insistem que numerosos arranjos alternativos — cooperativas de trabalhadores e consumidores, iniciativas ampliadas de alimentação, cuidados de saúde e habitação oferecidas pelo setor público, desenvolvimento econômico centrado na comunidade, mobilizações para desmantelar estruturas que perpetuam o racismo e parcerias globais de baixo para cima — estão, agora mesmo, sendo testados em todo o mundo. Portanto, nenhuma configuração política e econômica é inevitável. Agora, como no futuro, indivíduos e organizações tomarão as decisões econômicas, políticas e sociais que determinarão as oportunidades vindouras de bem-estar, felicidade e sobrevivência planetária.