Gilbert Achcar, Viento Sur, 15 de outubro de 2020
Enquanto o ateísmo tem sido combatido por muitos religiosos e as religiões por muitos leigos, as lutas emancipatórias têm reunido pessoas que acreditavam no céu com pessoas que não acreditavam, especialmente na América Latina, graças à teologia da libertação. No entanto, este tipo de aliança parece inconcebível com os defensores ultra-ortodoxos do islamismo político. Por quê?
Que essa religião ainda sobreviva cinco séculos após a revolução científica é um enigma a priori para aqueles que aderem a uma visão de mundo positivista. No entanto, se ela sobreviveu ao nosso tempo como parte da ideologia dominante, também produz ideologias militantes, que se opõem às condições sociais ou políticas prevalecentes. Com inegável sucesso. Duas dessas ideologias deram origem a muita conversa nas últimas décadas: a teologia da libertação cristã e o fundamentalismo islâmico.
A correlação entre a forte ascensão de cada um desses movimentos e o destino da esquerda secular em suas respectivas regiões é um sinal revelador de sua própria natureza. Enquanto o destino da teologia da libertação converge com o da esquerda secular na América Latina - onde ela de fato atua como um componente da esquerda em geral e é percebida como tal - o fundamentalismo islâmico se desenvolveu na maioria dos países de maioria muçulmana como um concorrente. Substituiu a esquerda na tentativa de canalizar o protesto contra o que Karl Marx chamou de miséria real e contra o Estado e a sociedade, que foram considerados responsáveis por ela. Estas correlações opostas - positivas no primeiro caso, negativas no segundo - refletem uma diferença profunda entre os dois movimentos históricos.
A teologia da libertação constitui a principal manifestação moderna do que Michael Löwy chama, para emprestar um conceito cunhado por Max Weber, a afinidade eletiva entre o cristianismo e o socialismo. Mais precisamente, a afinidade eletiva de que estamos falando aqui é sobre a herança do cristianismo primitivo - cuja extinção permitiu que o cristianismo se tornasse a ideologia institucionalizada de dominação social que é hoje - e o utopismo comunista. Em 1524-1525 o teólogo Thomas Müntzer pôde assim formular em termos cristãos um programa para a revolta camponesa alemã, que Friedrich Engels chamou em 1850 de "uma antecipação do comunismo na imaginação".
Esta mesma afinidade eletiva explica porque a onda mundial de radicalização política da esquerda, que começou nos anos 60, foi capaz de assumir em parte uma dimensão cristã, particularmente nos países periféricos onde a maioria da população era cristã, pobre e oprimida. Foi observada na América Latina, onde a radicalização foi impulsionada, desde o início dos anos 60, pela revolução cubana. A grande diferença entre esta onda moderna de radicalização e o movimento dos camponeses germânicos analisados por Engels reside no fato de que, no caso da América Latina, a corrente cristã do utopismo comunista se combinava não tanto com uma nostalgia dos modos de vida comunitários do passado (embora fosse possível encontrar a mesma dimensão entre os povos indígenas), mas com aspirações socialistas modernas, do tipo mantido pelos revolucionários marxistas latino-americanos.
Sobre os escombros da esquerda
O fundamentalismo islâmico, por outro lado, cresceu sobre o corpo em decomposição do movimento progressivo. O início da década de 1970 trouxe o declínio do nacionalismo radical apoiado pela classe média; um declínio simbolizado pela morte de Gamal Abdel Nasser em 1970, três anos após sua derrota para Israel na Guerra dos Seis Dias. Ao mesmo tempo, forças reacionárias usando o islamismo como uma bandeira ideológica se espalharam pela maioria dos países de maioria muçulmana, alimentando as chamas do fundamentalismo para incinerar os remanescentes da esquerda. Ao preencher o vácuo deixado pelo colapso da esquerda, o fundamentalismo logo se tornou o principal vetor da oposição mais ativa ao domínio ocidental, uma dimensão que esteve presente desde o início, mas que foi atenuada durante a era nacionalista secular.
A oposição ao domínio ocidental intensificou-se novamente no Islã xiita após a revolução islâmica de 1979 no Irã, e voltou à tona no Islã sunita no início dos anos 90, quando os destacamentos armados de fundamentalistas passaram da luta contra a União Soviética no Afeganistão para o seu confronto com os Estados Unidos. Esta mudança de lado se deu após a derrota e desintegração da URSS e o conseqüente retorno militar americano ao Oriente Médio.
Isto levou à coexistência de dois tipos principais de fundamentalismo na vasta extensão geográfica dos países de maioria muçulmana, caracterizada em um caso por sua colaboração com os interesses ocidentais e no outro por sua hostilidade para com eles. O bastião do primeiro tipo é o Reino Saudita, o mais obscurantista de todos os estados islâmicos. O bastião do fundamentalismo anti-ocidental dentro do xiismo é a República Islâmica do Irã, enquanto a Al Qaeda e o Estado Islâmico representam sua ponta de lança entre os sunitas.
Todas as correntes do fundamentalismo islâmico pregam igualmente o que pode ser descrito como uma utopia medieval reacionária, ou seja, um projeto para uma sociedade imaginária e mítica que não olha para o futuro, mas para o passado. Todos eles procuram restaurar a sociedade mítica e o estado do Islã primitivo. Nesta área, eles compartilham uma premissa formal com a teologia da libertação cristã, que toma o cristianismo primitivo como sua referência. Entretanto, o programa dos fundamentalistas islâmicos não consiste em um conjunto de princípios idealistas que apontam para um comunismo de amor e emanam de uma comunidade oprimida de pessoas pobres que vivem à margem da sociedade, uma comunidade cujo fundador seria executado atrozmente pelos poderes estabelecidos. Este programa também não invoca qualquer forma antiga de propriedade comunitária, como foi em parte o caso da revolta dos camponeses germânicos do século XVI.
Ao contrário, os fundamentalistas islâmicos têm em comum o objetivo de estabelecer um modelo medieval de dominação de classe, que na época realmente existia, embora mitificado; um modelo nascido há pouco menos de quatorze séculos e cujo fundador - um mercador transformado em profeta, senhor da guerra e construtor de um estado e de um império - morreu no auge de seu poder político. Como qualquer tentativa de restaurar uma estrutura social e política de vários séculos atrás, o projeto do fundamentalismo islâmico equivale inevitavelmente a uma utopia reacionária.
Este projeto está em afinidade eletiva com o Islã ultra-ortodoxo, que com o apoio do reino saudita se tornou a corrente dominante dentro da religião muçulmana. Este Islã defende uma abordagem literal da religião e seu culto inigualável ao Alcorão, considerado a palavra divina última. O que na maioria das outras religiões hoje é exclusivo do fundamentalismo como tendência minoritária - isto é, fundamentalmente, uma doutrina que advoga a aplicação de uma interpretação literal das escrituras religiosas - desempenha um papel essencial no islamismo institucional dominante.
Dado o teor histórico específico das escrituras às quais afirma ser fiel, o Islã ultra-ortodoxo favorece particularmente as doutrinas para as quais a prática da religião de acordo com a fé pressupõe um governo baseado no Islã, na medida em que o Profeta lutou ferozmente para estabelecer um tal Estado. Pela mesma razão, ele defendeu a luta armada contra todo domínio não-islâmico, referindo-se à história e à guerra travada pelo Islã contra outros credos no curso de sua expansão.
Admitir esta afinidade eletiva entre o islamismo ultra-ortodoxo e a utopia medieval reacionária, depois de ter enfatizado a afinidade entre o cristianismo primitivo e a utopia comunista, não implica um juízo de valor, mas deriva de uma análise sociológico-histórica comparativa das duas religiões. Além disso, o reconhecimento de suas afinidades eletivas não significa de forma alguma que não haja tendências contrárias em cada uma delas. O cristianismo, desde sua fundação, tem abrigado tendências que alimentam vários tipos de doutrina reacionária e fundamentalismo. E, inversamente, as escrituras islâmicas incluem alguns vestígios igualitários dos tempos em que os primeiros muçulmanos constituíam uma comunidade oprimida, vestígios que serviram para formular versões socialistas do Islã.
Por outro lado, o fato de haver diferentes afinidades eletivas entre o cristianismo e o islamismo não significa que a evolução histórica real de cada religião tenha naturalmente seguido a inclinação de sua afinidade eletiva particular. Esta evolução adaptou-se, naturalmente, à configuração real da sociedade de classes com a qual cada um se entrelaçou, uma configuração muito diferente da condição social original no caso do cristianismo, não tanto no caso do islamismo. Durante vários séculos, o cristianismo histórico realmente existente foi menos progressista do que o islamismo realmente existente. Dentro da própria Igreja Católica existe atualmente uma dura batalha entre uma versão reacionária dominante, representada por Joseph Ratzinger (o antigo Papa Bento XVI) e seus acólitos, por um lado, e os defensores da teologia da libertação, por outro, aos quais foi dado um novo impulso com a radicalização da esquerda latino-americana.
O reconhecimento de uma afinidade eletiva entre cristianismo e socialismo não implica que o cristianismo histórico tenha sido fundamentalmente socialista. Uma proposta tão essencialista seria absurda. Da mesma forma, reconhecer a afinidade eletiva entre o corpus islâmico e o utopismo medieval reacionário de nosso tempo, que assume a forma de fundamentalismo islâmico, não implica de forma alguma que o islamismo histórico tenha sido essencialmente fundamentalista - certamente não foi! - ou que os muçulmanos estejam condenados ao jugo do fundamentalismo, independentemente das circunstâncias históricas. Entretanto, no caso tanto do cristianismo (original) quanto do islamismo (literalista), este conhecimento é uma das chaves para entender os diferentes usos históricos de cada religião como uma bandeira de protesto.
Isto nos permite entender porque a teologia da libertação cristã pode se tornar um componente tão importante da esquerda na América Latina, enquanto todas as tentativas de criar uma versão islâmica desta mesma teologia têm permanecido marginais. Ele também nos ajuda a ver por que o fundamentalismo islâmico conseguiu ganhar a enorme importância que tem atualmente nas comunidades muçulmanas e por que ele substituiu tão facilmente a esquerda na encarnação da rejeição da dominação ocidental, embora em termos socialmente reacionários.
A idéia orientalista superficial, agora generalizada, de que o fundamentalismo islâmico é a inclinação natural e a-histórica dos povos muçulmanos, por outro lado, é totalmente aberrante, pois esquece fatos elementares. Por exemplo, há algumas décadas, um dos mais importantes partidos comunistas do mundo, um partido que, portanto, professou oficialmente uma doutrina ateísta, estava ativo no país com a maior população muçulmana: a Indonésia. Este partido foi aniquilado violentamente, a partir de 1965, pelos militares indonésios apoiados pelos Estados Unidos.
Outro exemplo: no final dos anos 50 e início dos anos 60, a principal organização política no Iraque, especialmente entre os xiitas do sul do país, não era um movimento liderado por nenhuma pessoa religiosa, mas pelo Partido Comunista. Além disso, Nasser, que liderou a virada socialista do Egito em 1961, era um crente sincero e um muçulmano praticante, mas que se tornaria o pior inimigo dos fundamentalistas. A influência que ele exerceu no auge de seu prestígio nos países árabes e mais além é inigualável.
Portanto, é importante colocar o uso do Islã, como qualquer outra religião, no contexto de condições sociais e políticas específicas, assim como é importante distinguir claramente entre o Islã quando ele se torna um instrumento ideológico de dominação de classe e gênero, e o Islã como uma marca de identidade de uma minoria oprimida, por exemplo, nos países ocidentais.
Isto não diminui o fato de que a luta ideológica contra o fundamentalismo islâmico - contra suas idéias sociais, morais e políticas, não contra os princípios espirituais fundamentais do Islã como religião - deve continuar sendo uma das prioridades das pessoas progressistas dentro das comunidades muçulmanas. Por outro lado, há pouco a objetar às ideias sociais, morais e políticas da teologia da libertação cristã - além de sua adesão ao tabu cristão geral sobre a interrupção voluntária da gravidez - mesmo para os ateus impiedosos da esquerda radical.
Gilbert Achcar é o autor de Marxisme, orientalisme, cosmopolitismo, Actes Sud, Arles, 2015, a partir do qual este texto foi adaptado. Texto também publicado em https://www.monde-diplomatique.fr/2015/06/ACHCAR/53097