Evento climático assustador em SP é sinal de terrível futuro. Acordos de Paris, Rio+20, IPCC e afins serão em vão sem uma inflexão da tendência de crescimento a todo custo. Há saída – mas não se insistirmos na “destruição criadora” do capitalismo
Tomás Togni Tarquinio, Outras Palavras, 1 de outubro de 2021
Título original: Tempestade de areia, mudanças climáticas e habitabilidade do planeta
A cada semana que passa, a desregulação ecológica nos surpreende com fenômenos “excepcionais”. Agora foi a vez de regiões dos Estados de São Paulo e Minas Gerais. Elas assistiram, impotentes, a uma inédita tempestade de areia semelhante às que ocorrem no Sahara. Mais um fenômeno climático de origem antrópica. Mas, não apenas climático. Ele vem conjugado, é resultado da sinergia com outro fator igualmente antrópico: ausência de cobertura vegetal sobre o solo, seja herbácea, arbustiva ou arbórea. O solo fica nu, exposto às intempéries, erosões, perda de fertilidade, etc. Consequência das práticas agrícolas modernas próprias à revolução verde. Trata-se de um ecossistema antrópico monocultural no qual não há lugar para as demais espécies vegetais e animais prosperarem. E que conduz, fatalmente, a uma brutal queda de biodiversidade ao reduzir os espaços de vida dos seres não humanos, inclusive dos micro organismos do solo.
Mas, o fenômeno não é restrito apenas a esta região do Brasil. Nós assistimos, vivemos, percebemos, detectamos a presença destes fenômenos climáticos extremos com regularidade em todo o mundo. Eles já fazem parte integrante do dia a dia de muitas populações do planeta. A mudança climática já está em toda parte, não mais se limitando a alguns rincões.
A irreversibilidade deste fenômeno é uma viagem ao desconhecido. Porém com passagem só de ida. Trata-se de algo excepcional, inédito? Infelizmente, não. Está deixando de sê-lo. De agora em diante, nós assistiremos a eventos extremos regularmente, eles já são parte integrante de nosso cotidiano. Isto porque já alcançamos, em 2016 e em 2019, um aumento de 1,26°C acima da temperatura média do planeta – com relação à média entre 1850-1900. Nas últimas quatro décadas o aumento desta temperatura foi praticamente de 1°C – a diferença, o aumento em torno de 0,2°C, foi alcançada durante mais de um século.
É consequência de nosso modo de vida, do modo de produção e consumo de nossa sociedade termo-industrial. Ora, 85% de toda energia primária consumida no planeta são fontes fósseis (carvão, petróleo e gás natural). Quase 70% da produção de energia elétrica mundial é feita com carvão e gás. Pelo menos uma metade dos processos produtivos do setor primário, secundário e terciário não podem ser substituídos por energia elétrica, que representa apenas 20% da energia final mundial. Trata-se de um equívoco supor que o problema será superado simplesmente fazendo a transição para as energias renováveis. Mais impossível ainda se se pretende manter o mesmo padrão de produção e consumo atual – o mesmo modo de vida. Sem falar que será impossível integrar à sociedade termo-industrial aqueles que dela ainda não fazem parte – metade da população mundial. A dimensão da transição ecológica e energética é gigantesca. O problema é grave, mas ainda não desesperador.
A Terra é uma titica com apenas 13 mil quilômetros de diâmetro, ou seja, a mesma distância entre Montevidéu e Paris. Embora minúscula e vagando no imenso cosmos, o que ela abriga de mais importante e excepcional é a vida, tanto a humana, quanto a dos demais viventes. Eles prosperam na biosfera que, aliás, é uma estreita película da ecoesfera – uma camada extremamente fina situada na litosfera, atmosfera e hidrosfera. A Terra continuará a existir, terá o mesmo tamanho e seguirá sua trajetória absolutamente indiferente à existência ou não de vida em sua superfície.
Como se não bastasse, mesmo que hoje paremos de emitir os gases de efeito estufa (GEE), a temperatura do planeta continuará a aumentar nos próximos 20 anos, por causa da inércia. Ou melhor, o que assistimos hoje é resultante das emissões de GEE dos últimos 20 anos. Não se reduz os efeitos climáticos como se apertássemos um botão, fazendo com que a temperatura caia imediatamente. Muitos imaginam que poderemos voltar e experimentar o mesmo clima que vivemos há 20, 30 anos. Ele não voltará mais na escala humana. Aquilo que outrora considerávamos excepcional, atualmente se torna uma nova realidade. Não se trata mais de algo efêmero: os fatos excepcionais estão se transformando em realidade permanente – e a olhos vistos.
A questão é urgente, urgentíssima. Muitos acreditam que graças a esforços individuais como separar lixo, andar de bicicleta, consumir biológicos, evitar plásticos será possível resolver a questão. Claro que ajuda, mas é insignificante face a magnitude do desafio. Trata-se de algo irrisório, quando comparado aos financiamentos e subvenções públicas e privadas em favor das energias fósseis, a nível mundial. Elas são da ordem de 5,2 trilhões de dólares anuais – 6% do PIB mundial. Quem afirma é o FMI, órgão insuspeito de difundir o “marxismo cultural”, como supõem alguns negacionistas, inclusive marechais “sans faits d’armes”. Entre 2016 e 2018, a rede bancária mundial investiu 1,9 trilhões de dólares em energias fósseis. Entretanto, a neutralidade carbono implica em não mais financiar um quilo sequer de combustível fóssil a partir deste momento. Apesar dos acordos de Paris, das reuniões de Estocolmo, Rio 92, Rio+20, criação do IPCC, em 1988, e seu primeiro relatório em 1990, das inúmeras COPs e do último relatório do IPCC, não houve inflexão da tendência. Basta dizer que as emissões de GEE aumentaram em torno de 60%, desde 1980.
Tanto a redução das emissões de GEE, quanto a questão da adaptação à nova realidade climática vão custar muito caro. Mas, a fatura será tanto mais elevada, quanto mais tempo as ações forem postergadas – não só economicamente, mas no tocante aos demais aspectos, inclusive a barbárie. Até mesmo os discípulos do obtuso Nordhaus – surpreendente prêmio Nobel de Economia – são capazes de compreender este fato.
As mudanças climáticas colocam em evidência nada menos do que a habitabilidade do planeta. A continuar nesta toada e de maneira prolongada, conheceremos regiões inabitáveis em consequência de temperaturas elevadas, de inundações, ou ainda do comprometimento da produção agrícola, entre outros.
Não há possibilidades de compatibilizar o capitalismo de crescimento com princípios ecológicos. Como afirma Schumpeter, “a destruição criadora constitui a base essencial do capitalismo”. O economista austríaco reconhece, implicitamente, que o capitalismo só pode prosperar em um planeta infinito. E tem razão. O processo de destruição do capital obsoleto, em proveito de outro mais eficiente, nada mais é do que um gigantesco processo de transformações físicas, químicas e biológicas da ecoesfera que converte recursos naturais e energia em dejetos, afetando o vivo e o inanimado. Compromete, assim, a habitabilidade dos seres vivos sobre a face da Terra.
Ainda há tempo para mudar a trajetória. Dispomos de saber, conhecimentos científicos e tecnológicos suscetíveis de construir uma sociedade fundada sobre a sobriedade. Mas não basta apenas a sobriedade. Ela deverá ser socialmente compartilhada, equânime, livre e justa.