O país real, dos mais explorados e vulneráveis, exige da esquerda um programa de emergência radical e factível, em que a preservação da vida esteja à frente da preservação dos lucros capitalistas.
O pacote de suposto enfrentamento aos impactos da pandemia da Covid-19 no Brasil, anunciado pela equipe econômica de Bolsonaro ontem, é a cara de Paulo Guedes e do atual presidente da República.
Cara de Guedes porque (como não podia deixar de ser, partindo do mago ultraliberal da Esplanada) é mais voltado a agradar aos seus chefes do sistema financeiro do que a enfrentar com coragem e ousadia o desastre sanitário e social com que há de sofrer a maioria do povo. A preocupação central dos mentores das medidas foi mostrar algum serviço sem ferir as limitações orçamentárias de seu “liberalismo” de fome – entre elas a famigerada PEC do teto de gastos.
É a cara de Bolsonaro igualmente, porque parece assobiar para a gravidade da crise de saúde e econômica, ao mesmo tempo em que aproveita “a oportunidade” trágica para desferir novas medidas repressivas antidemocráticas – como a que anunciaram ontem os ministros da Saúde e da Justiça, ameaçando prender quem não se submeta à quarentena.
Economistas de vários matizes – mas com algum pé na realidade – denunciam que, dos R$ 147,3 bilhões apresentados como “injeção” na economia, nada menos que R$ 111 bilhões (75%) não são gastos nem injeção, mas antecipações de despesas que seriam feitas em futuro próximo, ou postergação da cobrança de tributos. Mas ainda que houvesse uma injeção de R$ 147, 3 bilhões, o montante ainda seria pífio diante do desastre sanitário, econômico e social em que ingressamos. O valor é muito menor do que se valeram, como exemplo, os governos Lula e Dilma, para prevenir impactos da crise de 2007-2008. É proporcionalmente muitíssimo menor do que aquele de que governos de países industrializados, como os EUA de Trump e a França de Macron, estão lançando mão na crise presente*.
A ideia dos que pariram essa enganação, todos fundamentalistas do “Deus mercado”, é impedir um desaquecimento maior da atividade no curto prazo, para dar tempo a que “passe” a situação mais crítica da Covid-19. Há pelo menos três problemas no raciocínio e na política ultraliberais diante da crise do coronavírus, em ordem decrescente de importância:
- Do ponto de vista econômico, suas medidas são tímidas, insuficientes para reverter a tendência a um cenário de recessão grave por pelo menos dois trimestres* – perigo que já estava colocado antes mesmo da instalação do novo vírus no território nacional. O SARS-CoV-2, como foi batizado o agente da pandemia, já fez e fará muito estrago, mas não tem culpa de a economia brasileira estar na situação em que o vírus a encontrou.
- Não há nenhuma garantia de que a pandemia “passe” tão rápido e previsivelmente, como nos esquemas de power point dos Chigaco Oldies do governo: os dados científicos disponíveis, a partir da experiência internacional, indicam que estamos no início da curva ascendente da epidemia, que nos próximos dois a três meses, a situação só tende a se agravar;
- Do ponto de vista do enfrentamento a uma crise sanitária (portanto também ecológica), imprevista, com risco de centenas ou milhares de mortes e desagregação social, a resposta do governo Bolsonaro é tentar empurrar o desastre com a barriga, preservando ao máximo os lucros, a saúde financeira e evidentemente a sacrossanta propriedade das empresas. As poucas medidas visando à preservação das condições de vida dos mais pobres não passam de esmolas extraídas de fundos que já são dos trabalhadores e do povo.
Um programa de choque antineoliberal
A situação requer coragem, ousadia e desapego com os lucros das corporações, para o que é necessário gasto público. Há várias medidas em elaboração por muitos setores da esquerda e em particular do PSOL.
O deputado Marcelo Freixo divulgou um conjunto de propostas importantes, embora ainda incompletas, para a defesa dos mais vulneráveis: (a) pagamento de um salário mínimo mensal às trabalhadoras que ficarem sem renda, enquanto durar a pandemia, ou seja, um programa de renda mínima, básico para um momento extraordinário desses; (b) dispensa de perícia no INSS para liberar rapidamente o auxílio-doença a quem contrair o vírus; (c) pagamento imediato de auxílio-doença a microempreendedores individuais (MEI, forma jurídica pela qual se d´[a o trabalho dos informais); suspensão do pagamento das contas de água, luz e gás para famílias de baixa renda – para pagar depois em 36 vezes; (d) implementação de tarifas sociais, reduzidas, para MEIs e autônomos isentos do IR; (e) proibição de cortes de água, luz e gás durante a pandemia.
No Ceará, o deputado estadual do PSOL Renato Roseno apresentou PL com plano na mesma direção, que inclui previsão de que as concessionárias de serviços de telecomunicações sejam obrigadas a prover amplo acesso à rede mundial de computadores a fim de garantir o alcance à informação. O PL de Roseno propõe reduzir em 100%, temporariamente, a base de cálculo do ICMS nas operações relativas a produtos de proteção e tratamento da emergência sanitária.
O PL de Roseno prevê que o Poder Executivo do Ceará garanta a alimentação escolar durante a suspensão das aulas, por meio de aporte financeiro às famílias. Sugere ainda a prática de alternativas à exposição ao vírus em transportes públicos, incluindo a alternância de horários de entrada e saída do trabalhadores formais, assim como a tolerância ao horário estendido de entrada e saída para diminuir a lotação. Para os trabalhadores informais, deverá ser realizada campanha para o efetivo cadastro e identificação dos casos a serem submetidos ao necessário isolamento, assim como o estabelecimento de bolsas alimentação àqueles que, devido à emergência sanitária, tiverem seu sustento prejudicado. Os microempreendedores individuais, as empresas de pequeno e médio porte e as empresas que assegurarem aos seus trabalhadores o isolamento domiciliar ficarão desobrigadas do pagamento de tributos estaduais proporcionalmente ao período de quarentena.
Três medidas de impacto, imprescindíveis
Esse conjunto de medidas, que ainda podem e devem ser complementadas, partem da necessidade da intervenção e de gastos do Estado. Por essa razão, na esfera federal, é essencial que se batalhe pela suspensão da PEC 95, do Teto de Gastos: investimentos na saúde e em particular no SUS e entidades de pesquisa e desenvolvimento, são inadiáveis. Em níveis federal e estaduais, é hora de suspender os efeitos dos acordos draconianos das dívidas estaduais – que engessam as iniciativas dos governos locais.
Também é preciso uma ação enérgica do Estado que congele o preço dos alimentos, águas, medicamentos, produtos de higiene e limpeza nos valores anteriores à entrada da epidemia no país, ou seja, de antes do carnaval. Só para ficar num exemplo, não pode ser permitido inflação em produtos como álcool gel, máscaras e remédios.
Finalmente, como nos alertam os exemplos da Itália (pela negativa, devido ao sucateamento da saúde pública e o número trágico de mortes pela Covid-19) e do Estado Espanhol (positivo), é preciso estarmos abertos e preparados para que os estados, em suas diferentes esferas, requisitem vagas de UTI (sem pagamento nem indenização) do sistema complementar, privado, de saúde. A vida precisa estar acima dos lucros privados, caso contrário, não há sobrevivência.
(*) Cálculo da economista Laura Carvalho, da USP.