70% das calorias dos dez principais produtos agrícolas globais destinam-se a usos que não são os de alimentar as pessoas
Ricardo Abramovay, A terra é redonda, 24 de maio de 2022
É impossível subestimar a importância da invasão russa à Ucrânia para explicar o recente avanço da fome no mundo. Ucrânia e Rússia correspondem a 10% do comércio mundial de calorias, 30% das exportações mundiais de trigo e 60% das de óleo de girassol. Entre 20% e 30% da área de plantio da Ucrânia não poderá ser colhida e o bloqueio dos portos do país pelas tropas russas impede que os produtos disponíveis alcancem os mercados. Chegam a 26 os países em que mais da metade dos grãos são importados das duas nações em guerra. E, segundo o Banco Mundial, cada ponto percentual de aumento dos preços agrícolas, se traduz em fome para dez milhões de pessoas, como mostra matéria de Megan Green, no Financial Times.
Mas estes números não podem escamotear uma importante informação da reportagem de Assis Moreira, no jornal Valor econômico (17/05/2022), sobre a ação do G7 contra a “crise global de fome”. Nela, Gary McGuigan, presidente mundial da Archer Daniels Midlands Company, uma das quatro gigantes do comércio alimentar global, declara: “há grãos suficientes no mundo. O maior problema é a distribuição, ainda mais com as dificuldades de escoamento no porto de Odessa”.
Em outras palavras, se as restrições à livre circulação global dos produtos agrícolas fossem levantadas, a explosão atual dos preços (com alta historicamente recorde do índice da FAO em abril de 2022) poderia ter sido evitada ou atenuada. Por este raciocínio, não há melhor remédio contra a fome que o livre comércio e a redução dos preços alimentares a que ele pode conduzir.
É possível. Mas é importante encarar também três outros problemas ligados à estrutura do sistema agroalimentar global não só para entender o que está ocorrendo, mas para elaborar propostas consistentes que permitam atingir o segundo dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a Fome Zero até 2030.
O primeiro problema é que embora haja grãos suficientes no mundo, não é por restrições ao comércio que eles não chegam à mesa de quem deles necessita. Há grãos suficientes, mas é cada vez menor a proporção destes grãos que se destinam diretamente à alimentação humana. Em 2030, apenas 29% da colheita global dos dez produtos agrícolas mais cultivados globalmente serão consumidos como alimentos nos países onde são produzidos. Em 1960 este total era de 51%. É verdade que a fome no mundo, de 1960 para cá, caiu vertiginosamente e não há dúvida de que o avanço nos rendimentos do solo pelo qual passaram os produtos destinados ao processamento industrial e às exportações (os que mais cresceram desde então) foi fundamental para esta conquista.
Mas não deixa de ser estranho culpar a guerra e as barreiras ao comércio que ela traz pela explosão da fome, num mundo em que 70% das calorias dos dez principais produtos agrícolas globais destinam-se a usos que não são os de alimentar as pessoas, como mostra o artigo de Deepak Ray e colaboradores, publicado na Nature Food de maio. Os autores estimavam (antes da invasão russa à Ucrânia) que o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável número dois não seria atingido até 2030, como bem mostra o título de seu artigo (Crop harvests for direct food use insufficient to meet the UN’s food security goal). Não por escassez de produção, mas pela distância crescente que separa a produção agrícola do prato dos que mais precisam de comida.
A situação é tanto mais preocupante que os rendimentos dos cultivos dos produtos voltados diretamente ao consumo humano cresceram muito menos que os que se destinam à exportação, à industrialização ou à alimentação animal. Ampliar a produção e liberalizar o comércio não parecem ser, portanto, as medidas mais adequadas para enfrentar a fome.
O segundo problema ligado à estrutura do sistema agroalimentar foi apontado num trabalho que a McKinsey publicou em 2020. As técnicas que favoreceram o avanço dos rendimentos agrícolas provocaram, ao mesmo tempo, uma dupla concentração. Por um lado, poucos produtos (arroz, trigo, milho e soja) entram com mais de 50% da oferta global de calorias. A cesta alimentar mundial é composta, para a maior parte das pessoas, por poucos produtos.
Além disso, 60% da produção concentra-se em alguns poucos países. E, nestes países, a oferta é por sua vez concentrada regionalmente. Perdas de safra em qualquer destas regiões acabam tendo um impacto global de alto risco para a segurança alimentar mundial. Os ganhos na produtividade agropecuária, decorrentes da Revolução Verde dos anos 1960 e que tanto contribuíram para a redução dos preços alimentares e a diminuição da fome no mundo, acabaram por ampliar, algumas décadas após sua emergência, os riscos de insegurança alimentar.
E, terceiro problema, nestas regiões em que a produção agrícola se concentra, os impactos das mudanças climáticas fazem-se sentir de maneira cada vez mais drástica. As secas que atingem, neste momento a Índia, a França, o rio Colorado nos EUA e que vão provocar prejuízos agrícolas, só em 2022, de R$ 70 bilhões no Mato Grosso do Sul, no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul são um fenômeno global com frequência crescente. O mais recente relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), lançado em fevereiro, mostra que 75% da área colhida global sofreram perdas recentes de rendimento por causa da seca. Documento recente da Convenção de Combate à Desertificação das Nações Unidas estima que nada menos de 1,9 bilhão de pessoas foram atingidas por secas nos últimos vinte anos.
Não se trata, é claro, de preconizar fechamento e autarquia como soluções ao problema da fome. Mas são cada vez mais ameaçadores os riscos ligados aos modelos produtivos consagrados pela Revolução Verde, que estão na base das extensas cadeias produtivas destinadas originalmente a alimentar o mundo e que hoje entraram não em crise, mas em colapso.
A ampliação do comércio é bem-vinda, mas para que ela seja construtiva deve apoiar-se na diversificação produtiva, na desconcentração das atividades e em circuitos que permitam a valorização da cultura alimentar das diferentes regiões do mundo e sua proximidade dos consumidores.
Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).