Cédric Durand analisa as dinâmicas da economia russa desde o colapso da URSS e propõe uma periodização que permite compreender as políticas de Putin desde a sua ascensão ao poder e as raízes económicas do impulso ultranacionalista e militarista que se exprime na guerra contra a Ucrânia.
Cedric Durand, Esquerda.net, 7 de abril de 2022
A abertura do último filme de Kirill Serebrennikov, “A febre de Petrov”, tem lugar num autocarro suburbano cheio de gente. Sob a influência da febre, Petrov imagina-se a fazer parte de um pelotão de fuzilamento de um grupo de oligarcas foliões. Depois, na traseira do autocarro, um homem faz uma pergunta retórica: "Gorby vendeu-nos, Ieltsin gastou tudo, depois Berezovsky livrou-se dele, nomeou estes tipos, e agora o quê?” E depois continua com grunhidos racistas. A atmosfera é escura e violenta. "Estes tipos" é uma referência transparente a Putin e ao seu grupo. "E agora?" é certamente uma boa pergunta. E agora? Que tipo de sociedade é a Rússia contemporânea? Que tipo de economia política a anima e a levou a entrar em guerra com o seu vizinho tão estreitamente interligado?
A Paz Fria durou três décadas, durante as quais o Estado russo e o resto da Europa nadaram juntos nas "águas geladas do cálculo egoísta" típicas do capitalismo. Após a invasão da Ucrânia pela Rússia, a quebra das relações financeiras e a súbita retirada das empresas ocidentais marcaram o fim de um tratamento da questão russa assente essencialmente sobre o mercado e a rutura final da ilusão da transição. Mas na verdade a fantasia já havia perdido os seus encantos há muito tempo. Em 2014, Branco Milanovic fez uma avaliação da transição para o capitalismo:
"Apenas três, ou no máximo cinco ou seis, países estão no caminho certo para se tornarem parte do mundo capitalista rico e (relativamente) estável. Muitos estão atrasados e alguns estão tão atrasados que durante várias décadas não podem aspirar a regressar ao nível no qual estavam na altura da queda do muro.”
Apesar das promessas de democracia e da garantia de prosperidade trazidas pelos defensores das reformas, nenhuma delas se concretizou para a maioria das pessoas na Europa Oriental e na antiga União Soviética.
Devido à sua dimensão e centralidade cultural-política, a Rússia é o nó górdio neste processo histórico. Para além do enviesamento militar na compreensão das grandes potências, as dinâmicas produtivas e de classe são pelo menos tão importantes para delinear as coordenadas da situação e explicar a precipitação da liderança russa.
Período 1 (1991-1998): Os anos 90, nunca mais
A agressão da Rússia foi parte de uma tentativa desesperada e tragicamente mal calculada de lidar com aquilo a que Trotsky chamava "o chicote da necessidade externa", ou seja, a obrigação de acompanhar os outros Estados a fim de preservar alguma autonomia política. Foi este mesmo chicote que levou a liderança chinesa a adotar a liberalização económica controlada no início da década de 1980, alimentando 40 anos de integração bem-sucedida na economia global e permitindo ao regime reconstruir e consolidar a sua legitimidade.
No caso da Rússia soviética, o chicote quebrou o Estado. Como Janine Wedel demonstrou no seu indispensável livro “Collision and Collusion. The Strange Case of Western Aid to Eastern Europe” (2000), o desaparecimento da União Soviética levou ao colapso total e à desarticulação da elite nacional. Nas fases iniciais da reforma, a falta de autonomia chegou a um ponto em que decisões políticas decisivas foram tomadas em conjunto por conselheiros americanos liderados por Jeffrey Sachs e um pequeno grupo de jovens reformadores russos, incluindo Yegor Gaidar – o primeiro-ministro que iniciou a liberalização decisiva dos preços – e Anatoli Chubais – o czar da privatização que, até à invasão, era um aliado próximo de Putin.
Esta terapia de choque levou a um drástico declínio industrial, a uma experiência generalizada de extrema pobreza e a uma humilhação nacional que criou uma desconfiança duradoura face ao Ocidente. Extraído desta experiência traumática, o lema mais popular na Rússia continua a ser "os anos 90 nunca mais".
Vladimir Putin construiu o seu regime com base nesse lema. E um simples olhar sobre a evolução do PIB per capita mostra a razão (Figura 1). Os primeiros anos da transição foram marcados por uma depressão profunda (período I) que terminou com o crash financeiro de agosto de 1998. Longe do colapso descrito por Anders Åslund na revista Foreign Affairs(link is external), este foi, de facto, o início de um renascimento. O rublo perdeu quatro quintos do seu valor nominal em dólares mas, por volta de 1999, quando Putin chegou ao poder, no rescaldo de uma nova guerra na Chechénia, a economia começou a recuperar.
Antes do colapso económico, as receitas macroeconómicas(link is external) do "consenso de Washington" alimentavam uma depressão sem fim, com políticas anti-inflacionistas e uma defesa obstinada da taxa de câmbio que privou a economia dos meios necessários à circulação monetária. A subida a pique das taxas de juro e o abandono da disciplina de pagamento pelo próprio Estado levaram a uma generalização da troca direta (mais de 50% do comércio entre empresas em 1998), a atrasos salariais galopantes e a um abandono do mercado interno por parte das empresas industriais.
Em áreas remotas, a utilização do dinheiro tinha desaparecido quase por completo da vida quotidiana. No Verão de 1997, passei alguns dias na pequena aldeia de Chernorud na margem ocidental do Lago Baikal: os aldeões colhiam pinhões e utilizavam-nos para pagar a viagem de autocarro até à ilha vizinha de Olkhon, para alojamento ou para comprar peixe seco – tendo um copo cheio de pinhões se tornado a unidade de medida. A situação social, sanitária e criminal era desastrosa, alimentando um sentimento geral de desespero, palpável na taxa de mortalidade.
Período 2 (1999-2008): uma recuperação prolongada
No contexto da catástrofe que o país tinha acabado de sofrer, o período seguinte pareceu uma festa. De 1999 à crise financeira mundial de 2008, os principais indicadores macroeconómicos foram bastante impressionantes: as trocas diretas diminuíram rapidamente e o PIB cresceu a uma taxa média anual de 7%. Depois de quase ter diminuído para metade entre 1991 e 1998, o PIB recuperou totalmente para o seu nível de 1991 até 2007, algo que a Ucrânia nunca conseguiu fazer. O investimento recuperou, tal como os salários reais, com aumentos anuais de 10% ou mais. À primeira vista, um milagre económico russo parecia plausível na altura.
O invejável desempenho económico do início da era Putin foi possível graças ao enorme aumento(link is external) dos preços das matérias-primas. No entanto, embora este tenha sido um fator importante, não foi o único.
Em primeiro lugar, a indústria russa beneficiou dos efeitos estimulantes da desvalorização do rublo em 2008. Esta perda de valor tornou competitivos os produtos produzidos localmente, levando a uma substituição significativa das importações, que foi imediata. Como as empresas industriais estavam totalmente desligadas do sector financeiro, não sofreram com o crash de 1998.
Além disso, como herança da integração empresarial soviética, as grandes empresas preferiram geralmente atrasar o pagamento de salários nos anos 90 em vez de despedir trabalhadores. Como resultado, conseguiram aumentar a sua produção muito rapidamente para acompanhar a recuperação da economia. A utilização da capacidade aumentou de cerca de 50% antes de 1998 para quase 70% dois anos mais tarde. Por seu turno, estas taxas de utilização da capacidade mais elevadas contribuíram para o crescimento da produtividade, criando um "círculo virtuoso".
O segundo fator refletia um desejo de utilizar os lucros das exportações para reorganizar a intervenção do Estado na economia. Os anos de 2004 e 2005 marcaram uma clara mudança a este respeito. O processo de privatização permaneceu na ordem do dia e continuou a ser realizado mas a um ritmo muito mais lento. Ideologicamente, a tendência foi no sentido contrário, enfatizando a propriedade pública. Um decreto presidencial de 4 de agosto de 2004 estabeleceu uma lista de 1.064 empresas que não podem ser privatizadas e sociedades por ações em que a quota do Estado não pode ser reduzida.
Entretanto, teve lugar uma expansão significativa da atividade pública, através de uma combinação pragmática de métodos administrativos e mecanismos de mercado. O alvo mais importante foi o sector energético, com o objetivo de restabelecer um controlo público firme sobre as rendas da energia e, em segundo lugar, eliminar potenciais rivais como o magnata liberal do petróleo Mikhail Khodorkovsky.
Para além do setor dos combustíveis fósseis, diversos instrumentos de política industrial e um incentivo ativo ao investimento russo no estrangeiro refletem o desejo de apoiar o surgimento de empresas capazes de competir no mercado global em áreas como a metalurgia, a aeronáutica, o automóvel, a nanotecnologia, a energia nuclear e, claro, o material militar. O objetivo declarado era utilizar a renda da exportação de recursos naturais para modernizar e diversificar uma base industrial largamente obsoleta, a fim de preservar a autonomia da economia russa.
Esta tentativa de reestruturar os bens produtivos sugeria uma visão de desenvolvimento. Contudo, certas decisões estratégicas relativas à forma de inserção no capitalismo global e ao pacto entre a liderança política e os capitalistas nacionais impediram a emergência de uma adequada organização interna da formação social russa.
Período 3 (2008-2022): o fracasso do desenvolvimento
O impacto da crise financeira de 2008 na economia russa e a agonia do crescimento na década seguinte (período III) são sintomas de um fracasso do desenvolvimento. Isto manifesta-se em primeiro lugar na contínua dependência das exportações de matérias-primas, principalmente hidrocarbonetos, mas também de produtos metálicos de base e, mais recentemente, de cereais. Este tipo de especialização é uma fonte de vulnerabilidade face ao ciclo económico global e, internamente, faz da redistribuição das rendas a questão central do jogo político doméstico.
O fracasso do desenvolvimento russo reflete-se também no elevado nível de financeirização da sua economia. Desde 2006, a sua balança de capitais foi totalmente liberalizada. Esta decisão e a entrada na OMC em 2012 criaram uma dupla dependência: por um lado relativamente ao projeto americano do capitalismo global cuja pedra angular(link is external), como mostraram Panitch e Gindin, é precisamente a capacidade do capital de circular livremente; por outro lado da elite económica nacional cujo estilo de vida pródigo e frequentes divergências com o regime os levou a esconder as suas fortunas e a criar as suas empresas no estrangeiro.
A nível macroeconómico, as políticas que encorajaram a integração internacional favoreceram a entrada de investidores estrangeiros, bem como o investimento russo no estrangeiro. Este aumento dramático da internacionalização da economia russa foi obviamente uma fonte de vulnerabilidade que, juntamente com a dependência das exportações de matérias-primas, explica porque foi a mais afetada pela crise financeira mundial, sofrendo uma contração de 7,8% em 2009.
Para fazer face à instabilidade resultante desta inserção subordinada na economia global, as autoridades optaram por uma dispendiosa acumulação de reservas de baixo rendimento. Como resultado, apesar de uma posição de investimento internacional líquida globalmente positiva, a economia russa teve de gastar entre 3 e 4% do seu PIB em pagamentos financeiros ao resto do mundo durante a década de 2010.
A economia russa na década anterior à guerra na Ucrânia foi assim caracterizada pela estagnação, pela continuação da distribuição extremamente desigual(link is external) do rendimento e da riqueza herdada dos anos 90 e por um declínio económico relativo face aos países ricos e à China. Na realidade, houve também desenvolvimentos mais positivos(link is external). Na sequência das sanções e contra-sanções adotadas após a anexação da Crimeia, alguns sectores como a agricultura e a indústria alimentar beneficiaram de dinâmicas de substituição de importações. Ao mesmo tempo, um setor tecnológico dinâmico permitiu o desenvolvimento de um rico ecossistema digital doméstico com fortes ramificações globais. Mas estes desenvolvimentos positivos não foram suficientes para contrabalançar as deficiências globais da economia.
Em 2018, os protestos em massa contra uma reforma das pensões forçaram o governo a recuar parcialmente. Mas, acima de tudo, revelaram a crescente vulnerabilidade do regime devido à incapacidade de cumprir as suas promessas de modernização e de salvaguardar o bem-estar social. Em última análise, estes desenvolvimentos minaram dramaticamente a legitimidade de Putin, tornando cada vez mais atrativo para si intensificar o impulso nacionalista com as suas expressões militares.
Dias mais sombrios pela frente
Face às dificuldades económicas e ao isolamento político após a sua aventura na Ucrânia, as perspetivas para a Rússia são sombrias. A menos que tenha uma vitória rápida, o governo vacilará, uma vez que os russos comuns sentem o custo económico da guerra. Provavelmente responderá com um aumento da repressão. Por enquanto, a oposição está fragmentada e várias vertentes da esquerda, incluindo o Partido Comunista, juntaram-se à bandeira nacional – o que significa que, a curto prazo, Putin não terá dificuldade em suprimir a dissidência. Mas o regime está ameaçado em múltiplas frentes.
As empresas estão aterrorizadas com as perdas que irão sofrer e os jornalistas económicos russos estão a fazer soar abertamente o alarme. É claro que não é fácil prever o resultado das sanções – que ainda não estão totalmente implementadas – sobre a fortuna dos oligarcas individuais. Vale a pena notar que o Banco Central russo estabilizou habilmente o rublo depois de ter perdido um terço do seu valor imediatamente após a invasão. Mas para os capitalistas russos o perigo é real.
Dois exemplos ilustram os desafios que irão enfrentar. O primeiro é o caso de Alexei Mordashov – o homem mais rico da Rússia, segundo a Forbes – que foi recentemente acrescentado à lista negra de sanções da UE pelas suas alegadas ligações com o Kremlin. Como resultado, Severstal, o gigante do aço de que é proprietário, suspendeu todas as entregas na Europa, o que representou cerca de um terço das vendas totais da empresa, que são cerca de 2,5 milhões de toneladas de aço por ano. A empresa tem agora de procurar outros mercados na Ásia, mas com condições menos favoráveis que irão afetar a sua rentabilidade. Tais efeitos em cascata nas empresas dos oligarcas terão repercussões na totalidade da economia russa.
Como segundo exemplo, as restrições à importação colocam sérias dificuldades a setores como a produção automóvel e o transporte aéreo. Um "vazio tecnológico" poder-se-á abrir à medida que empresas de software empresarial como a SAP e a Oracle se retirem do mercado russo. Os seus produtos são utilizados por grandes empresas russas – Gazprom, Lukoil, a National Atomic Energy Corporation, os caminhos-de-ferro russos – e será dispendioso substituí-los por substitutos locais. Numa tentativa de limitar o impacto desta escassez, as autoridades legalizaram a utilização de software pirateado, alargaram as isenções fiscais para as empresas tecnológicas e anunciaram que os trabalhadores da tecnologia seriam libertados das suas obrigações militares; mas estas medidas são apenas medida paliativas temporárias. A importância crucial do software e das infraestruturas de dados para a economia russa salienta o perigo que constitui a monopolização e domínio dos sistemas de informação por um pequeno número de empresas ocidentais, cuja retirada pode revelar-se catastrófica.
Em suma, não existem dúvidas de que a guerra na Ucrânia terá efeitos catastróficos para muitas empresas russas, constituindo um teste à lealdade da classe dominante face ao regime. Mas o apoio da população em geral está também em risco. Enquanto as condições sócio-económicas continuarem a deteriorar-se para a população no seu conjunto, o lema que tão bem serviu a Putin contra a sua oposição liberal ("os anos 90 nunca mais") pode em breve virar-se contra o Kremlin. A mistura de empobrecimento generalizado e frustração nacionalista é uma espécie de nitroglicerina política. A sua explosão não pouparia nem o regime oligárquico de Putin nem o modelo económico em que se baseia.
Cédric Durand é economista e membro da redação da Contretemps. É autor de vários livros, incluindo Technoféodalisme (Zones, 2020) e Le capital fictif (Prairies ordinaires, 2014), e de numerosos artigos para a Contretemps. Este artigo foi originalmente publicado no blogue sidecar da New Left Review. Traduzido do inglês pela Contretemps e traduzido para português por Paulo Antunes Ferreira para o Esquerda.net.