Na Argélia, o uso da rádio de onda curta deu voz à revolução. Na África do Sul, houve um comité insurgente para uso popular da tecnologia. A busca da emancipação passou também pela apropriação da tecnologia.
Sophie Toupin, Esquerda.net, 1 de maio de 2021
Durante o movimento anti-globalização do início dos anos 2000, coletivos de tecnologia como o Riseup e o Autistici surgiram para fornecer ferramentas de comunicação autónomas e não-corporativas, além de tutoriais para movimentos sociais se organizarem de forma segura com os novos meios emergentes. Na África do Sul, a campanha Right2Know foi iniciada em 2010 como resposta ao Projeto de Lei de Proteção à Informação do Estado, que visava enfraquecer os direitos de jornalistas e denunciantes ao acesso à informação. Como parte de seu trabalho, a R2K publicou guias para ativistas se protegerem digitalmente.
Para aprimorar a minha própria prática de defesa digital, recentemente participei num workshop virtual oferecido pelo Tech Learning Collective, de Nova Iorque. Este coletivo oferece educação tecnológica para organizadores radicais e líderes comunitários, com atenção especial para grupos carenciados. Estes grupos, que projetam ferramentas e treinos para ativistas, não são uma ocorrência nova. Têm uma história interessante em culturas políticas diversas que remontam, ao menos, às lutas de libertação nacional do século XX. Vejamos dois exemplos, ambos de lutas armadas.
O primeiro foi o trabalho da secção técnica da Frente de Libertação Nacional, movimento que estava à frente da luta argelina contra o colonialismo francês. No ensaio “Ici la voix d’Algérie” (Esta é a Voz da Argélia), Frantz Fanon descreve o segredo da secção técnica: a rádio portátil de ondas curtas, cujo transmissor foi montado num camião em movimento que transmitia mensagens revolucionárias de dentro da Argélia. A transmissão incluía informações sobre os combates, a história do povo argelino, comentários políticos e militares, canções patrióticas e sermões religiosos, encorajando o compromisso com a liberdade e independência do país.
Para ouvir a transmissão revolucionária, a maioria dos argelinos tinha que conseguir aparelhos de rádio projetados por técnicos de rádio argelinos, que começaram a abrir lojas para a venda de aparelhos de rádio usados. Os técnicos inovaram na produção de rádios a pilhas num país que, na sua maioria, carecia de eletrificação. Fanon sugere que a compra desses aparelhos não significou a “adoção de uma técnica moderna para obter notícias, mas a conquista do acesso ao único meio para entrar em comunicação com a Revolução, para conviver com ela”. Por outras palavras, os argelinos não estavam simplesmente a ouvir a transmissão ou a adotar uma tecnologia da informação com fins instrumentais limitados; de facto, alguma coisa mudou na sua disposição como resultado da sua participação nas transmissões como ouvintes.
Quando as autoridades francesas entenderam o poder do Voz da Argélia como uma força vinda de fora do mecanismo disciplinar do Estado colonial, aprovaram uma série de leis para proibir a venda de aparelhos de rádio aos argelinos, a fim de restringir o seu acesso às transmissões. Além disso, como as forças francesas não conseguiram para o transmissor – tentaram bombardear o camião que o transportava, sem sucesso -, a única maneira de silenciar essa voz revolucionária era tentar bloquear as ondas de rádio. Mas mesmo com as tentativas de jamming [produção de interferência nas ondas] por parte da França, a existência da transmissão revolucionária era, por vezes, mais importante simbolicamente do que a capacidade de compreender cada palavra e frase. Todas as noites, “os argelinos imaginariam não apenas palavras, mas batalhas concretas”, diz Fanon, fortalecendo assim a consciência nacional.
A Voz da Argélia tornou-se uma ferramenta para a revolução não apenas através do seu ramo técnico – isto é, o seu conteúdo de transmissão -, mas também performativamente, pois a mera possibilidade técnica das transmissões, contra todas as probabilidades e tentativas de supressão, confirmava que a revolução estava viva.
O segundo exemplo vem do comité técnico que apoiou a luta de libertação nacional sul-africana. Do final dos anos 1950 até o início dos anos 1990, um comité técnico desenvolveu artefactos e treinou militantes e os seus camaradas estrangeiros sobre como usar essas ferramentas para apoiar a luta. A abordagem do comité técnico para a ciência e tecnologia foi influenciada por grandes acontecimentos da Guerra Fria, como o lançamento do Sputnik 1 em 1957. Não foram apenas os atores estatais, como o governo norte-americano, que foram influenciados pelo Sputnik 1, desencadeando um ambicioso programa de investigação científica e tecnológica que levaria à criação da Internet. O lançamento também influenciaria a orientação científica e tecnológica de um movimento de libertação nacional.
Depois de ser forçado ao exílio, o comité técnico e os seus membros continuaram a operar no Reino Unido. Projetaram ferramentas para o povo, como “bombas de panfletos”, lançadores inofensivos de folhetos que explodiriam em áreas lotadas e facilitariam a sua distribuição em massa. A primeira cena do filme Escape from Pretoria, de 2020, é uma boa representação de como as bombas de panfletos funcionavam e como os sul-africanos e estrangeiros brancos, especialmente, podiam usar o seu privilégio para a luta enquanto navegavam facilmente nas áreas brancas.
O comité também criou pequenas caixas contendo amplificadores de áudio conectados a gravadores que seriam deixados em áreas lotadas por militantes anti-apartheid. Graças a um dispositivo de cronometragem, essas caixas tocavam uma mensagem curta de cinco minutos assim que o operador estivesse fora.
Provavelmente, o projeto mais sofisticado do comité técnico foi um sistema de comunicação criptografado que permitiu aos militantes comunicarem secreta e transnacionalmente entre a África do Sul, Zâmbia, Reino Unido, Holanda e Canadá no final dos anos 1980. Durante quase uma década, o comité técnico experimentou as novas tecnologias disponíveis na época, como telemática (combinando computadores e telefones), a programação de computadores e a criptografia, enquanto simultaneamente treinava combatentes anti-apartheid e os seus camaradas para operar tais sistemas. Mais tarde, esses sistemas de comunicação foram incluídos na Operação Vula em meados da década de 1980, uma ação que visava lançar uma guerra popular.
Esses dois exemplos mostram como os coletivos de tecnologia contemporâneos estão enraizados numa história mais ampla de capacidades técnicas, ferramentas e grupos de apoio a lutas passadas e atuais. Na verdade, o investimento prático das lutas de libertação nacional na ciência, tecnologia e comunicação são práticas que podem ter estado mais difundidas do que pensamos. Somente investigando mais profundamente essas tradições radicais de ciência e tecnologia em culturas políticas diversas teremos acesso a um conjunto diferente de materiais e ideias para pensar sobre o que a ciência, a tecnologia e as comunicações revolucionárias podem fazer.
Sophie Toupin é pesquisadora na Escola de Análise Cultural da Universidade de Amsterdão. O seu doutoramento explorou a relação entre as tecnologias de comunicação e os movimentos revolucionários anti-coloniais. Publicado originalmente em Africa is a Country. Tradução da Revista Opera e republicado em Outras Palavras.