O ciclo de manifestações de massas de 2019 abriu no Chile um genuíno momento constituinte. Novos atores políticos passaram a ocupar o campo institucional e agora vão reescrever a Constituição. Para entender o sucesso do enfrentamento ao entulho autoritário da ditadura neoliberal de Pinochet, é fundamental olhar para o ciclo de lutas que envolveu protestos estudantis, indígenas e feministas.
Talita São Thiago Tanscheit, Jacobin Brasil, 15 de junho de 2021
Sob o olhar atento dos demais países da América Latina e do mundo, nos dias 15 e 16 de maio de 2021 o Chile foi às urnas para eleger seus representantes à Convenção Constitucional, órgão encarregado de escrever uma nova Constituição para o país. A convocatória para a constituinte havia sido aprovada meses antes, no Plebiscito Nacional de 25 de outubro de 2020, quando aproximadamente 80% dos eleitores foram favoráveis à redação de um novo ordenamento jurídico e constitucional.
O processo põe fim à Constituição Política de 1980, instituída durante a ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990) e baseada nos conceitos de poder constituinte de Carl Schmitt e de economia de mercado de Friedrich Hayek. A Carta Constitucional pinochetista tinha como objetivo declarado “proteger” a democracia do próprio povo, por meio de um desenho centralizado e autoritário, requerendo maiorias parlamentares de dois terços ou três quintos para a sua modificação. O texto afirmava a ordem social de mercado como eixo constitutivo do país. Neste contexto, a função social do Estado é restrita a temas de “lei e ordem”. Direitos sociais fundamentais? Não existem. Não à toa o Chile é o único país do mundo em que quase 100% de sua água é privatizada.
A Constituição de 1980 foi aprovada no Plebiscito Nacional, na macabra data 11 de setembro (remetendo ao dia da derrubada do governo socialista democrático de Salvador Allende), portanto, em plena ditadura militar. A farsa do processo fica evidente quando se leva em conta as inúmeras acusações de ausência de registros eleitorais, censura a opositores e fraudes. Desde a sua instituição, a flagrante ilegitimidade de origem do texto é denunciada. Não apenas pelo processo em si, mas pelo terrorismo de Estado generalizado que vigorava à época: foram mais de 40 mil mortos e desaparecidos durante o autoritarismo. Como a Constituição pinochetista foi conservada mesmo após a transição política?
A democracia no Chile foi parcialmente restabelecida pelo Plebiscito Nacional de 05 de outubro de 1988 – o conhecido “Plebiscito do No”, em que 56% dos eleitores foram favoráveis à saída de Pinochet do poder e à convocação imediata de eleições gerais em 1989. No entanto, o acordo realizado entre as duas coalizões políticas do país para a transição à democracia, a situacionista Alianza (atual Chile Vamos) e a oposicionista Concertación (cujo futuro é incerto), foi pactuado por meio de dois consensos: a continuidade da Constituição de 1980, com seus “enclaves autoritários”, e do sistema eleitoral binominal, aprovado já em 1989, ao final da ditadura militar, com o propósito de garantir uma sobrerrepresentação da direita no parlamento, impondo um equilíbrio artificial entre as forças políticas no país. Esta transição inacabada consagrou o neoliberalismo como modelo socioeconômico, com suas diretrizes gerais definidas em pleno autoritarismo.
Por esta razão, nas últimas três décadas a competição política e eleitoral no Chile esteve imobilizada por uma camisa de força neoliberal, um consenso institucionalizado na forma mesma do Estado, no interior do qual competiam estas duas coalizões que representaram as opções Si, à direita, e No, à esquerda, no Plebiscito Nacional de 1988. Um primeiro momento é marcado por um ciclo de 20 anos de governos da Concertación, com os democrata-cristãos Patricio Aylwin (1990-1994) e Eduardo Frei Ruiz Tagle (1994-2000) e os socialistas Ricardo Lagos (2000-2006) e Michelle Bachelet (2006-2010). Um segundo momento é marcado por um revezamento entre a esquerda e a direita, com a vitória de Sebastián Piñera (2010-2014), o retorno de Bachelet (2014-2018), e o posterior retorno de Piñera em 2018. Neste acordo, prevaleceu uma reflexão crítica sobre o governo Allende e a experiência da Unidade Popular. Até mesmo os socialistas acreditaram que a polarização ideológica e a hiperpolitização do Estado e da sociedade civil por parte da esquerda teriam precipitado a ruptura democrática da época. Assim, o temor era de que mobilizações populares, assim como a participação das bases e a existência de divergências programáticas, pudessem colocar em risco a democracia, que passa a ser sinônimo de estabilidade política e desprovida de qualquer ideal de igualdade.
As heranças da ditadura militar e dos acordos estabelecidos na transição política foram parcialmente removidas em dois momentos: i) na Reforma Constitucional de 2005 de Lagos, com a consolidação do poder civil sobre a autoridade militar, com destaque para a eliminação dos senadores “designados” ou “biônicos” (oriundos necessariamente das Forças Armadas); e ii) na substituição do sistema eleitoral binominal por um sistema eleitoral proporcional, em 2015, por Bachelet. No entanto, a “reforma das reformas”, a constitucional, não foi realizada.
A dupla transição chilena, a uma economia de mercado e a uma democracia “incompleta” ou “semissoberana” foi sustentada por estas duas coalizões políticas. Se o neoliberalismo foi fortemente questionado pela esquerda latino-americana, no Chile ele permaneceu intacto, no máximo “corrigido”, ou com “um rosto humano”. O fim da herança autoritária está agora finalmente em marcha, a despeito e apesar dos partidos políticos tradicionais. O que mudou o clima do país e tornou um processo de democratização radical possível foi a reativação da sociedade civil e dos movimentos sociais, que colocaram em questão, na prática militante, o “modelo chileno”. Os protestos e as mobilizações populares já vinham ganhando força há anos, formando uma nova geração política e preparando o terreno para transformações mais profundas, antes mesmo da explosão insurrecional de 2019.
Outubro de 2019 e a reconstrução da Ação Coletiva
Para entender outubro de 2019 no Chile, momento do divórcio definitivo entre a esfera social e política no país, é necessário retomar aos ciclos de mobilizações populares anteriores. Desde meados dos anos 2000, uma série de protestos vêm dando uma nova cara à sociedade e à política, (re)politizando a até então inquestionada trajetória de desenvolvimento social e econômico e impulsionando novos debates públicos – um processo similar ao da redemocratização brasileira, quando novos personagens entraram em cena e criaram as condições para o exercício da democracia no país.
Em 2006, estudantes secundaristas realizaram as primeiras manifestações massivas desde o retorno à democracia. O então chamado movimento pinguino denunciou as diferenças entre a qualidade da educação pública e privada, com seus efeitos segregadores. Já aparecia aí a crítica à privatização dos serviços públicos realizada durante a ditadura militar. Em 2011, a mesma geração de estudantes, agora universitários, colocou em xeque definitivamente o “modelo chileno” a partir da reconstrução da ação coletiva. Os protestos começaram como uma reação ao endividamento provocado por um esquema de crédito educacional introduzido em 2006, mas rapidamente passaram à reivindicação do direito fundamental à educação, em um país onde não havia ensino superior gratuito. Não à toa, em 2013 várias dessas lideranças estudantis foram eleitas ao Legislativo, em um primeiro ímpeto de renovação política no país, como as comunistas Camila Vallejo e Karol Cariola, e os atualmente frenteamplistas Giorgio Jackson e Gabriel Boric.
A partir daí a expansão e a diversificação da ação coletiva tem sido a tônica de um país onde protestos e mobilizações populares tornaram-se parte da paisagem. Agora não só de estudantes, mas de trabalhadores, ambientalistas, feministas ou mesmo aposentados e pensionistas. Com agendas variadas, essas formas de ação coletiva já defendiam a construção de outros mundos possíveis, pondo em questão o modelo socioeconômico neoliberal que limita a democracia em razão do entulho autoritário que a transição pactuada não foi capaz de se desfazer. Ao estar em movimento, a sociedade chilena percebeu que suas demandas por direitos sociais sempre acabariam esbarrando na Constituição Política de Pinochet.
O mundo da política institucional teve dificuldades para compreender as transformações em curso no Chile. Em nome da estabilidade política e da manutenção do status quo, desprezou os novos personagens, agora já em cena, e suas demandas. Michelle Bachelet, mais sensível a este novo cenário, foi eleita em 2013 com uma ambiciosa agenda de reformas. Mas tudo o que conseguiu efetivamente foi substituir o sistema eleitoral binominal por um sistema eleitoral proporcional, similar ao brasileiro. Contudo, a mãe de todas as reformas – a constitucional – não foi realizada. O “peso da noite”, expressão que faz referência ao trauma da ditadura militar e aos obstáculos a transformações mais substantivas no país, prevaleceu. Pouco antes de deixar o poder, a presidenta chegou a enviar ao Congresso uma proposta para a elaboração de uma nova Constituição, cujo objetivo era estabelecer “uma nova maneira de compreender os direitos fundamentais e a estrutura de poderes do Estado”, deixando a sua concretização para Piñera. O presidente não demonstrou interesse algum em dar continuidade a um processo constituinte, em atitude similar à quando, como presidente, ignorou as demandas estudantis de 2011. Mas, dessa vez, o país já não era mais o mesmo.
A primeira crise política do segundo governo de Piñera ocorreu após a morte de um líder mapuche em 14 de novembro de 2018. Camillo Catrillanca, que havia sido dirigente estudantil em 2011, era werken (porta-voz) da comunidade de Temucuicui, defensor da autonomia deste território e neto do lonko (chefe) Juan Catrillanca. Seu assassinato foi cometido pelo “Comando Jungla”, tropa de elite da polícia nacional do Chile treinada, não por acaso, pela polícia nacional da Colômbia. O assassinato desencadeou uma onda de protestos ao redor do país e a Anistia Internacional definiu a atuação policial como “indignante a alarmante”, em mais um episódio de perseguição e criminalização do Estado chileno aos povos originários.
Quase um ano depois, o que ficou conhecido como o “estallido social” emerge a partir da expansão e da diversificação da ação coletiva, que vinha ganhando corpo e substância ao longo dos últimos quinze anos. O ciclo de manifestações de massas foi iniciado em 14 de outubro de 2019. Se a causa imediata foi o aumento da tarifa de transportes públicos em Santiago, com centenas de estudantes organizando atos para pular as catracas do metrô, em 18 de outubro já existiam vários focos de mobilizações populares e protestos por todo o país. Incorporando um amplo espectro social, das classes baixas às médias, as diversas reivindicações expressas em seus cartazes foram rapidamente convertidas em um descontentamento generalizado com o alto custo de vida do “modelo chileno” e um clamor pela elaboração de uma nova Constituição. Sua principal vitória consistiu em escancarar a perversidade do modelo socioeconômico estabelecido durante a ditadura militar. Os cartazes nas manifestações diziam: “não são 30 pesos, são 30 anos”, em referência ao casamento infeliz entre o neoliberalismo e a democracia protegida em um dos países mais desiguais da região mais desigual do mundo que é a América Latina.
A única resposta do governo ao estallido social foi a repressão policial violenta. Segundo informe da Anistia Internacional, o Estado fez o uso excessivo da força para provocar dor e sofrimento deliberado, deixando graves sequelas físicas e psicológicas nos manifestantes. Piñera afirmou que o Chile estaria “em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada e ninguém”. O presidente não só declarou Estado de emergência e instituiu o toque de recolher, como foi responsável pelas mais graves violações de direitos humanos desde o retorno à democracia. Os números deixam evidentes a brutalidade da repressão: em 45 dias foram 5.558 vítimas de violência institucional, das quais 1.938 lesões por armas de fogo, 647 por lesões graves e 285 lesões oculares pelo impacto de balas de borracha; 12.500 entradas em urgência de hospitais públicos; 70 hospitalizações; 134 investigações por tortura; 4.158 investigações por maus tratos e 31 mortes.
Nem mesmo a violência de Estado ou o toque de recolher foram capazes de conter os multitudinários e numerosos protestos ao redor do país. A situação havia saído de controle, para se transformar em um amplo e contagiante processo de efervescência social. Se inicialmente o sentido comum das mobilizações populares não era nítido, pouco a pouco os próprios manifestantes foram compreendendo que, para que o Chile despertasse de vez, seria necessário cortar o mal pela raiz: por um fim definitivo à Constituição de 1980 e enterrar o legado neoliberal e autoritário de Pinochet. Foi com o objetivo de dar resposta ao estallido social que, a despeito de Piñera, o Congresso realizou o Acordo Nacional pela Paz Social e uma Nova Constituição (em 15 de novembro de 2019), que convocou o Plebiscito Nacional.
Já nesta ocasião, a direita, fortemente engajada na campanha contrária a uma nova Constituição, sofreu uma grande derrota. A opção rechaço foi vitoriosa em apenas 5 das 346 comunas do país: em Las Condes, La Reina e Vitacura, comunas da cidade de Santiago onde vive a cúpula militar, empresarial e política do país; e na Antártica e Colchane, onde há forte presença das Forças Armadas. Nas eleições dos constituintes, um resultado similar foi reproduzido.
O processo constituinte
A Convenção Constituinte é fruto de um longo processo de questionamento ao paradigma neoliberal e de politização das desigualdades socioeconômicas e socioculturais por parte de novos atores sociais e políticos do Chile. Os cinco pactos eleitorais inscritos para as eleições de constituintes foram: à direita, o Vamos Por Chile, com 37 eleitos; à esquerda, a Lista do Aprovo, da ex-Concertación, com 25 eleitos; a Lista Aprovo Dignidade, de comunistas e frenteamplistas, com 28 eleitos; e também à esquerda, mas independentes, a Lista do Povo, com 26 eleitos; e a Lista Independentes por uma Nova Constituição, com 11 eleitos. Para além dessas coalizões, são mais 11 independentes e 17 representantes de povos originários eleitos mediante uma política de quotas.
Quatro elementos chamam atenção nestas eleições, que traduziram o estallido social em um estallido também eleitoral. Em primeiro lugar, a derrota histórica da direita, que não obteve o percentual de cadeiras necessárias para exercer o poder de veto (33%) e condicionar os acordos do processo constituinte. O resultado é contra intuitivo, uma vez que o sistema eleitoral proporcional chileno premia a unidade e castiga a divisão, e a direita se inscreveu em uma lista única, que incluiu inclusive a ultra direita. O resultado deve-se em parte à baixa aprovação do atual presidente direitista Sebastian Piñera, e em parte ao próprio isolamento político da direita. É como se este campo político se mostrasse incapaz de ver que o Chile vai muito além das comunas mais ricas de Santiago onde suas cúpulas vivem, estudam e trabalham. Em um dia em que também ocorreram eleições regionais e locais, a direita foi derrotada em comunas emblemáticas, como Viña del Mar, Santiago, Nuñoa e Maipú, que serão agora governadas pela esquerda.
Em segundo lugar, o declínio da ex-Concertación, que não será a coalizão política oposicionista majoritária da Convenção Constitucional. Se os socialistas tiveram um desempenho razoável, obtendo 15 cadeiras e sendo o principal partido político de esquerda na constituinte, democrata-cristãos foram arruinados, elegendo apenas 2 cadeiras. Esta baixa performance é surpreendente para aquele que outrora foi o fiel da balança do sistema político chileno. O que as eleições gerais de 2017 já indicavam, quando a recém fundada Frente Ampla obteve um bom desempenho ao Executivo e ao Legislativo, foi confirmado: o mundo do período da “transição política” chegou mesmo ao fim. Uma consequência é a pluralização da representação política no Chile e o rompimento com o duopólio da Alianza e da Concertación.
Em terceiro lugar, o êxito da aliança entre os históricos Partido Comunista e a novíssima Frente Ampla, que surge em 2017 e como fruto desta reconstrução da ação coletiva no país. O pacto terá 3 cadeiras a mais no processo constituinte em relação à ex-Concertación e se consolida como uma nova coalizão política de esquerda de peso no Chile. A Lista Aprovo Dignidade mostrou ser a que está mais conectada às demandas sociais, e que melhor soube ler o estallido social de 2019. Não à toa as novas prefeitas de Santiago e de Viña del Mar, a comunista Irací Hassler e a frenteamplista Macarena Ripamonti, para citar dois exemplos, são duas mulheres jovens com forte engajamento no movimento feminista e nas lutas populares.
Em quarto lugar, e a grande novidade da Convenção Constitucional, é a irrupção dos independentes, os grandes vitoriosos destas eleições: serão quase 1/3 do processo constituinte. Os resultados evidenciam o mal-estar generalizado com o mundo político institucional, mesmo com comunistas e frenteamplistas, e representam uma crítica implacável a todo sistema partidário e uma denúncia aos pontos cegos da transição democrática. Como destaca o sociólogo Alexis Cortés, a marcante presença dos independentes no processo constituinte revela transformações político-culturais que vêm ocorrendo desde os ciclos anteriores de mobilização no país, agora traduzidos em novos equilíbrios políticos.
Giovanna Grandón, motorista de transporte escolar conhecida como Tia Pikachu, em alusão a fantasia que usava durante as manifestações de outubro de 2019, foi a líder de sua lista com 14.797 votos (5,75%). Nas redes sociais, agradeceu “aos estudantes que saltaram as catracas, os que deram sua vida, os que perderam seus olhos, os torturados, e os que nunca saíram das ruas”. A maioria destes independentes não apenas são de esquerda, mas tampouco são oriundos das elites tradicionais do país. O seu comprometimento é com a redação de uma nova Constituição que tenha a sua origem na soberania popular e com os olhos voltados para o povo, a fim de construir um Chile que seja de fato digno para todos e todas.
Vale destacar também a imensa vitória das mulheres. Há anos protagonistas dos protestos e das mobilizações populares no Chile, as feministas conquistaram a paridade na Convenção Constitucional, que será composta por 77 mulheres e 78 homens. Os próximos desafios envolvem a conversão da Convenção Constitucional em um processo deliberativo constituinte capaz de gerar adesão política e legitimidade democrática, diminuindo a distância entre a sociedade e a política.
Lições para a América Latina
A partir deste mês de junho, o Chile terá pela frente 9 meses para redigir uma nova Constituição, prorrogável por mais 3 meses. Ao fim do processo, o texto será submetido a um plebiscito ratificatório com voto obrigatório. Ainda este ano, ocorrerão outras três eleições: o segundo turno de governadores, as primárias presidenciais em 18 de julho, e as eleições parlamentares e presidenciais em 21 de novembro. A marca de todos estes processos é a incerteza. Não teria como ser diferente: depois de anos de uma democracia de acordos organizada em torno de um forte consenso neoliberal, as possibilidades de futuro novamente se reabrem no Chile.
A nova Constituição do Chile será redigida por rostos até então excluídos dos processos políticos no país. Terá paridade de gênero e representação de povos originários. Será mais democrática, inclusiva, legítima e conectada com as demandas que chamaram a atenção da América Latina e do mundo em outubro de 2019. Para a esquerda latino-americana, fica a lição fundamental: se a competição política e eleitoral e a participação nas instituições representativas são sim importantes, é ainda mais importante ter os pés bem fincados no chão das lutas populares. Como nos ensina Frei Betto: “a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam”. Preferências políticas não são estáticas, mas se modificam com o tempo. Muitas vezes não no tempo que gostaríamos, mas podemos, e devemos, agir de forma estratégica para incidir sobre sua velocidade e direção. Mas uma intervenção bem sucedida só é possível a partir de uma conexão profunda com os movimentos sociais e as mobilizações populares tão característicos do experimentalismo democrático latino-americano. Está aí algo que a experiência do Chile pode inspirar para uma necessária atualização programática e renovação política da esquerda na região.
Se a igualdade é hoje o horizonte da sociedade chilena, é fundamental agradecer aos estudantes que estiveram nas ruas em 2006 para retornar e nunca mais sair em 2011; às mulheres que fizeram do feminismo palavra e sentido comum; às populações originárias e à luta pela autodeterminação de seus povos; e a tantas e tantos outros que nunca deixaram de acreditar que poderiam construir um Chile digno. Não no futuro, mas no tempo de suas próprias vidas. Em movimento e em um agir coletivo, estes atores modificaram definitivamente a dinâmica social e política do país e responderam com vida às inúmeras e fracassadas tentativas de perpetuar o status quo chileno. As “grandes alamedas”, anunciadas por Allende, enfim foram abertas, neste que é o início de um processo que, esperamos, irá fazer do Chile não mais o berço, mas a tumba do neoliberalismo.
Talita São Thiago Tanscheit é professora no Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ) e Doutora em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).