Os EUA guerrearam 20 anos, gastaram US$ 2,3 tri e deixam metade da população na miséria. Haverá um sinal maior de seu declínio?
Patrick Cockburn, Counterpunch / Outras Palavras, 13 de agosto de 2021. Tradução de Gabriela Leite
Em meados do mês passado, observei os talibãs percorrerem o norte do Afeganistão, tomando lugares onde eu havia estado pela primeira vez em 2001, no começo da guerra iniciada pelos Estados Unidos. Os combatentes talibãs se apoderaram da principal ponte para o Tadjiquistão, no Amu Daria, um rio que cruzei em uma balsa difícil de manejar, poucos meses depois de iniciado o conflito.
O último comando norte-americano da gigantesca base aérea de Bagram, ao norte de Cabul, que havia sido quartel-general para 100 mil soldados, se retirou em plena noite, no início de julho, sem sequer informar a seu sucessor afegão, que disse ter sabido da evacuação final das tropas duas horas depois de ocorrida.
A principal causa da implosão das forças do governo afegão foi o anúncio do presidente Joe Biden, em 14 de abril de 2021, de que as últimas tropas norte-americanas abandonariam o país em 11 de setembro. Mas as alegações dos generais norte-americanos e britânicos, de que tudo isso está acontecendo muito rápido para que consigam preparar as forças de segurança afegãs para ficarem sozinhas, são absurdas – já que se passaram duas décadas sem que conseguissem fazer exatamente isso.
Ao findar da intervenção militar ocidental, vale a pena perguntar-se quais são as causas desse desastre humilhante. Por que tantos talibãs estão dispostos a morrer por sua causa, enquanto os soldados do governo fogem ou se rendem? Por que o governo afegão em Cabul é tão corrupto e disfuncional? O que aconteceu com os 2,3 trilhões de dólares gastos pelos EUA tentando – e falhando em – vencer uma guerra em um país que continua miseravelmente pobre?
De maneira mais geral, por que isso que foi apresentado como uma vitória decisiva pelas forças anti-Talibã, apoiadas pelos EUA, vinte anos atrás, se transformou nesta derrota?
Uma das respostas é que o Afeganistão – como o Líbano, a Síria e o Iraque – não são países onde a palavra “conclusivo” deva ser usada para qualquer vitória ou derrota militar. Vencedores e perdedores não emergem, porque há muitos envolvidos, dentro e fora do país, que não podem se dar ao luxo de perder ou de ver o inimigo vencer.
As analogias simplistas com o Vietnã, em 1975, são enganosas. O Talibã não tem nada parecido com o poderio militar do exército norte-vietnamita. Além disso, o Afeganistão é um mosaico de comunidades étnicas, tribos e regiões, sobre as quais o Talibã lutará para governar, aconteça o que acontecer com o governo de Cabul.
A desintegração do exército e das forças de segurança afegãs acelerou o ataque do Talibã, que enfrentou pouca resistência e conseguiu obter ganhos territoriais espetaculares. Essas mudanças rápidas de sorte no campo de batalha no Afeganistão são tradicionalmente geradas por indivíduos e comunidades que mudam rapidamente para o lado vencedor. Famílias enviam seus jovens para lutar pelo governo e pelo Talibã, para garantir segurança. Rendições rápidas de cidades e distritos evitam retaliação, enquanto a resistência prolongada geralmente leva ao massacre.
O padrão era semelhante, em 2001. Enquanto Washington e seus aliados locais na Aliança do Norte alardeavam sua vitória fácil sobre o Talibã, os combatentes deste voltavam ilesos para seus vilarejos ou cruzavam a fronteira com o Paquistão para esperar por dias melhores. Isso aconteceu quatro ou cinco anos depois, quando o governo afegão já tinha feito o suficiente para desacreditar a si mesmo.
A grande força do Talibã é que o movimento sempre teve o apoio do Paquistão, um Estado com armas nucleares com um poderoso exército, uma população de 216 milhões e uma fronteira de 2.600 quilômetros com o Afeganistão. Os EUA e o Reino Unido nunca admitiram verdadeiramente que, a menos que estivessem preparados para enfrentar o Paquistão, não poderiam vencer a guerra.
Outros pontos fortes do Talibã são um núcleo de comandantes e combatentes fanáticos e experientes, com raízes na comunidade pachtun, que representa 40% da população afegã. Um coronel paquistanês que comandava tropas pachtuns irregulares, do outro lado da fronteira com o Afeganistão, me questionou uma vez sobre os esforços americanos e britânicos “para conquistar corações e mentes” no sul do Afeganistão, fortemente pachtun. Ele acreditava que as chances de sucesso eram baixas, pois, segundo ele, a experiência o ensinou que uma característica central da cultura pachtun é que “eles realmente odeiam os estrangeiros”.
A propaganda sobre a “construção da nação” por ocupantes estrangeiros no Afeganistão e no Iraque sempre foi paternalista e irreal. A autodeterminação nacional não é algo que possa ser fomentado por forças estrangeiras, quaisquer que sejam suas supostas boas intenções. Elas invariavelmente levam em conta seus próprios interesses em primeiro e último lugar, e a confiança do governo afegão nas tropas norte-americanas e britânicas o deslegitimou aos olhos dos afegãos, afastando-o suas raízes na sociedade afegã.
As vastas somas de dinheiro disponíveis com os gastos estadunidenses no país produziram uma elite cleptocrática. Os Estados Unidos gastaram 144 bilhões de dólares em desenvolvimento e reconstrução, mas cerca de 54% dos afegãos vivem abaixo da linha da pobreza, com renda inferior a 1,90 dólares por dia.
Um amigo afegão que já havia trabalhado para a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês) me explicou alguns dos mecanismos de como a corrupção pôde florescer. Ele disse que as autoridades humanitárias norte-americanas em Cabul consideram muito perigoso visitar pessoalmente os projetos que estão financiando. Em vez disso, preferiram permanecer em seus escritórios fortemente protegidos, assistindo a fotos e vídeos para acompanhar o andamento dos projetos pelos quais estavam pagando.
Vez ou outra, mandavam um funcionário afegão como esse meu amigo para ver o que estava acontecendo na obra. Em uma visita a Kandahar para monitorar a construção de uma planta de embalagem de vegetais, ele descobriu que uma empresa local semelhante a um estúdio de cinema cobrava uma taxa para tirar fotos convincentes do trabalho em andamento. Usando extras e um pano de fundo adequado, eles conseguiam mostrar os funcionários em um galpão separando cenouras e batatas, embora tal instalação não existisse.
Em outra ocasião, o funcionário da ajuda humanitária afegã descobriu evidências de uma fraude, embora desta vez houvesse poucas tentativas de ocultá-la. Procurou em vão por uma granja que recebia farto financiamento, mas que não existia, perto de Jalalabad. Em seguida, se reuniu com os proprietários, que apontaram que era um longo caminho de volta a Cabul. Interpretando isso como uma ameaça de assassinato, caso os denunciasse, não disse nada aos superiores e pediu demissão logo em seguida.
A ajuda estrangeira realmente construiu escolas e clínicas, mas a corrupção corroeu todas as instituições governamentais. Na linha de frente militar, isso significa soldados “fantasmas” e guarnições de postos avançados ameaçados que foram deixados sem comida e munição suficientes.
Nada disso é novo. Visitando Cabul e outras cidades ao longo dos anos, percebi que o Talibã tinha apoio limitado, mas que todos viam os funcionários do governo como parasitas a serem contornados ou subornados. Em Cabul, um próspero corretor de imóveis – que normalmente não simpatiza com mudanças radicais – me disse que era impossível para um sistema tão saturado de corrupção “continuar sem uma revolução”.
Ao invés disso, o fracasso do governo permitiu ao Talibã acreditar que pode retornar ao poder dentro de um ano. Essa perspectiva assusta muitas pessoas. Qual será, por exemplo, a resposta da minoria de 4 milhões de hazaras, que são xiitas de religião e próximos do Irã? No início deste ano, as bombas em Cabul mataram 85 meninas e professores hazara quando saíam da escola. Como em 2001, a guerra eterna no Afeganistão está longe do fim.