Ashley Smith entrevista Gilbert Achcar, Truthout, 6 de maio de 2020
A pandemia e a crise do petróleo podem fazer a segunda Primavera Árabe retornar com uma vingança
Enquanto o mundo enfrenta uma crise econômica global exacerbada pela atual pandemia, que lições a esquerda dos EUA pode aprender com aqueles que estão além de suas fronteiras?
Nesta entrevista, Gilbert Achcar discute com Ashley Smith como a guerra comercial dos países exportadores de petróleo do Oriente Médio impactou o mundo, as ações revolucionárias em curso que poderiam resultar em uma "Segunda Primavera Árabe" e como a esquerda norte-americana deve reavivar o verdadeiro significado do internacionalismo.
Ashley Smith: Qual será o impacto da pandemia e da recessão global sobre o Oriente Médio e o Norte da África?
Gilbert Achcar: Há um tipo de impacto que a região vai compartilhar com o resto do mundo. É a grande crise econômica que está se desdobrando e que já está muito além de qualquer coisa que o mundo tenha visto desde a Grande Depressão dos anos 30.
Mas há algo específico da região, que é o petróleo e o gás natural. A região é basicamente dependente economicamente desses recursos. Seu preço caiu a ponto de ficar abaixo de zero nos Estados Unidos por um curto período; os vendedores de petróleo pagaram aos compradores para levar seu petróleo, porque não tinham mais espaço para armazená-lo.
Os líderes da Arábia Saudita ajudaram a criar este desastre quando lançaram a chamada guerra de preços do petróleo no início de março, justamente quando a crise do coronavírus começou. A combinação de sua superprodução com a contração da demanda em meio à pandemia e à recessão produziu essa enorme abundância de petróleo e o conseqüente colapso em seu preço.
A região do Oriente Médio e do Norte da África está em uma conjuntura revolucionária por causa do neoliberalismo global, da natureza absolutista específica de muitos dos estados da região e de sua dependência econômica do petróleo.
É claro que o preço acabará se recuperando do nível abismal que atingiu, mas permanecerá baixo porque a demanda está suprimida como resultado da paralisação da economia durante a pandemia. Isto terá um impacto econômico devastador em todos os países da região.
Isto é verdade não só para os países exportadores de petróleo, mas também para outros países da região. Estes também dependem das receitas do petróleo na forma de subvenções e investimentos em suas economias por parte dos países ricos em petróleo.
Mas o impacto não será o mesmo em todos. Os países ricos em petróleo com populações pequenas ou alta renda per capita, como a Arábia Saudita, implementarão algumas medidas de austeridade, mas têm enormes reservas financeiras a serem utilizados.
Os países exportadores de petróleo com grandes populações, como Irã, Iraque e Argélia, enfrentarão problemas muito maiores. Suas economias são muito mais fracas, têm reservas financeiras muito menores e serão forçados a decretar severas medidas de austeridade, enfurecendo ainda mais as populações que encenaram revoltas em massa no último ano.
Todos os outros países da região que dependem dos produtores de petróleo serão lançados em crises agudas. Eles serão privados subitamente do dinheiro do Golfo, o qual tem ajudado economias como a do Egito a se manterem à tona, aumentando assim a austeridade e a pobreza. Assim, toda a região enfrenta uma crise social e econômica ainda mais profunda do que a que viveu na última década.
Qual tem sido o impacto da pandemia na região até agora?
Não tem sido tão apocalíptica quanto muitos temiam, pelo menos até agora. Alguns países ricos, como os Emirados Árabes Unidos e o Qatar, têm meios para lidar com a pandemia. Eles cuidam de alguns setores da população, mas não de outros, especialmente os trabalhadores manuais imigrantes.
Esses imigrantes já vivem em condições terríveis e podem ser devastados pela pandemia se o vírus irromper entre eles. Mas o resto da população estará mais isolado, pois desfrutam de condições semelhantes às dos países do Norte Global, se não melhores.
Em contrapartida, se o vírus se espalhar em países como Egito, Iraque ou Iêmen, onde as condições para a maioria da população são muito ruins, ele pode ter um impacto terrível. O Irã já foi severamente atingido e a Turquia está sendo atingida neste momento.
Com pandemia e o colapso dos preços do petróleo, como ficará o equilíbrio geopolítico de poder na região?
Os países ricos em petróleo do Golfo, como a Arábia Saudita, possuem enormes reservas financeiras. Portanto, não sofrerão um grande revés em sua influência regional. Em contrapartida, o Irã e sua influência serão severamente afetados. O país já está sofrendo sanções dos EUA, o que agravou muito as conseqüências da pandemia e do colapso dos preços do petróleo.
Sobre a questão de uma alternativa progressiva, o Sudão está dando o exemplo para o resto da região. Atingiu os ganhos mais avançados entre os 10 países que haviam passado por grandes revoltas.
A guerra [de preços] do petróleo saudita golpeou a economia do Irã, o que era a intenção de Riyadh [capital e principal centro financeiro da Arábia Saudita] desde o início. A combinação de todos estes fatores no Irã é catastrófica. Sua capacidade de consolidar sua influência regional em seus postos avançados no Iraque, na Síria e no Líbano será severamente prejudicada.
Por trás da Arábia Saudita estão os EUA, e a capacidade de ambos juntos de moldar geopoliticamente a região é muito maior que a do Irã e seus meio-amigos, Rússia e China, que são muito menos capazes de influenciar a região.
Mas todas as grandes potências e potências regionais se deparam com grandes problemas colocados pela crise. E, se as lutas sociais retornarem com o fim da pandemia, a iniciativa poderá ser novamente tomada pelas forças populares.
Vamos discutir o estado da luta dos de baixo. Ao longo do último ano, assistimos a uma nova onda de revoltas que muitos chamam de "Segunda Primavera Árabe". Em que estado estão estas lutas agora?
No ano passado assistimos a uma onda global de resistência da América Latina ao Oriente Médio, do Norte da África a Hong Kong. Todas essas lutas foram congeladas pela pandemia.
Em Hong Kong, o governo, fortemente controlado por Pequim, aproveitou essa situação para reprimir o movimento. No Oriente Médio e no Norte da África, a história é a mesma. Na Argélia, as manifestações semanais de massa pararam e ativistas foram presos. No Sudão, Líbano e Iraque, a luta também está em suspenso.
A pandemia tem permitido aos países impor lockdowns - não por razões médicas, mas por razões políticas. A maioria dos governos - com exceção de Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil - ficou feliz em fazê-lo, não porque se preocupam com a saúde do povo, mas porque viram uma oportunidade de acabar com protestos sociais.
Uma vez terminada a pandemia, devemos esperar uma retomada da luta em uma escala ainda maior, devido ao agravamento da crise social. Já há uma retomada do movimento tanto no Líbano como no Iraque. As pessoas no Líbano têm sido impulsionadas a fazê-lo pelo colapso da economia. Elas não podem mais pagar por suas necessidades básicas como a alimentação.
O Sudão tem sido um dos países chave nas revoltas do último ano. Como está a situação lá hoje?
Está hoje em um estado de fluxo como estava desde julho passado, quando o movimento se comprometeu com um acordo de transição com os militares.* Esse acordo criou o que eu descreveria como uma dualidade de poder entre o movimento popular e os militares, ambos coexistindo dentro de um mesmo estado. Mas esta é apenas uma etapa tensa e provisória; terminará necessariamente com a vitória de um dos dois lados, o militar ou o do movimento.
Os militares têm tentado aproveitar o congelamento das lutas para voltar atrás no cumprimento de algumas das principais concessões que tiveram que fazer. É claro que eles podem tentar algo como um golpe. Mas o movimento popular desafiaria qualquer tentativa desse tipo, retornando o país ao confronto aberto entre as massas e os militares.
Quais são as raízes das persistentes ondas de luta na região? O que faz parte do padrão geral de revolta global que temos testemunhado e o que é particular à economia política do Oriente Médio e do Norte da África?
O neoliberalismo tem tido um impacto comum em todo o mundo, mas há também especificidades regionais e nacionais. Globalmente, o impulso neoliberal à privatização, desregulamentação e globalização tem aumentado as desigualdades sociais e desmantelado as redes de segurança social. Tudo isso tem provocado resistências desiguais, mas presentes no mundo inteiro.
O internacionalismo nunca defendeu um imperialismo contra outro; sempre foi uma questão de solidariedade entre os povos oprimidos e as classes trabalhadoras através das fronteiras.
Mas, como tenho argumentado desde a primavera árabe em 2011, a região do Oriente Médio e do Norte da África está em uma conjuntura específica, distinta e revolucionária, devido à interação entre o neoliberalismo global, a natureza absolutista específica de muitos dos Estados da região e sua dependência econômica do petróleo.
Esta combinação tem produzido um bloqueio estrutural no desenvolvimento econômico. Os regimes negam liberdade ao seu povo, dependem da renda de petróleo e gás, e o capital privado não é investido no desenvolvimento econômico, mas em investimentos especulativos.
Tudo isso tornou o impacto do neoliberalismo muito mais severo do que em qualquer outra parte do mundo. Por exemplo, a região detém há muitos anos a maior taxa de desemprego juvenil do mundo. Os caminhos para mudar esta situação através de eleições democráticas estão bloqueados.
Não se pode trocar um governo através do voto, mudar as equipes administrativas e alterar a direção da política, como se poderia fazer na Europa ou nos EUA. Por isso os levantes nestes países superaram muito os protestos que vimos em países como Chile, Espanha ou Grécia.
O Oriente Médio e o Norte da África entraram em um processo revolucionário de longo prazo. Sem uma transformação radical de toda a estrutura social, econômica e política, a área permanecerá em crise profunda.
Passamos por duas ondas de revolta na região. Qual é o balanço até agora? E quais são as lições do processo revolucionário?
Neste período, 10 países da região passaram por grandes levantes de massas. Seis em 2011, mais quatro em 2019 - quase a metade dos países da região passou por revoltas maciças e sustentadas.
Essa é uma onda de choque revolucionária em nível regional, comparável ao que a Europa testemunhou no final da Primeira Guerra Mundial. A escala destes processos prova que não se trata de uma resistência habitual ao neoliberalismo.
O movimento amadureceu politicamente desde a primeira onda de revoltas até a segunda. Isto é típico dos processos revolucionários de longo prazo como todos os outros que temos visto na história. Eles passam por uma curva de aprendizado - tanto as classes dominantes quanto o movimento popular aprendem.
Na primavera árabe de 2011, as forças fundamentalistas islâmicas foram protagonistas fundamentais. Elas formaram uma parte importante da oposição às ditaduras e quando os levantes começaram, elas se aproveitaram e tentaram seqüestrar as revoltas para que defendessem seus objetivos reacionários.
Infelizmente, conseguiram em vários países, marginalizando as forças progressistas que não eram suficientemente organizadas e independentes para oferecer uma alternativa política. Como resultado, assistimos a um choque entre dois pólos contra-revolucionários - os velhos regimes, por um lado, e os fundamentalistas islâmicos, por outro.
Em alguns países, isso tomou formas trágicas e sangrentas - guerras civis. No plano regional, a fase revolucionária inicial se transformou em uma fase contra-revolucionária a partir de 2013. Desde então, os antigos regimes conseguiram restaurar seu poder na região na Síria e no Egito, e em parte na Tunísia.
Como o movimento conseguiu reemergir? Em que se diferencia a nova onda de revoltas da primeira?
O movimento nunca desapareceu por completo. Apesar do refluxo em 2013, o processo revolucionário continuou com explosões sociais ocasionais em toda a região, do Marrocos à Tunísia, Sudão, Iraque e Jordânia. Então, a partir de dezembro de 2018, no Sudão, uma nova onda de revoltas começou e se espalhou pela Argélia, Iraque e Líbano. A mídia chamou isso de Segunda Primavera Árabe.
Nesta nova fase, as forças fundamentalistas islâmicas, tão proeminentes na primeira fase, não desempenharam qualquer papel. No Sudão, elas estavam originalmente alinhadas com a ditadura. No Iraque e no Líbano, as forças fundamentalistas alinhadas com o Irã foram um dos principais alvos das revoltas.
Na Argélia, parte dos fundamentalistas colaborou com o regime, e o movimento não os deixou desempenhar nenhum papel. Infelizmente, porém, nenhuma força progressista foi capaz de intervir nacionalmente para dar um passo a frente.
Sobre a questão de uma alternativa progressista, o Sudão está dando o exemplo para o resto da região. Atingiu as vitórias mais avançadas entre os 10 países que passaram por grandes revoltas.
O que as forças progressistas fizeram no Sudão que as destacam dos outros países?
Eles construíram um movimento organizado operando em vários níveis. Na base, existem organizações de base em todos os bairros. Estas envolvem milhares de pessoas, em sua maioria jovens que, em sua maioria, não são filiados a partidos políticos, mas que foram radicalizados através da revolução da qual constituem a força motriz. Eles são a sua consciência crítica, razão pela qual estão empenhados em preservar sua autonomia local e recusam o centralismo governamental.
Essas comissões delegaram o direito de representar o movimento popular a uma coalizão de associações profissionais que se formou clandestinamente antes das revoltas, formada por médicos/as, advogados/as, jornalistas, professores do ensino básico e superior.
A Associação dos Profissionais Sudaneses desempenhou o papel de coordenar e centralizar as lutas a nível nacional. Ela entrou em uma coalizão com partidos políticos para formar uma frente única de oposição à ditadura, forçando-a a um acordo transitório de partilha de poder. Essa é a situação atual de duplo poder que descrevi anteriormente.
O Sudão mostra assim o tipo de organização necessária para que um movimento popular progressista obtenha grandes ganhos. Isso não significa que o movimento tenha alcançado uma vitória final; permanece um impasse tenso entre o movimento e a ditadura.
Finalmente, quais são as lições fundamentais para a esquerda da região? E qual deve ser a postura da esquerda internacional em relação a essas lutas?
Há dois tipos de lições. Primeiro, há lições gerais da região para todos os movimentos progressistas. O exemplo do Sudão de construir um pólo de luta popular e progressista de massas é útil para todos no mundo inteiro. Imagine se o movimento nascido em torno do senador Bernie Sanders pudesse tomar a forma que vimos no Sudão com comitês de vizinhança de base ativos em todo o país!
A segunda grande lição é sobre o internacionalismo. A primavera árabe confrontou a esquerda internacional com o teste de se ela estaria com os regimes ou com o movimento popular nos países cujos regimes tinham péssimas relações com Washington. Este foi um desafio para alguns setores da esquerda que estão acostumados ao pensamento binário apenas através da lente imperialista/anti-imperialista.
As revoltas desafiaram esse pensamento. Ocorreram levantes tanto contra regimes apoiados pelos EUA, como Egito, Tunísia ou Bahrein, quanto contra outros que se opõem aos EUA, como Líbia ou Síria - esta última sendo apoiada pela Rússia, outra potência imperialista.
Muitas pessoas que se dizem de esquerda nos EUA apoiaram o regime sírio porque ele é contestado e antagonizado pelo governo dos EUA e se recusaram a estender solidariedade à revolução síria, mesmo em sua fase popular inicial. Continuaram defendendo o regime apesar de todas as atrocidades que ele cometeu. Ironicamente, o fizeram em nome do anti-imperialismo, quando o regime sírio foi de fato apoiado por outra potência imperialista, a Rússia, que se envolveu profundamente nos massacres na Síria.
Isto não tem nenhuma relação com o internacionalismo, que é sobretudo solidariedade com os explorados e oprimidos. A esquerda deve estar sempre com os oprimidos e explorados lutando pela democracia e justiça social, independentemente de o Estado que enfrentam ser ou não oposto a Washington.
O internacionalismo nunca foi sobre a defesa de um imperialismo contra outro; foi sempre uma questão de solidariedade entre os povos oprimido e as classes trabalhadoras independente de fronteiras. É preciso reavivar esse profundo sentido do internacionalismo.
Nota do tradutor
* Após intensas manifestações populares motivadas, dentre outras coisas, pelo custo de vida em geral, o ex-presidente do Sudão Omar al-Bashir, que governou por 30 anos, foi destituído e em seu lugar foi estabelecido um “conselho militar de transição”, que também foi rejeitado pela população e as manifestações continuaram. Em julho do mesmo ano, após negociações, a cúpula militar e a oposição chegaram a um acordo de transição completa para um governo civil no prazo de 3 anos.
Tradução de Hudson Valente do International Viewpoint.