É preciso estabelecer a cultura do respeito e do convívio com as diferenças, construindo possibilidades de vida nova para adultos e crianças para que elas cresçam acreditando que é possível viver, amar, respeitar e ser feliz, caso contrário a cultura da violência doméstica encontrará terreno fértil, abundante e perpetuará como um mal necessário e definitivamente não é
Mireni de Oliveira Costa Silva, Jornal Oeste / IHU-Unisinos, 30 de novembro de 2020.
Estou falando da Oficiala de Justiça, servidora pública que, muito antes da edição da Lei 11.340/06, quando ainda não havia a definição “violência doméstica” para essa modalidade de crime, já fazia o seu enfrentamento nas ruas cumprindo decisões judiciais, quer durante o dia, durante a noite, de domingo a domingo.
É essa servidora pública que acaba por conhecer a situação fática que motivou o registro do Boletim de Ocorrência, haja vista que muitas vezes os agentes da segurança pública sequer são acionados e a vítima apenas comparece na Delegacia da Mulher para registrar a violência sofrida, movida por sua dor, cujo relato é exposto sob sua perspectiva.
A violência contra a mulher, em especial no âmbito doméstico e familiar, ganhou notoriedade no Brasil a partir da edição da Lei nº 11.340/06, conhecida como “Lei Maria da Penha”, em decorrência de condenação do Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
É importante acrescentar que antes dessa lei, criada em 2006, já existia no §8º do artigo 226 da Constituição Federal, previsão legal para prevenir a violência no âmbito das relações domésticas. Igual previsão existia na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e em outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil.
A exemplo desses outros tratados e convenções, cita-se a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, ratificado pelo Brasil via Decreto n. 678/92, que prevê em seu art. 5º n. 1 que toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral, inciso esse que ganhou reforço na Lei 11.340/06.
A entrada em vigor dessa lei não serviu de óbice para a prática reiterada da violência contra a mulher, pois segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos somente em 2019, foram registrados 62.485 casos de violência contra a mulher, só na modalidade violência doméstica e familiar. E o mais alarmante é que de jan./jun. de 2020 já somavam 35.769 novos casos.
Esses dados revelam que em 2019 houve um alto índice de registro de violência contra a mulher, incluindo a violência doméstica e, já nos primeiros meses de 2020, foi registrado um aumento desses casos em vários segmentos em decorrência do isolamento social produzido pela pandemia.
No período da pandemia do novo Coronavírus, em alguns Estados, o volume de registros de violência contra a mulher aumentou de forma assustadora. Em São Paulo o aumento registrado foi de 44%, no Acre 600%, no Rio de Janeiro foi de 50% e em Mato Grosso registrou o aumento foi de 150%, segundo notícia veiculada no portal G1.
A Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, por exemplo, somente no mês de abril, registrou um aumento de 37, 6% nas denúncias de violência contra a mulher.
São dados significativos que apontam para um problema social que repercute em outras áreas como segurança, educação, economia e saúde pública, o que reforça as preocupações e indicações da ONU com a violência doméstica. Esses índices elevados de violência indicam a ausência de políticas de prevenção da violência contra a mulher.
Apesar dos constantes alertas da Organização das Nações Unidas sobre os altos índices de violência contra a mulher, a situação agravou-se nesse período da pandemia da COVID-19. A entidade alertou para o aumento de casos em diversos países do mundo e a importância do seu consequente enfrentamento.
No entanto, é possível perceber que existe uma evidente preocupação com a violência doméstica que, muitas vezes, não tem conseguido ultrapassar a barreira dos “inflamados” discursos, e, como se fala demais na temática, passa a impressão para a sociedade que existe de fato muitas políticas públicas em vigor, a pleno vapor, para o seu efetivo combate e prevenção, mas a realidade dos aumentos de casos têm demonstrado que ainda há muito a ser feito.
Mas é possível prevenir a violência doméstica? Existe de fato algo que possa ser feito no âmbito familiar, dos relacionamentos, que possa amenizar essa pandemia da violência doméstica que assola os lares, as famílias e brutaliza as pessoas por todo o país?
O que é possível perceber, com base nas experiências vivenciadas ao longo dos 21 anos de trabalho como Oficial de Justiça, é que não existe lei, processo ou prisão que seja capaz de mudar o quadro lastimável da violência doméstica no Brasil. Ela está, a meu ver, relacionada com a cultura do machismo estrutural, do patriarcalismo, com a falta de diálogo e com a cultura e a banalização da violência.
O objetivo aqui não é discutir teorias sociais para analisar de forma mais detalhada a violência doméstica, os fatores a que ela eventualmente esteja ligada. Ela está arraigada em todas as classes sociais, em todos os bairros das cidades, não na mesma proporção, é claro, ela é mais perceptível nas periferias onde a presença do poder público é mais precária.
O que pode ser feito como política de prevenção a meu ver é ampliar as políticas de educação. A educação é a resposta para a cura do mal. Esse será um processo demorado, dependerá de investimentos, de formação adequada, de uma mudança de paradigma. A sociedade brasileira precisa estar disposta a enfrentar e resolver esse problema. A educação e o diálogo darão o passo fundamental para a mudança.
É necessário estabelecer o diálogo como ponto de partida. E este deverá dar-se entre o poder público com a sociedade, bem como, nas famílias, nos relacionamentos, nas empresas, escolas, universidades, igrejas, clubes de serviços, organizações não governamentais, associações, sindicatos, órgãos públicos das três esferas de poder, para que assim o problema da violência doméstica deixe simultaneamente de ser somente da vítima e passe a ser encarado como um problema em que toda a sociedade deverá contribuir para solucionar.
As vozes precisam ecoar porque é necessário inverter a “lógica” da violência falando de bons sentimentos, do respeito, do amor, do afeto, do bem querer, da amizade, do carinho e da boa convivência. É importante reforçar esses sentimentos ao invés de pensar em combater a violência doméstica aplicando somente a lei. Ela é necessária, mas sozinha efetivamente não conseguirá resolver o problema.
O poder público precisa criar as condições previstas na lei 11.340/06, como as Casas Abrigo por exemplo. É comum no ato do cumprimento da medida protetiva a vítima dizer que está arrependida, que não quer separação de corpos, que não queria a prisão do agressor, que é o agressor o único provedor do lar. Nesse momento a presença do Estado é fundamental para o apoio e acolhimento da vítima, inserindo-a em programas de acompanhamento psicossocial e de aquisição de trabalho e renda.
É preciso estabelecer a cultura do respeito e do convívio com as diferenças, construindo possibilidades de vida nova para adultos e crianças para que elas cresçam acreditando que é possível viver, amar, respeitar e ser feliz, caso contrário a cultura da violência doméstica encontrará terreno fértil, abundante e perpetuará como um mal necessário e definitivamente não é.
É urgente e necessário lutarmos contra a violência doméstica e estabelecermos um pacto de civilidade, afetos e sobretudo de amor e de paz!
Mireni de Oliveira Costa Silva é Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso e Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito, oferecido pela Universidade de Marília (UNIMAR) em parceria com a Escola Mato-Grossense de Magistrados (EMAM).